Bonita,
ingênua, desinformada e irresponsável
A
defesa do voto facultativo é muito bonita. Bonita, ingênua, desinformada e
irresponsável. É preciso fazer esse debate com todo o respeito às pessoas que
pensam diferente, que são muitas. Mesmo o “irresponsável” que acabei de
utilizar tem um sentido respeitável, que será explicado adiante. A intenção
aqui, mais do que fazê-las mudar de ideia, é antes incentivá-las a repensar
seus argumentos.
É
bom tratar do tema antes que seja tarde demais. Antes que o Brasil resolva
entrar nessa canoa furada. Há sempre propostas de emenda constitucional
tramitando no Congresso. O voto facultativo pode nos surpreender, um dia, como
um presente de grego.
Há
pouco, tivemos o triste exemplo do Chile, que elegeu sua presidenta, Michelle
Bachelet, com a expressiva proporção de 62% dos votos, mas com a presença de
menos da metade dos eleitores. Houve quem apoiasse Bachelet e preferiu não
votar pela simples suposição de que ela já estaria eleita, e seu voto não faria
diferença. O mesmo deve ter ocorrido com alguns eleitores do lado adversário.
Uma
parte importante dos eleitores votou não com base em suas convicções, mas em
pesquisas de opinião.
Direito, sim; obrigação também
Vota
quem quer, pois o voto é um direito, certo? Errado. O voto é um direito, mas,
como qualquer outro direito, ele traz consigo obrigações. A educação também é
um direito, mas os pais são obrigados a colocar os filhos na escola (Estatuto
da Criança e do Adolescente, art. 55: “Os pais ou responsável têm a obrigação
de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”).
A
saúde é um direito, mas as famílias têm a obrigação de vacinar seus filhos. As
pessoas devem estar vacinadas contra algumas doenças se quiserem visitar alguns
estados e outros países. Os direitos são custeados graças à nossa obrigação de
pagar impostos – o nome não é à toa.
Há
uma frase do ex-senador Roberto Campos, famosa e muito repetida pelos papagaios
de seu liberalismo, segundo a qual nossa Constituição tem muitos direitos e
poucas obrigações. Basta ler a Constituição para comprovarmos que isso é uma
balela. Na melhor das hipóteses, uma piada.
Mesmo
o título dos direitos e garantias fundamentais é aberto com o capítulo que se
intitula “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”. O célebre e generoso
art. 5.º, que expressa todo o sentido do apelido de “Constituição Cidadã” dado
à Carta Magna brasileira, começa proferindo que “homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações”.
Do
voto deveríamos pensar o mesmo. É um direito e igualmente uma obrigação. O
cidadão que quer direitos está assumindo que tem uma relação com o Estado, que
é o agente responsável por garantir esses direitos e cobrar as obrigações. O
cidadão que tem o direito de reclamar do Estado, a plenos pulmões, é o mesmo
que tem a obrigação de dizer ao Estado que rumo ele deve tomar. Para que o
Estado represente o que o cidadão quer, o pressuposto é que ele, na condição de
eleitor, diga o que quer e o que não quer.
Pesquisa alguma substitui o voto
A
relação entre Estado e sociedade não pode ser marcada pela abstenção. A razão é
simples: não sabemos exatamente o que a abstenção significa em uma eleição.
A
democracia não pode trocar eleições por pesquisas de opinião para saber o que o
cidadão quer do Estado. Por melhores que sejam as pesquisas, e são muitas, e
são díspares, certamente alguém vai estar errado sobre algo muito importante de
ser aferido.
A
opinião pública está livre para ser analisada por qualquer um, da forma que
achar melhor. Mas a vontade do cidadão, isso não pode ser deixado a qualquer
um, de qualquer jeito. É algo importante demais para ficar nas mãos de
institutos de pesquisa ou, pior, de charlatães de plantão, especialistas de
assuntos aleatórios, golpistas contumazes e toda uma legião de oportunistas
ávidos em sequestrar a opinião daqueles que se abstiverem. Se ninguém gosta de
dar um cheque em branco a quem foi eleito, muito menos deveriam dar a quem
sequer foi eleito.
A luta pelo voto está sendo
esquecida
A
defesa do voto obrigatório perde terreno, entre outras razões, porque sua
maneira mais comum é também a mais infame possível. Há péssimos defensores do
voto obrigatório que usam o argumento de que o brasileiro ainda não está pronto
para o voto facultativo. É de um complexo de vira-latas atroz.
Do
lado do voto facultativo, há políticos que o defendem por convicção. Uma
convicção bonita, ingênua, desinformada e irresponsável. Cabe aqui a
explicação: tratam o voto como um direito que não responsabiliza o cidadão.
Péssimo exemplo.
Alguns
outros políticos defendem o voto facultativo por conveniência. Querem falar o
que a maioria dos eleitores quer ouvir. Da mesma forma, acontece com os
eleitores. Há os que o defendem por
convicção. E há outros que o preferem simplesmente porque acreditam que seu
voto vale bem menos a pena do que o churrasco do final de semana.
Aqueles
um pouco mais politizados dirão: “mas democracia não é só voto!”. “Só”?
Será
que quem usa esse “só” impunemente sabe um pouco da história da luta pelo voto
universal? Tudo bem que o movimento cartista inglês, de 1830; , as revoluções
de 1848; as sufragistas (que defendiam o voto feminino) do início do século
passado, e tantos outros movimentos estão
distantes no tempo, e nem todo mundo ainda se lembra das aulas de
História. Também há uma nova geração que nasceu depois da ditadura.
Esse
“só” mostra o quanto o voto, desmoralizado por muitos partidos e políticos,
acaba banalizado e esculhambado também por muitos eleitores. Não se pode
relegar a um final melancólico uma conquista que foi garantida a duras penas,
com o suor, as lágrimas e mesmo o sangue de muitos que lutaram para que
pudéssemos exercê-lo, em toda a sua plenitude.
O
voto facultativo é uma péssima ideia, um palpite infeliz, um desserviço à
democracia. Mas e os países avançados?
Não têm, todos eles, voto facultativo?
Não
todos, muitos, é verdade. Vários só tornaram o voto facultativo recentemente, e
nada impede que voltem atrás. Muitos países avançados têm voto facultativo e
têm também pena de morte, proibição ao uso do véu por mulheres (em claro
desrespeito à liberdade individual e religiosa) e tratam imigrantes como
animais. Muitos deles têm uma regulação da mídia para ninguém botar defeito.
O
fato de um país ter voto obrigatório não faz dele um país avançado. O fato de
um país ser avançado não faz com que ele tenha voto facultativo. O argumento
sobre países avançados não ajuda no debate, pois não esclarece como funciona o
sistema eleitoral como um todo, e não se diz das consequências que a
desobrigação do voto acarretou.
Na
França, Reino Unido e Alemanha, o comparecimento às urnas costuma ser bem maior
do que o que se viu no Chile e do que, tradicionalmente, se verifica nos
Estados Unidos. É bem provável que nossas taxas de abstenção fiquem bem mais
próximas da chilena e da norte-americana do que da britânica.
A
taxa de abstenção varia conforme a eleição, conforme os candidatos, conforme a
situação econômica, conforme a raiva dos eleitores. Falar que muitos países
avançados têm voto facultativo, pura e simplesmente, é apenas um argumento do
tipo Maria-vai-com-as-outras.
TSE deveria ensinar a votar branco
e nulo
Hoje,
o eleitor que não quiser votar tem duas opções: justificar ou pagar a multa. A
multa tonou-se irrisória para a maioria dos brasileiros. Vai de 3% a 10% do
valor do salário mínimo. Outras penalidades acabam sendo mais relevantes. O
título pode ser cancelado e a pessoa fica impedida de fazer concursos públicos,
receber empréstimo de instituições financeiras públicas, tirar passaporte e
carteira de identidade, entre outras.
Todos
são obrigados a comparecer, mas não a votar, na medida em que há a opção do
eleitor anular o voto.
O
único resquício autoritário ainda presente no processo eleitoral brasileiro e
que precisa ser abolido é a pregação frequente, feita pelos ministros que
ocupam a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que o eleitor não
deve anular o voto e precisa votar em alguém. Isso é descabido, pois nada
autoriza a Justiça a se meter na opinião do eleitor. Não há lei que obrigue o
eleitor a votar em alguém.
Tanto
o voto branco quanto o voto nulo são expressões democráticas da livre
manifestação. Deveriam ser opções de voto respeitadas e melhor informadas. O
cidadão tem direito de votar em branco, se quiser, e de votar nulo, se
preferir. A urna eletrônica admite as duas possibilidades.
O
que o TSE pode e deve fazer, cumprindo sua obrigação de preparar o eleitor para
o processo, é reservar espaço no horário eleitoral para dizer que o voto é
importante, que o eleitor tem sua chance de escolher bons representantes, e
ensinar o eleitor que, se ele não quiser votar em uma pessoa, pode votar no
partido.
Se
não quiser votar em ninguém, nem pessoa, nem partido, pode votar branco. Se
ainda assim achar que ninguém merece sua escolha, pode anular seu voto.
O
TSE deveria ensinar as pessoas que queiram votar branco ou nulo a fazê-lo,
esclarecendo a diferença. O eleitor que não teve tempo de se informar e não
sabe em quem votar deve saber que pode votar em branco e que não precisa passar
vergonha por isso. O eleitor que viu o programa eleitoral e não ficou
satisfeito com ninguém, ou é contra o voto em si, por princípio, pode expressar
sua contrariedade ou descontentamento votando nulo.
Com
isso, tiraríamos das urnas um voto que é irresponsável e de péssimas
consequências, qual seja, aquele em que o eleitor vota em qualquer um ou no
primeiro que aparecer em sua frente, na boca de urna. Teríamos, provavelmente,
mais brancos e nulos, mas escolhas mais bem feitas. De sobra, haveria
informações mais fiéis sobre o grau de insatisfação, desinteresse e desinformação
dos eleitores, o que seria benéfico para a análise sobre a quantas anda nossa
representação.
Vacina incomoda, mas é importante
O
voto é como uma vacina. Daquelas que as pessoas podem ou não querer tomar, mas,
se não o fizerem, devem arcam com as consequências. Como direito, as vacinas
devem sempre estar à disposição de todos os que queiram favorecer seu
organismo, mas servindo também ao propósito de preservar o convívio social. O
direito individual caminha junto com a obrigação que cada cidadão tem com a
coletividade.
Ano
que vem tem eleições. Precisamos tomar a vacina, por mais que muitos não gostem
da injeção e prefiram xingar a classe dos farmacêuticos. A democracia
brasileira vai dizer “muito obrigada”.
Texto de Antonio Lassance
(Cientista Político) e publicado originalmente no Carta Maior