Então é natal, o que tem a dizer a Bíblia?



A festa de natal, uma das maiores festas da cristandade, permanece, contudo, um dos fatos historicamente menos conhecidos, inclusive pelos cristãos. Sabe-se que Jesus Cristo não nasceu no dia 25 de Dezembro, e não há documento que indique em que dia, mês ou ano isso teria acontecido. Os Evangelhos não esclarecem muito a respeito. Eles sequer foram escritos à época em que o nascimento teria ocorrido. Suas autorias foram muito posteriores à morte de Jesus Cristo.

Calcula-se que, por volta do ano 100, no máximo, os quatro Evangelhos já existiam, mas não eram os únicos. Há notícias de outros dez (ou mais), escritos ao longo do século II, entre eles o de Tomé, de Pedro, dos Hebreus e da Verdade.

No final da década de 170, Taciano, o Assírio, reuniu os quatro evangelhos que se tornaram o texto padrão das igrejas cristãs da Síria até o século IV. No século V, porém, houve nova mudança, com supressão e acréscimos de trechos que levaram à definição de um novo “Novo Testamento”.

Daí concluir-se que, o Novo Testamento que lemos hoje com a história de Jesus, é um conjunto de livros que alguns bispos cristãos aprovaram e confirmaram mais de trezentos anos depois da morte de Jesus.

Os Evangelhos

Os quatro Evangelhos valeram-se das tradições orais acerca das palavras e da história de Jesus Cristo, algumas das quais remontavam às memórias daqueles que o conheceram. O evangelho de Marcos é considerado, pelos especialistas, como o mais antigo dos quatro. E, no entanto, ele nada diz sobre o nascimento de Jesus, pois começa contando a história de Jesus com o seu batismo por João Batista. O evangelho de João também é reticente sobre o assunto.
Os outros dois evangelhos trazem informações sobre o nascimento. O de Mateus situa o nascimento de Jesus em Belém e o relaciona aos últimos anos do rei Herodes, o Grande. O evangelho de Lucas faz o mesmo mas traz duas informações novas: o recenseamento decretado pelo imperador romano e realizado quando Quirino era governador da Síria.


“‘Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.” (Lucas, 2: 1-2).


Jesus na manjedoura. Iluminura do Deliciarum Hortus de Herrad de Landsberg, séc. XII.
Os contemporâneos de Jesus

O nascimento de Jesus liga-se, portanto a pessoas e fatos históricos: o imperador César Augusto, o rei Herodes, o governador Quirino e o recenseamento da população do império. Cruzando esses dados pode-se determinar, afinal, quando Jesus Cristo nasceu. Vamos examinar brevemente cada um deles.

César Augusto: primeiro imperador de Roma, Caio Otávio César Augusto, governou de 27 aC. a 14 d.C. Portanto, o nascimento e a infância de Jesus coincidem com o reinado de Augusto, como afirma o Evangelho de Lucas.

Quirino, governador da Síria: segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-c.95), Quirino tornou-se governador da Síria, com autoridade sobre a Judéia, no ano 6 d.C. Não tem como contestar a informação de Josefo, pois foi um fato crucial para a história judaica: naquele ano a Judéia passou a ficar submetida ao controle direto de Roma.
Herodes, o Grande: rei da Judéia, Galileia e Samaria de 40 a.C. até sua morte, ocorrida em 4 a.C., ano um pouco antes do eclipse da Lua, datado pelos astrônomos entre 12-13 de março daquele ano.

O evangelho de Mateus também informa que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes, o Grande (Mateus 2:1) e, que, devido a ordem do massacre dos inocentes, José, Maria e Jesus fugiram para o Egito onde ficaram até a morte de Herodes (Mateus 2: 15).
Temos aqui incoerências nas datações: o evangelho de Lucas presume que Quirino e Herodes tenham sido contemporâneos, quando, na verdade, estavam separados por, no mínimo dez anos. O evangelho de Mateus afirma que a família sagrada ficou no Egito até a morte de Herodes mas, este morreu antes de Jesus nascer.

Assim, as informações sobre os governos da época não esclarecem, ao contrário, criam problemas para determinar a data de nascimento de Jesus.

O recenseamento

José e Maria em Belém para o censo. Mosaico, Igreja
Chora, Istambul.
O evangelho de Lucas afirma que José junto com Maria, já grávida, viajou de Nazaré (na Galileia) para Belém (na Judeia) para se registrar (Lucas 2:4-5). Este recenseamento é um dos problemas mais difíceis para os estudiosos da Bíblia.

Não há qualquer documento informando sobre um recenseamento no tempo de Herodes, o Grande. E mais: é duvidoso que o imperador Augusto tenha emitido um decreto determinando um recenseamento universal, isto é, de todo império romano.

Há três grandes recenseamentos bem documentados que foram ordenados por Augusto: em 28 a.C., em 8 a.C. e em 14 d.C. Mas nenhum deles, porém, foi decretado para todo o império. E, ainda, eles se limitavam aos cidadãos romanos e José, sendo judeu, não era cidadão romano.

Flávio Josefo informa que na Judéia, sob o governo de Quirino, houve um recenseamento local realizado no ano 6 d.C., quando a província saiu das mãos da família Herodes para o governo direto de Roma. De fato, este foi o primeiro recenseamento de Quirino (como afirma o evangelho de Lucas) mas ocorreu quando Herodes já estava morto havia dez anos.

Um dado intrigante nesse episódio, é a presença de Maria acompanhando José ao suposto recenseamento. Não havia necessidade de ela registrar-se junto com o marido. Bastava um dos moradores de cada casa fazer as declarações devidas. Estranha-se o fato de Maria fazer uma viagem desnecessária estando no final de uma gravidez.

Outro dado confuso é o fato da Galileia, à diferença da Judeia, permanecia sob um governo independente no ano 6 d.C. e, portanto, não estava sujeita a qualquer censo ou tributo romano. Este fato é confirmado por Josefo, por outros historiadores e pelas moedas correntes na época. Como galileu, José de Nazaré estava isento de ir à Belém para se registrar.

A história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente. O evangelista não estivera presente nos primeiros anos de Jesus, como ele mesmo confessa (Lucas, 1: 1-2); escreveu a partir do que ouvira contar talvez trinta anos ou mais depois da morte de Jesus.

A estrela de Belém

O evangelho de Mateus menciona o aparecimento de uma estrela à época do nascimento de Jesus e que acompanhou os reis magos até o local onde estava o recém-nascido. O que diz a astronomia e os registros históricos a respeito?

Reis Magos. Mosaico, c.565, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália.
A “estrela de Belém” citada por Mateus poderia ser um cometa, fenômeno que os antigos observavam com frequência. No outono de 12 a.C., há registros de que um cometa foi visto nos céus de Roma e também na Judeia, o que foi considerado um fato benéfico de indicação dos deuses exaltando o templo de Herodes, recém-concluído. Registros astronômicos chineses também se referem a este cometa.

Segundo os astrônomos, o cometa de 12 a.C. era uma aparição grande e brilhante do cometa de Halley, visto pela última vez em 1985-1986. Esse é o único registro de cometa na época.

Reis magos

Mateus menciona, também, a visita de “magos vindos do Oriente”, guiados pela estrela, e trazendo presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus, 2:1-12). Não os identifica como reis, não fornece os seus nomes e sequer diz quantos são. Também não deixa claro quando isso ocorreu, isto é, quanto tempo depois do nascimento de Jesus.

Os magos levam presentes ao menino Jesus. Afresco em igreja ortodoxa, Capadócia, Turquia.

Segundo a tradição do catolicismo ortodoxo da Síria, foram doze reis magos. Os cristãos chineses afirmam que um sábio chinês também visitou o menino Jesus. Esses exemplos mostram como a tradição ganhou contornos locais.

Os nomes dos magos permaneceram desconhecidos até o século VI quando foi descoberto o manuscrito Excerpta Latina Barbari, de Alexandria: eram Melchior, Gaspar e Baltazar. O catolicismo etíope e o armênio, contudo, não concordam com esses nomes e batizaram os magos com outros nomes.

Foi somente no século IX, que o catolicismo ocidental associou os reis magos a regiões do mundo antigo: Melchior, rei da Pérsia; Gaspar, rei da Índia; Baltazar, o único negro, rei da Arábia.

Enfim, a história de Mateus sobre a estrela de Belém e os reis magos não se confirma historicamente. Possivelmente foi uma maneira de engrandecer o nascimento de Jesus tornando-o a realização das profecias judaicas sobre a vinda de um Messias:

Que os reis de Társis e das regiões litorâneas lhe tragam tributos; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes. Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”(Salmo 72, 10-11).

“Eu o vejo, mas não agora; eu o avisto, mas não de perto. Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará de Israel (Números, 24:17).

Jesus entre os profetas Isaías e Ezequiel, 1308 - 1311, Galeria Nacional, Londres.

Conclusão da origem do natal

Foi só em meados do século IV d.C. que os cristãos começaram a celebrar a festa de natal no dia 25 de Dezembro. Naquele século, eles puderam exercer abertamente seus cultos pois o cristianismo fora liberado no império romano (Edito de Milão, em 313) e, depois, oficializado (Edito de Teodósio, em 380).

A escolha do dia 25 de Dezembro foi intencional: era uma forma de cristianizar uma festa pagã extremamente popular na época: as Saturnálias, realizadas em homenagem ao deus Saturno. Os cristãos deram um novo significado às comemorações. Contudo, nem todos os cristãos concordaram. Na parte oriental do Império, foi fixado o 6 de Janeiro como data de nascimento de Jesus, dia de outra festa pagã destinada às crianças.

Portanto, o Natal foi estabelecido no calendário cristão, não devido a uma certeza, mas por um conflito, uma batalha de festividades travada entre os cristãos e a maioria pagã.





Conheça a NEGRA que inspira e empodera as mulheres negras com o blog “Que nega é essa”



O que sempre tive em mente é que eu deveria utilizar conceitos teóricos e debates políticos, que por sua natureza são pesados para traduzir isso para uma linguagem fácil e acessível.”

Há uma ou duas décadas, a comunicação vem se tornando cada vez mais enigmática, afinal, a cada dia os limites de possibilidades para se criar novos canais e formas de trocar informações tem se afastado da nossa capacidade de enxerga-los. Quem trabalha com a comunicação hoje, além de ter mais ferramentas de atuação profissional, também tem mais oportunidades e subsídios para se dedicar às causas, ideais e lutas. Neste cenário, os jovens são a fatia que mais se apropriou destas novidades para falar o que bem entendem, contrapondo assim o pensamento muitas vezes engessado da mídia tradicional.

Aos 24 anos, Aline Ramos se formou recentemente no curso de Comunicação Social – Jornalismo, pela Unesp/Bauru no interior de São Paulo é o exemplo perfeito disso. Ela decidiu explorar a necessidade de produzir seu trabalho de conclusão de curso (TCC) em dois assuntos muito importantes: a luta pelo empoderamento feminino e a luta contra o racismo. Aline é uma jovem mulher negra, mas que já sofreu diversos preconceitos e aprendeu a lidar com eles para o seu próprio bem e o de outras mulheres.

Assim como a maioria da população afro-brasileira, ela sente a falta de ensino e conhecimento sobre a sua ancestralidade. “Eu não conheço a minha história e as pessoas negras próximas a mim também não conhecem. Minha mãe sempre contou que meu bisavô era escravo e minha bisavó era índia, mas as histórias paravam nisso. Eu nunca vou saber de qual país africano a minha família descende e quais eram as características desse povo”, comenta.



Para a jornalista, é de grande importância que o conteúdo passado aos alunos nas escolas de ensino fundamental e médio seja repensado para contemplar a História e a Cultura afro-brasileiras e africanas – ressaltando que já existe a Lei 10.639/03, que obriga tais abordagens nas escolas. “Infelizmente leis não resolvem tudo, ela já tem mais de dez anos e pouca coisa mudou. Por isso a importância de mudar a cultura do Brasil. Os negros enriqueceram demais a cultura brasileira e são poucos reconhecidos”.

No segundo semestre de 2014, Aline lançou o blog “Que nega é essa?”  e, no Facebook, sua página oficial, onde busca estabelecer um forte fluxo de conteúdo positivo a respeito da identidade da mulher negra, que, segundo Aline, são constantemente ‘invisibilizadas’ na sociedade. “A mulher negra é anulada quando só aparece na novela nos papéis de empregada, prostituta e mulheres “fáceis”, extremamente sexualizadas. Ela é anulada quando não está nos telejornais e só aparece no período de carnaval se estiver com o corpo descoberto. Quando cheguei a adolescência sempre ouvia que eu poderia ser uma Globeleza como um elogio. Parecia que meu único destino como mulher negra era expor meu corpo para conseguir determinado tipo de sucesso. Ainda bem que descobri que não era só isso, e que eu poderia ser muito mais do que era mostrado a mim. Minha busca não é só pelo empoderamento individual, mas o de outras meninas e mulheres. Desejo ir longe, mas não quero ir sozinha”, argumenta.

Uma das ações feitas através do projeto “Que nega é essa?”, que trazem mais retorno e empolgam sua criadora, é a postagem de imagens que ressaltam a beleza e o valor das mulheres negras. São fotos, muitas vezes selfies, que fogem a diversos padrões de beleza de uma sociedade patriarcal e racista, mas que para Aline e suas companheiras espelham a grandeza da mulher afro-brasileira.

Os negros no Brasil primeiro tiveram de lutar pela abolição da escravidão, depois pela conquista de direitos civis e humanos e atualmente continuam a militar por essa luta, mas também buscam que a sociedade entenda que o negro é belo. O conceito de beleza é uma construção histórica e ele acompanha o racismo contido nessa periodização. Essa tomada de valorização da beleza negra é fundamental para o empoderamento dessa população. Existem diversos meios para se combater o racismo, o campo estético é um deles. Para as mulheres sentir que são bonitas e reconhecer-se desse modo é fundamental, por isso busco esses referenciais que são poucos e não existem na mídia”, defende. As fotos são encontradas por Aline em grupos e outros espaços nas redes sociais, mas muitas jovens também tem enviado suas fotos a ela voluntariamente para serem expostas.

Por meio de seu conteúdo, Aline Ramos se preocupa em atingir a maior parte possível de mulheres negras que se identifiquem com suas ideias. Ela sabe que apesar dela mesma ser mulher e negra, está longe de compreender e poder representar suas semelhantes em totalidade. “Estudei numa universidade pública e isso me distancia da realidade de muitas mulheres negras que moram na periferia, por mais que eu tenha morado em uma durante um período da minha vida. As redes sociais servem para eu estabelecer um diálogo e entender quais são as diferenças entre nós e quais são essas demandas. O que sempre tive em mente é que eu deveria utilizar conceitos teóricos e debates políticos, que por sua natureza são pesados para traduzir isso para uma linguagem fácil e acessível. Meu parâmetro é quando minha mãe ou minha prima leem algo que eu escrevo e se identificam”, complementa.

Longe de se sentir satisfeita com os resultados positivos que alcançou até agora, Aline ainda pretende expandir muito mais o seu projeto e a variedade de informação que gera.  Ela já pensa em criar um vlog através do Youtube, num programa de web rádio e a produção de um livro com perfis de mulheres negras. Sua atuação demonstra que o trunfo principal é a consciência que tem de si própria e da diferença que pode fazer.

Para viabilizar tudo isso também pretendo buscar uma forma de capitalizar o projeto para que eu consiga mantê-lo, seja com patrocinadores ou algum edital que o meu projeto se encaixe. Uma coisa que aprendi é que trabalho não vai faltar”, finaliza.

Acesse a página do Que Nega É Essa

Nzinga Mbandi – a rainha negra que nunca se entregou e que jamais aceitou a submissão aos invasores



Não foi fácil para Portugal retirar milhares de pessoas da África para servirem como escravos na América. Longas lutas de resistência foram travadas contra a colonização, que contava com altos investimentos militares e uma política que combinava opressão, violência e alianças com chefes locais.

A rainha com seu séquito de guardas e músicos, em desenho
de 1622 do frei capuchinho Giovanni Antonio Cavazzi de
Montecuccolo, contemporâneo de Nzinga.
A trajetória de Nzinga Mbandi é um exemplo de como os chefes centro-africanos enfrentaram o avanço português. Hábil guerreira, estrategista política e militar, Nzinga foi uma líder carismática, uma rainha que passou a vida combatendo e morreu sem nunca ter sido capturada.

Nasceu em 1582, filha do oitavo Ngola (do qual derivaria o nome Angola), título do principal régulo do reino do Ndongo. Os portugueses haviam iniciado a colonização a partir de Luanda sete anos antes, e foram ganhando o interior com a construção de “presídios” – fortificações militares no curso do Rio Kwanza, que abrigavam os comerciantes de escravos – e a organização de feiras em que a principal mercadoria eram as pessoas escravizadas. Criaram também um sistema de avassalamento de sobas, os chefes locais autônomos que pagavam tributos ao Ngola em troca de proteção militar e espiritual. Após a invasão portuguesa, eles eram batizados e se declaravam fieis à Coroa. Essa condição incluía diversos compromissos: fornecer baculamentos (tributos pagos geralmente em escravos), dar passagem às tropas do governo, permitir kitandas (feiras e mercados) em seu território e contribuir com escravos para serem soldados da “guerra preta” – o pelotão que lutava junto aos portugueses.

A guerra se generalizava, e com ela o clima de instabilidade. Os sobados intensificavam ataques a povoados vizinhos para saldar suas dívidas com os portugueses, pois os prisioneiros capturados em guerra eram escravizados. Ao sinal de qualquer atitude considerada infiel, o governo português invadia os sobados e matava seus líderes, substituindo-os por chefes aliados.

Foi nesse contexto de penetração portuguesa no reino do Ndongo, movido pelo tráfico negreiro, que Nzinga Mbandi cresceu. No reinado de seu irmão Ngola Mbandi, agravou-se a tensão entre os locais e os conquistadores. Em 1617, o governador de Angola, Luis Mendes de Vasconcelos, invadiu o reino do Ndongo para construir o presídio de Mbaka, a poucas milhas da Cabaça, a moradia do Ngola. O resultado foi uma guerra intensa, ao fim da qual Ngola, vencido, refugiou-se na ilha de Kindonga, no Rio Kwanza. Em 1622, João Correia de Sousa assumiu o governo e decidiu procurar o Ngola para restabelecer a paz, uma vez que o cenário de guerra paralisara os mercados de escravos. Foi quando Nzinga entrou em cena.


Ngola Mbandi mandou sua irmã mais velha como embaixadora para negociar a paz com os portugueses. Na audiência com o governador, ela impressionou a todos por sua inteligência e habilidade diplomática. Defendeu a manutenção da independência do Ndongo e o não pagamento de qualquer tributo à Coroa portuguesa, mas se mostrou aberta ao comércio. Entendendo que a paz com os portugueses passava pelo batismo cristão, aceitou o sacramento: recebeu o nome de D. Anna de Sousa, tendo como padrinho o próprio governador. De sua parte, os portugueses se comprometeram a efetivar a retirada do presídio de Mbaka.

Estratégia política em nome da resistência africana ou conversão ao catolicismo, o batismo de Nzinga Mbandi gera controvérsia entre os estudiosos até hoje.
O acordo, porém, não foi cumprido nem por aquele governador nem pelos sucessores. A situação levou ao enfraquecimento político de Ngola Mbandi, que morreu na ilha de Kindonga, em 1624, em circunstâncias que continuam sendo uma incógnita para a historiografia de Angola. Nzinga se apoderou das insígnias reais e assumiu o trono do Ndongo.

A nova rainha foi associada à possibilidade de libertação do povo Mbundo, etnia predominante no reino Ndongo. As crescentes fugas de kimbares – escravos que guarneciam os presídios ou eram dados pelos sobas para comporem a “guerra preta” – enfraqueciam as tropas lusas, enquanto fortaleciam o exército de Nzinga. Aproveitando-se desse contexto favorável, a rainha lançou uma campanha antilusitana, formando e liderando uma confederação de descontentes com a colonização. Conquistou o apoio de sobas que já haviam se avassalado, além de poderosos chefes que não pertenciam ao Ndongo, como o Ndembo Mbwila (Ambuíla).

Capturar Nzinga e reduzi-la à obediência passou a ser um dos objetivos principais do governo português. Em 1626, o governador de Angola, Fernão de Sousa, arquitetou um golpe político para que Are a Kiluanje, um vassalo dos portugueses, assumisse o trono. Nzinga se refugiou na ilha de Kindonga e conseguiu se livrar do cerco usando sabiamente a geografia do local, deslocando-se pelas diversas ilhas do Rio Kwanza. Quando as tropas lusas enfim a encurralaram em Kindonga, ela mandou seus embaixadores informarem que estava disposta a se render e se avassalar. Para isso, no entanto, pediu uma trégua de três dias. Passado o prazo, os portugueses perceberam que tinham caído em um golpe: Nzinga já estava longe dali.

A rainha foi então buscar proteção junto aos temidos jagas, guerreiros nômades que se organizavam em kilombos – acampamentos que se deslocavam conforme as necessidades de guerra, com rígida hierarquia e severa disciplina militar. Nzinga recebeu o título feminino mais importante no kilombo – Tembanza –, assumindo funções rituais essenciais. Imprimiu consciência política aos bandos, que até então viviam errantes, praticando roubos e sem se prenderem a linhagens. Sob o comando de Nzinga, os kilombos passaram a compor a frente de resistência contra a ameaça estrangeira. O incrível poderio bélico que Nzinga conseguiu mobilizar junto aos jagas foi crucial para se manterem livres e vencer os portugueses por várias vezes.

Por volta de 1630, Nzinga ocupou o reino de Matamba (Ndongo Oriental), terra evocativa de seus ancestrais e tradicionalmente governada por mulheres. Foi na condição de rainha de Matamba que ela soube da invasão holandesa em Angola, em 1641. Ali estava uma oportunidade de estabelecer nova aliança para minar a presença portuguesa na região. Nzinga aproximou-se dos invasores, e juntos criaram uma importante rota comercial que conectava Luanda (agora de posse holandesa) a Matamba, trocando escravos por mercadorias europeias, sobretudo armas de fogo.

Era fundamental para a oligarquia do Rio de Janeiro restabelecer o domínio do mercado de escravos em Angola. Isso foi conseguido em 1648 por iniciativa de Salvador de Sá, que organizou tropas formadas por índios e bandeirantes para expulsar os holandeses. A vitória lusa teve o efeito direto de enfraquecer a rainha Nzinga. Suas duas irmãs foram capturadas e mantidas como reféns pelos portugueses. Kifunge acabou assassinada em Massangano, acusada de espionagem. Mocambo ficou presa em Luanda, utilizada como arma política a fim de forçar a rendição de Nzinga.

O papa Gregório XV, com o objetivo de diminuir o poder que as coroas ibéricas tinham acumulado com as colonizações, criara em 1622 a Propaganda Fide – a “propagação da fé” –, que permitiu a ida à África Central de missionários que não tinham relações com a Coroa portuguesa. Entre eles estavam os capuchinhos, que chegaram à região na década de 1640. Nzinga enxergou nesses religiosos outra possibilidade de fazer novos aliados europeus que não fossem ligados ao governo português. Por meio do capuchinho italiano Antonio de Gaeta, Nzinga retornou ao catolicismo em 1656, renegando os ritos gentílicos e aceitando a fé de Cristo. A conversão ao cristianismo foi uma saída estratégica, pois, já idosa, ela sabia que a cruz seria o caminho mais rápido para a paz e para conseguir o retorno de Mocambo, sua irmã indicada à sucessão de Matamba, enfim libertada pelos portugueses em 1657.

A líder de Matamba morreu em dezembro de 1663, com mais de 80 anos, sepultada de acordo com os ritos cristãos. O povo Mbundo a venerou como “rainha imortal”, que nunca se entregou e que jamais aceitou a submissão aos invasores. Sua fama atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Aqui, o nome Ginga, ou Jinga, é evocado em rodas de capoeira, em congados e maracatus de múltiplas formas: como guerreira que engana os adversários, inimiga da corte cristã, venerável ancestral de Angola.

Decisão do STF “consolida normalidade constitucional”, diz o jurista Abreu Dallari



Em entrevista ao Portal Vermelho, o professor emérito da USP Dalmo de Abreu Dallari afirmou nesta sexta-feira (18) que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) consolida a normalidade constitucional e fortalece a democracia. “Foi uma decisão correta e inatacável”, disse ele sobre a decisão da maioria dos ministros que acatou o pedido feito pelo PCdoB e derrubou as manobras golpistas do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), no rito do impeachment.


 “Quem ganha é a democracia. É uma forma de consolidação da normalidade constitucional. Isso é muito importante, pois a Constituição que nós temos é uma conquista do povo, foi feita com intensa participação popular e ela consagra o Brasil como um Estado de Direito Democrático”, enfatizou Dalmo Dallari.

O jurista enfatizou ainda que a decisão do Supremo “foi uma afirmação” de que a Constituição está sendo colocada em prática, classificando a como “uma decisão respeitável e elogiável”.

O Supremo cumpriu o seu dever constitucional de guarda da Constituição, que é função precípua. Isso foi rigorosamente observado. Acho que as conclusões também foram muito boas, pois além de levar em conta o que está na Constituição, também se levou em conta o que está na legislação aplicável da Lei 1079”, salientou.

Dallari salientou ainda que mesmo a condução do ministro Edson Fachin, relator do processo, foi “serena e sólida”. Fachin apresentou voto que defendeu a manutenção das medidas adotadas por Cunha, mas foi vencido pela maioria do plenário do Supremo.

A condução do processo pelo ministro Fachin foi muito boa, serena, sólida e com fundamentação essencialmente jurídica, o que sempre achei indispensável”, declarou o jurista.

Voto do Fachin

Outro jurista a comentar a sobre a conduta de Fachin foi Samuel Barbosa, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP. Segundo ele, o ministro Fachin tomou uma iniciativa importante de levar a discussão para o plenário em um curto espaço de tempo e próximo ao recesso do Judiciário.

Já sabemos qual o rito do impeachment. Imaginem deixar isso para fevereiro”, disse o professor, enfatizando que Fachin procurou agilizar o processo, requisitando todas as informações dos interessados de modo que o processo já estava pronto.

Sobre a decisão da Corte, Samuel enfatizou que a divergência aberta pelo ministro Luiz Barroso, contrário ao voto do relator Fachin, “se baseou em um princípio: seguir o rito de 1992”.

A divergência aberta pelo ministro Barroso foi no sentido de olhar para o único precedente depois de 1988, que é o impeachment de 1992. É um precedente que não é vinculante, ou seja, os ministros poderiam ter julgado de outra maneira, mas por razões de coerência o precedente vira um argumento com muita força”, destacou.

Movimentos sociais defendem continuidade do mandato de Dilma, mas cobram fim do ajuste fiscal



Os movimentos sociais que foram às ruas esta semana contra o impeachment defendem a continuidade do mandato da presidenta Dilma Rousseff, mas cobram uma mudança no rumo da política econômica, com duras críticas ao ajuste fiscal. Entidades como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) defendem a redução da taxa de juros e a retomada de investimentos públicos para estimular a economia.

A presidenta Dilma Rousseff  recebe representações da Frente Brasil Popular no Palácio do Planalto. Foto: José Cruz/Agência Brasil.
Em reunião com Dilma um dia depois das manifestações, representantes da Frente Brasil Popular fizeram questão de mostrar à presidenta a insatisfação dos movimentos com as medidas econômicas que vem sendo tomadas pelo Palácio do Planalto. A presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE) – umas das organizações que articularam as manifestações – Carina Vitral, disse que as entidades esperam uma “guinada à esquerda” do governo Dilma.

Fizemos uma declaração contrária ao impeachment golpista, mas também uma cobrança forte para que mudanças continuem sendo aprofundadas. Demonstramos uma contrariedade grande ao ajuste fiscal, que penaliza e aprofunda a crise econômica. A gente quer uma guinada do governo à esquerda, aprofundando direitos da classe trabalhadora, da juventude e dos movimentos sociais”, disse, após reunião da Frente Brasil Popular com Dilma no Palácio do Planalto.

Nas manifestações, os movimentos sociais disseram querer “a Dilma que elegeram”, cobrando que a presidenta assuma compromissos de campanha com os trabalhadores e a manutenção de conquistas sociais.

O líder do MST, João Pedro Stédile, disse que os movimentos sociais estarão ao lado do governo na defesa do mandato de Dilma se o processo de impeachment for levado adiante, mas também criticou a demora do Palácio do Planalto em reagir a problemas da economia que afetam diretamente os trabalhadores, como o aumento do desemprego e da inflação.

O governo tem que agir rápido diante da gravidade da crise econômica, tem que dar sinais para a população. Nossa sugestão é que o governo anuncie urgentemente medidas concretas que possam retomar o crescimento da economia para garantir o emprego e a renda dos trabalhadores. Para isso, o governo tem que reduzir a taxa de juros e precisa utilizar esses recursos públicos, que são nossos, para a volta do crescimento baseado nos investimentos na indústria, na construção de moradia popular, na infraestrutura, no transporte público e na agricultura familiar”, sugeriu.

Ontem (18), a presidenta Dilma Rousseff decidiu tirar Joaquim Levy do Ministério da Fazenda e substitui-lo por Nelson Barbosa, que ocupava o Ministério do Planejamento. Responsável por medidas como a mudança nas regras de acesso ao seguro-desemprego e a limitação do seguro defeso para pescadores, Levy era o principal alvo das críticas das entidades de trabalhadores.

A CUT, que representa milhões de trabalhadores desse país, tem muito firmes suas posições contra essa política econômica, Levy não nos representa, trouxemos essa demanda para a presidenta”, disse a secretária de Relação com os Movimentos Sociais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Janeslei Albuquerque, no início da semana.

Em entrevista no fim da noite de ontem, o novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, disse que, para estabilizar a economia e promover sua recuperação, os esforços para o ajuste fiscal devem continuar.