É
mais um episódio, na acidentada vida republicana brasileira, em que a
democracia é posta à prova e vem à tona o que há de pior nas classes dominantes
e suas representações – o reacionarismo político e o golpismo.
O
Supremo Tribunal Federal cumpre seu dever constitucional de julgar a ação
penal. Conta com a confiança liminar da população, que espera o discernimento
jurídico de seus membros e absoluta isenção. Que julgue exclusivamente com os
autos.
A
peça acusatória é subjetivista e vaga. O ex-procurador-geral da República
Antonio Fernando de Souza prejulga e condena o que chama de “sofisticada
quadrilha”, que segundo ele teria comprado apoio de partidos para o projeto
político do PT e do ex-presidente Lula. Já o atual procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, disse que o Supremo julgará “o mais atrevido e
escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no
Brasil”.
São
acusações improcedentes, afirmações de efeito propagandístico, para dar a uma
mídia sequiosa e furibunda elementos de agitação política e alimentar os sonhos
de uma oposição fracassada e sem bandeiras.
Nunca
ficou, nem ficará provada a existência da “quadrilha”, nem a compra de apoio
político. Nem muito menos o desvio de dinheiro público. Assim, o país pode
estar diante não do “mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção”, mas da
mais atrevida e escandalosa construção de uma farsa.
A
ação penal que começa a ser julgada nesta quinta-feira tem feição jurídica, mas
é no fundo a expressão de uma tentativa de linchamento de lideranças políticas
de envergadura, com grandes serviços prestados à luta pela emancipação do povo
brasileiro e das classes trabalhadoras. José Dirceu é o militante e dirigente
da esquerda que liderou em 2002 a batalha político-eleitoral mais importante
até então da vida republicana brasileira, a que resultou, pela primeira vez na
história do Brasil, na eleição de um líder operário e popular e na constituição
de um governo nucleado por forças de esquerda.
Estamos
diante não de uma ação penal para julgar o nunca provado “mensalão”, mas para
condenar a chamada era Lula. Por isso, não se pode deixar de chamar pelo nome o
conjunto dos fatos iniciados em 2005 que sete anos depois desembocam no STF. É
um golpe antidemocrático contra o Partido dos Trabalhadores e suas melhores
lideranças, o que inexoravelmente atinge toda a esquerda. É um intento da
direita para criminalizar o exercício do governo por forças de esquerda.
Em
outras épocas, a crônica política já repetiu à exaustão a frase do político
udenista baiano Otávio Mangabeira sobre o novo regime político nascido dos
escombros do Estado Novo e do ambiente democrático resultante da derrocada do
nazi-fascismo no plano mundial. A democracia no Brasil seria, segundo
Mangabeira, “uma planta tenra que necessita ser regada para produzir frutos”.
Observando
a cena política brasileira, sua evolução histórica e o momento atual, a
impressão que se tem é que ainda falta muito para a plantinha do constituinte
de 1946 se transformar numa árvore robusta, frondosa e frutífera. Na verdade, a
convicção que se cristaliza é a de que a democracia continua tenra, instável,
vacilante, precária e ameaçada, mesmo considerando todos os avanços registrados
como fruto das lutas do povo brasileiro e das vitórias eleitorais que levaram
ao centro do poder, por três vezes, presidentes da República identificados com
a ampliação da liberdade e participação políticas, o progresso social e a
soberania nacional.
Entre
tantos fatores que podem ser catalogados como obstáculos ao pleno
desenvolvimento da democracia no Brasil, destacamos o que nos parece principal,
sem cuja remoção o Brasil poderá permanecer por muitos anos mais com um regime
republicano instável, uma democracia mutilada e instituições de poder apartadas
do povo e da vontade nacional.
Há
uma distância, ainda abissal, até mesmo uma contradição, entre o governo de
turno e a essência das instituições que conformam a superestrutura
jurídico-política, o Estado. É o paradoxo da conjuntura política brasileira
atual. A despeito de termos um governo democrático, permanece intocado o regime
político das classes dominantes, cujo caráter político e ideológico é
reacionário.
Isto
leva essas classes a percorrerem os caminhos do golpe e dos atentados à
democracia sempre que os seus interesses são contrariados. O sábio Darcy
Ribeiro dizia que no Brasil tudo muda, menos o reacionarismo das classes
dominantes. Com o passar dos anos, muda de endereço, já viveu na Casa Grande,
nos salões palacianos, nos estados-maiores das Forças Armadas. Hoje é mais
cosmopolita, sendo dispensáveis, por enquanto, a força propriamente dita. Sua
morada atual é visível por meio da usina de desinformação e mentiras em que se
converteu a mídia.
Muito
ao contrário do que reza a cartilha da historiografia vulgar, o Brasil não
evolui tranquila, pacífica e gradativamente para uma democracia, nem esta é ou
será resultado da conciliação nacional própria de um mitológico caráter
compassivo, cordial e generoso das classes dominantes. Intermitentemente,
quando assim o determinam os seus interesses fundamentais ou o dos potentados
internacionais a que devem vassalagem, elas entram em cena com sua ação
golpista. Mudam as formas da sua intervenção política, a intensidade, a duração
e a maneira de assestar os golpes com que os reacionários do topo da pirâmide
social amesquinham, mutilam e liquidam o sistema democrático. Mas é invariável
a sua determinação de impedir que o país e o povo avancem por meio de
conquistas democráticas e sociais.
O
povo brasileiro inegavelmente está progredindo na acumulação de forças,
alcançando muitas conquistas políticas, sociais e econômicas. Externamente, o
país situa-se de maneira soberana num mundo marcado pelo apetite de dominação
das grandes potências. Em aliança com forças anti-imperialistas
latino-americanas e caribenhas, o Brasil tem contribuído para reconfigurar o
sistema geopolítico regional, transformando numa triste lembrança o
pan-americanismo hegemonizado pelo imperialismo estadunidense. Vistas de uma
perspectiva histórica, são mudanças que contrariam a essência do projeto
político das classes dominantes e seus aliados externos. Por isso, na visão
destas classes, é algo que não pode nem deve continuar. Uma condenação do líder
José Dirceu como “chefe de quadrilha” e o achincalhe à “era Lula” como o
período de “maior corrupção da história” servem a esses propósitos.
É
sintomático que às vésperas do julgamento que se inicia nesta quinta-feira,
entre a miríade de artigos e reportagens, preparados sob medida para mentir,
tergiversar, enganar e iludir, venha à tona a voz das catacumbas. Por meio de
um vídeo, ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez
considerações sobre como a “opinião pública” deve ser levada em conta pela
Suprema Corte no julgamento da ação penal do “mensalão”, assim como sobre a
importância de evitar a “impunidade”. Também o PSDB, partido de Cardoso, em
vídeo institucional, foi explícito quanto às suas intenções, ao fazer insidiosa
vinculação entre o “mensalão” e o ex-presidente Lula.
É
a senha reveladora dos objetivos políticos daqueles que deram golpes
institucionais durante seu governo [1995-2002] e instituíram a ditadura dos
punhos de renda. Depositam agora as esperanças de redenção de sua força em
decadência na condenação do PT e do governo Lula.
Do
ponto de vista da esquerda, o momento requer vigilância e mobilização
democráticas em favor de outro desfecho, a absolvição dos acusados.
O
episódio como um todo pede reflexão e a extração de ensinamentos. A avaliação
rigorosa sobre a evolução da vida política brasileira e o cenário presente deve
servir para alargar a perspectiva histórica e aumentar o impulso de luta e
transformador. É um momento propício também a retomar o debate sobre os
caminhos para a conquista de uma democracia verdadeiramente popular, consoante
as peculiaridades nacionais, que signifique uma mudança de fundo do regime
político do país.
Por José Reinaldo Carvalho,
editor do Vermelho