A
filosofia sofre preconceitos de ser incompreensível ou inútil e eu só penso em
bater de porta em porta num domingo de manhã e dizer: “Podemos conversar um pouco sobre Nietzsche?”, só para tentar
demonstrar o quanto a filosofia é acessível, saborosa, aplicável e muito menos
complicada do que parece. E a escolha de Nietzsche se dá apenas pela ironia do
Deus morto por ele, ainda que eu não concorde com essa teoria. Mas, enfim, essa
é outra história.
Publicado originalmente no Portal Raízes
E, falando no filósofo alemão tão pouco compreendido, numa dessas madrugadas insones resolvi assistir ao filme “Quando Nietzsche chorou”. A intenção era mesmo dormir, tendo em vista que o tema parecia denso demais para manter qualquer ser humano normal acordado àquela hora da madrugada. Mas o filme me pegou, indicando que talvez haja poucos traços de normalidade na minha personalidade ou que eu deva realmente cogitar o uso de remédios para dormir.
A
mistura da filosofia e da psicanálise ainda em fase embrionária colore o filme
deixando uma visão leve e acessível sobre ambas. Nietzsche, cujo nome eu nunca
imaginei escrever em letra cursiva e sem travar, cujos livros desencorajam a
leitura já pela complexidade de seus títulos, aparece no filme como um homem quase
comum, de carne e osso, cheio de angústias, assombros e imerso na mais completa
e aterrorizante solidão.
O
romance de Irvin D. Yalom, adaptado para o cinema pelo diretor Pinchas Perry,
trata de um encontro fictício de dois grandes homens da história do
conhecimento: Friedrich Nietzsche e Josef Breuer que, dada a contemporaneidade
deles, é realmente uma pena que a amizade entre os dois seja apenas uma obra de
ficção.
No romance, Nietzsche apresenta tendências suicidas após ter seu coração estilhaçado por uma paixão não correspondida, situação não tão rara na história da humanidade e vivida pelo filósofo em sua vida real, diga-se de passagem.
Dr.
Breuer, sob a incumbência de salvar o filósofo de uma morte iminente, ainda que
sob a contestação de seu seguidor Freud, que não entendia a paixão como
enfermidade e sem obter qualquer ajuda do paciente, que não poderia saber do
real tratamento, inicia um projeto de cura pela conversa, demonstrando o início
e as bases da teoria psicanalítica.
Os
diálogos intensos entre médico e filósofo sobre a paixão, o sentido da vida e a
inquestionável certeza da ocorrência da morte os coloca numa posição
humildemente humana, longe dos pedestais onde costumamos cultuar esses
pensadores. Afinal, simples mortais conhecedores de algumas teorias de senso
comum e papagaios de algumas frases clichês sobre a busca da felicidade numa
mesa de bar?
Num
desses diálogos ocorre o que talvez seja o momento de maior reflexão do filme.
Breuer, resignado em relação à sua vida, ganha de presente um pensamento de
Nietzsche:
“E se um demônio lhe dissesse que esta vida,
da forma como vive e viveu no passado, você teria de vivê-la de novo? Porém,
inúmeras vezes mais e não haverá nada novo nela. Cada dor, cada alegria, cada
coisa minúscula ou grandiosa retornaria para você mesmo. A mesma sucessão, a
mesma sequência várias e várias vezes como uma ampulheta do tempo. Imagine o
infinito! Considere a possibilidade de que cada ato que você escolher Josef,
você escolherá para sempre! Então toda vida não vivida permaneceria dentro de
você! Não vivida… por toda a eternidade!”.
Breuer poderia, talvez, sacar um manual de auto-ajuda com dez passos de como viver intensamente feliz fazendo com que a vida valesse a pena ser vivida e, assim, querer repeti-la para sempre. Mas toda filosofia tem um “q” de depressão, talvez por nos fazer compreender que nossa existência é mesmo conflituosa e por não fornecer fórmulas mágicas para a busca do bem estar. Assim como o filme, toda filosofia é reflexiva, nunca conclusiva, o que a torna um tanto angustiante.
E,
de todos os conflitos existenciais, há ainda o medo da solidão confessado por
Nietzsche entre lágrimas, talvez o maior medo de toda a humanidade que busca em
amizades superficiais e amores fabricados tornar o “convívio consigo mesmo ao menos suportável”. Mas para Breuer, “o isolamento só existe no isolamento. Uma
vez compartilhado, se evapora”.
O
filme nos deixa atento aos dramas vividos por todo ser humano, em maior ou
menor intensidade. Deixa claro que, ainda que a maior dor existencial seja
sempre a nossa, cada ser humano é um universo de mazelas, incertezas e
angústias e isso independe da posição social, do nível cultural, de crenças
religiosas ou entendimento filosófico nessa imensa e perigosa aventura que é
viver.