Quando
o Brasil for às urnas amanhã, muitos ouvirão o termo “festa da democracia”. Mas se o voto obrigatório seria um fardo para
alguns, para toda a nação há motivos de sobra a comemorar. Mais de 142 milhões
de brasileiros estarão aptos a escolher seus representantes, tornando o país a
quarta maior democracia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, Índia e
Indonésia em número de eleitores. Nossa urna eletrônica é reconhecida
internacionalmente pela segurança e eficiência. O longo caminho para chegar até
onde estamos, entretanto, não foi fácil. Nossa História também é recheada de
fraudes, exóticos mecanismos eleitorais e restrições de camadas sociais.
![]() |
Seção eleitoral feminina do Méier, em 1933, no primeiro pleito com participação das mulheres. Arquivo O Globo/Agência o Globo. |
E
quanto mais recuamos no tempo, mais encontramos barreiras. Nos tempos do Brasil
Colônia, apenas os “homens bons da terra” votavam para a governança das vilas.
Lia-se por “bom” apenas quem fosse “católico, casado ou emancipado, com cabedal
e pureza de sangue”. Ou seja, a elite local.
Foi
assim até que conseguimos nos libertar de Portugal, em 1822. Quando começamos a
discutir como escolheríamos nossos representantes, D. Pedro I, com medo de
perder parte de seu poder imperial, resolveu fechar a Assembleia Constituinte e
outorgar uma nova Constituição em seu lugar em 1824.
Surgia
então nossa primeira carta magna, que dentre outras coisas estipulava que as
eleições seriam indiretas para a Câmara dos Deputados e Senado, com dois turnos.
No primeiro, votava apenas quem possuísse renda mínima anual de 100 mil-réis,
quantia bem considerável para um país onde mais da metade da população era
escrava. Esse grupo escolheria os eleitores que apontariam finalmente os
ocupantes dos cargos parlamentares. Para fazer parte dessa leva, era preciso
ganhar ao menos 200 mil-réis por ano.
ELEIÇÃO MASCULINA E BRANCA
Um
fato curioso do período é que, apesar de isso não estar expresso na
Constituição de 1824, a eleição era exclusivamente um terreno branco e
masculino.
—
Não precisava colocar na lei, estava implícito que a regra era a exclusão de
escravos e mulheres. Era algo inerente àquela sociedade do século XIX — afirma
Jairo Nicolau, professor da UFRJ e autor do livro “Eleições no Brasil”.
Em
1882, um ano após as eleições para o Congresso passarem a ser diretas, foi
instituído que os novos eleitores que quisessem participar das eleições
deveriam saber ler e escrever, mas não precisavam comprovar mais renda. O
cerceamento para os analfabetos foi confirmado em um dos primeiros decretos da
República que nasceria em 1889. Dali em diante, todos os eleitores deveriam saber
ao menos assinar seu nome.
O
resultado foi uma queda brusca do eleitorado. Se em 1872, ano do primeiro
Censo, o Brasil tinha mais de um milhão de votantes, cerca de 10% da população
total, em 1896 apenas 292 mil votariam para presidente, cerca de 2% de todos os
brasileiros. A República, que havia prometido mais liberdade e democracia do
que o regime anterior, acabou tento menos cidadãos representados em suas
fileiras.
—
Essa regra teve um impacto terrível para limitar a expansão do sufrágio, e só
foi corrigida com uma emenda constitucional em 1985, com a volta do voto para
analfabetos. A elite não se preocupava com os pobres. “Para quê vou prover escolas para analfabetos se eles não têm voz, não
me pressionam?” Hoje, ai de um político que desmonte algum programa social
— explica Nicolau.
Assim
como no Império, não havia proibição ao voto feminino na Constituição de 1891,
mas também não havia permissão. Na onda do federalismo exacerbado, cada estado
do Brasil definia seu calendário eleitoral e a forma de alistamento de
eleitores para pleitos locais. E com o voto sendo declarado no momento da urna
abertamente, era comum as votações serem administradas por lideranças
regionais. Os “coronéis” da terra, grandes fazendeiros, arregimentavam
verdadeiras tropas de eleitores para as seções eleitorais, que deveriam votar
de acordo com o cabresto. E ai de quem não votasse de acordo com cabresto.
A
república se tornou velha em 1930, com a subida de Getúlio Vargas ao poder. A “Revolução de 1930” também teve fortes
impactos no sistema eleitoral. Em 1932, Vargas promulga o primeiro Código
Eleitoral do Brasil, que dentre outras inovações, criou a Justiça Eleitoral. Se
até então, eram os próprios políticos que verificavam as candidaturas uns dos
outros, a partir de agora juristas especializados no processo eleitoral
julgariam os imbróglios.
A
revolução não para por aí. De olho na popularidade, Vargas instituiu no código
o voto secreto e obrigatório, além do sufrágio feminino. O país seria o segundo
na América Latina a permitir a ida de mulheres às urnas, atrás apenas do
Equador. No entanto, o dever cívico seria facultativo para aquelas que fossem
dependentes do marido. Ainda não se sabe, ao certo, quais argumentos
fundamentaram essa decisão à época. O professor de História Contemporânea da
UFMG, Rodrigo Pato Sá Motta, acredita que os legisladores poderiam nutrir o
preconceito de que as donas de casa estariam subjugadas ao chefe da família,
este sim com capacidade de refletir sobre o voto.
—
A ideia é que a mulher que trabalha é uma pessoa independente, que pode
formular juízo próprio, o que seria diferente para dona de casa. Isso revela
que havia uma “semiparticipação” das mulheres
– afirmou o professor.
Tudo
o que é bom, infelizmente, dura pouco. Com o golpe que criou a ditadura
varguista Estado Novo, toda a inovação em matéria eleitoral ficou suspensa até
1945. Esse foi o maior período da História do Brasil em que não houve eleições.
Somente com a Constituição de 1946 é que os brasileiros puderam vivenciar de
fato a legislação criada anos antes.
Mas
o ciclo foi novamente interrompido com a chegada dos militares ao poder em
1964. Em menos de uma semana do novo regime, o Ato Institucional nº 1 trazia de
volta as eleições indiretas. Mais de duzentos políticos opositores foram
cassados. Já o AI-2 e outro ato complementar anulavam as eleições previstas
para 1965, extinguiam os partidos políticos e criavam o sistema bipartidário
entre Arena e MDB “na marra”.
CONGRESSO FECHADO TRÊS VEZES
Em
20 anos de ditadura, o Congresso Nacional foi fechado três vezes. A cada pleito
com resultado desfavorável para os militares, como em 1974 e 1978, era alterada
a legislação eleitoral. São desse período a figura do “senador biônico”, eleito
indiretamente pelas assembleias estaduais, e a bizarra “Lei Falcão”, que
limitou o horário eleitoral.
—
Havia muitas restrições à participação do processo eleitoral. Não se pode
aceitar o argumento de que não era uma ditadura. É maltratar a realidade
histórica.
O
pluripartidarismo voltou em 1978 exatamente para diluir o MDB, que ganhava
força a cada pleito por conta da insatisfação da população. Surgiram nesse
momento partidos que até hoje comandam a política nacional, como o PT e PMDB. A
consciência popular tomou proporção visível nos protestos de Diretas Já, que
embora não tenham sido bem-sucedidos em reinstaurar as eleições para a
Presidência, forçaram o regime a acelerar a abertura “lenta, gradual e restrita”. Em 1985, o Congresso Nacional
finalmente elege um civil presidente. No mesmo ano, mais de cem anos depois de
terem sido afastados das urnas, analfabetos enfim reconquistam o direito ao voto
por emenda constitucional.
A
representatividade do regime democrático foi consagrada pela Constituição de
1988, que previu as eleições diretas para 1989, além do voto facultativo para
jovens entre 16 e 17 anos e idosos. E não só o sufrágio foi ampliado. Em 1996,
o Brasil foi um dos primeiros países no mundo a utilizar a urna eletrônica, com
apurações quase instantâneas.
Olhando
o “longo caminho da cidadania”, Jairo
Nicolau confirma que a história do voto no Brasil tem um final feliz, pelo
menos até o momento.
—
É uma história que acaba bem. Mal comparando, temos um campeonato bem
organizado, com boa estrutura, estádios ótimos. Mas se observarmos a qualidade
dos times e o interesse da torcida em ver os jogos, isso é outra história.
Via O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!