Comentários sobre o caso Marco Feliciano



Deputado Marcos Feliciano é alvo de constantes protestos
sobre a sua condição enquanto presidente da CDHM da Câmara
Por Vítor Sandes* e Leon Victor de Queiroz**

Marco Feliciano é um deputado federal, eleito em 2010 pelo Partido Social Cristão (PSC) de São Paulo, com um pouco mais de 210 mil votos. Em 2011, o deputado foi acusado de ter escrito comentários racistas e homofóbicos na rede social twitter.

Ele acusou os usuários de terem deturpado suas declarações. Sobre a afirmação que o levou a ser acusado de racismo, o deputado alegou ter se baseado nas passagens bíblicas. Em entrevista à Época, ele afirmou “a palavra lançada (a maldição) só é quebrada quando alguém encontra Jesus. Quando eles fazem isso, a maldição não repousa mais sobre eles. Ela é quebrada em Cristo”. Reproduzia, então, um discurso cristão de que a maldição só é quebrada quando o indivíduo aceita a religião cristã. Não apenas africanos, mas todos os indivíduos não-cristãos continuariam amaldiçoados, ou seja, estariam condenados a não entrarem no “reino dos céus”.

Sobre a acusação de que seria homofóbico, Feliciano fez a seguinte declaração: “que fique bem claro aqui de uma vez por todas, não sou homofóbico. O que as pessoas fazem nos seus quartos não é do meu interesse. Sou contra a promiscuidade que fere os olhos de nossos filhos, quer seja na rua, nos impressos, na net ou na TV”. Ele afirmou ainda: “O que eu não aceito é a prática da promiscuidade aos olhos dos meus filhos, as atitudes homossexuais em espaço público, dois homens se beijando na frente dos meus filhos. Isso fere o Cristianismo do qual faço parte. Entendo as pessoas, mas não sou obrigado a aceitar a atitude delas”. Então, novamente, observa-se que a afirmação se fundamenta no cristianismo, sob a lógica de que a união entre seres humanos deve ser sempre entre homem e mulher, que dentre tantas passagens talvez a mais clara esteja em Efésios 5: 21-33.

Estes argumentos cristãos das escrituras sagradas representam a forma de pensar de um grupo religioso de um determinado contexto geográfico num dado momento histórico. Muito já se passou até chegarmos ao Estado Democrático de Direito no qual encontra-se o Brasil atualmente. Trilhando pela história, o Império Romano difundiu o catolicismo, depois veio a Reforma Protestante e as variadas ramificações que deram origem a uma série de Igrejas Cristãs. Ao longo dos últimos séculos, veio a formação do Estado moderno, o processo de secularização, a conquista dos direitos civis, políticos e sociais. Mesmo com a expansão do cristianismo, muitos países e povos continuaram seguindo outras religiões. A diversidade cultural e religiosa, portanto, é uma marca das sociedades.

Estados laicos, como o Brasil, devem tratar com neutralidade as questões religiosas. Devem garantir a liberdade religiosa, inclusive dos indivíduos serem politeístas, ateístas ou agnósticos. Em questões governamentais, assim, não deve haver interferência religiosa, qualquer que seja a religião, inclusive aquelas que se fundamentam no cristianismo.

Sendo assim, o deputado Marco Feliciano não descumpriu, necessariamente, a norma. Emitiu publicamente uma posição religiosa. Por outro lado, as pessoas que não concordam com tal posicionamento também podem discordar de suas declarações, inclusive protestando publicamente, seja nas ruas ou mesmo no Congresso Nacional. Até aí, tudo normal. A partir daí, passaram a existir alguns complicadores. Pelo menos, um grande complicador.

O deputado assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. Esta é uma das 20 comissões permanentes da Câmara, e, segundo o próprio website da Comissão, tem como objetivo “receber, avaliar e investigar denúncias de violações de direitos humanos; discutir e votar propostas legislativas relativas à sua área temática; fiscalizar e acompanhar a execução de programas governamentais do setor; colaborar com entidades não-governamentais; realizar pesquisas e estudos relativos à situação dos direitos humanos no Brasil e no mundo, inclusive para efeito de divulgação pública e fornecimento de subsídios para as demais Comissões da Casa; além de cuidar dos assuntos referentes às minorias étnicas e sociais, especialmente aos índios e às comunidades indígenas, a preservação e proteção das culturas populares e étnicas do País”.

Como o próprio website declara, “o principal objetivo da CDH é contribuir para a afirmação dos direitos humanos. Parte do princípio de que toda a pessoa humana possui direitos básicos e inalienáveis que devem ser protegidos pelos Estados e por toda a comunidade internacional”. Assim, a Comissão assume ser protetora dos direitos humanos no sentido amplo, buscando defender inclusive a liberdade sexual e religiosa de indivíduos, grupos e povos, incluindo afrodescendentes e homossexuais.

Considerando os aspectos objetivos e formais, a eleição de Marco Feliciano para a Comissão seguiu o procedimento democrático. Deputados da comissão votaram e o parlamentar obteve a maioria dos votos. Mas quanto aos aspectos subjetivos? O deputado representa a defesa dos direitos humanos e das minorias?

Assim, a problemática não surge do fato de ele ser um deputado da bancada cristã ou do discurso ao qual ele se vincula, mas das questões simbólicas envolvidas sobre sua posse na presidência da comissão. O exercício deste cargo tem uma importância simbólica fundamental para as minorias sociais e étnicas. O discurso míope e opaco de suas declarações públicas, justificado à luz das escrituras sagradas cristãs, não abarca a complexidade das questões que a Comissão deve enfrentar. Além do poder de definir a agenda, o presidente tem um papel simbólico central, principalmente no processo de mediação junto aos diversos grupos minoritários da sociedade brasileira, especificamente junto aos grupos afrodescendentes e homossexuais (historicamente prejudicados). Acima de tudo, o presidente da Comissão deve representá-los, jamais julgá-los como “amaldiçoados”, não importando suas crenças e convicções pessoais.

Nesta Comissão, o deputado representa um grupo religioso minoritário e não os múltiplos grupos sociais, religiosos e étnicos presentes no Brasil. Apesar de sua eleição não ferir a democracia no sentido de Schumpeter, ela é um problema na medida em que é extremamente inadequada segundo os objetivos da Comissão especificamente e do processo mais amplo de conquistas de direitos civis e sociais. A escolha do deputado para o cargo é um retrocesso sem precedentes.


* Doutorando em Ciência Política (UNICAMP).
** Doutorando em Ciência Política (UFPE).

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