Se
for verdade que a guerra é a continuação da política por outros meios, como
sentenciou Clausewitz, não é a verdade inteira: também a política pode ser a
continuação da guerra por outros meios. Sobretudo neste tempo em que as
declarações solenes de fim das guerras não são mais do que momentos de
reconfiguração das ditas que continuam por muito mais tempo, ainda que noutras
vestes.
A
Guerra Fria não terminou, mesmo que tenha sido declarada extinta em 1989 sobre
os escombros do Muro de Berlim. E nem foi preciso a guerra de cinco dias na
Geórgia para o provar. As revoluções coloridas que foram mudando as cores
políticas do espaço pós-soviético já o tinham mostrado à saciedade. Porque,
sendo expressões genuínas de protesto, social e politicamente muito
heterogêneo, contra regimes autocráticos de perpetuação das novas
nomenklaturas, essas revoluções foram invariavelmente financiadas, equipadas e
politicamente apoiadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
A
disputa da influência sobre o espaço pós-soviético foi, pois, desde 1989, a
continuação da guerra (fria) por outros meios. Nessa disputa, a União Europeia
assumiu-se e foi assumida como referência sedutora, promessa de prosperidade
econômica e de cumprimento de todas as fantasias consumistas, a que acrescia a
chancela internacional de transições democráticas de baixíssima densidade e a
garantia de segurança contra qualquer tentação revanchista da Rússia.
O redesenho foi-se processando paulatinamente,
primeiro a coberto da falência do Estado russo e depois sob o compromisso de
manutenção do statu quo do anel de proximidade imediata da Rússia. A quebra
desse compromisso teve um primeiro ensaio em 2008 na Geórgia e a isso a Rússia
respondeu com cinco dias de metralha e o apoio estratégico à secessão da
Abecásia, da Ossétia do Sul e da Transnístria.
Agora
disputa-se a Ucrânia. Ou seja, disputa-se um mercado de mais de 40 milhões de pessoas,
disputa-se um importante produtor de alimentos e disputa-se um território até
agora nevrálgico para a passagem do gás da Rússia para a Europa. É uma disputa
entre credores. Por um lado, a Rússia quer aglutinar a Ucrânia no seu projeto
de integração regional - a Eurásia - juntando-a à Bielorrússia, ao Cazaquistão
e à própria Rússia. E como a um país falido não é preciso prometer mundos e
fundos para o cativar, bastou a promessa de um crédito de 15 mil milhões de
dólares e a baixa substancial do preço do gás natural para Kiev se inclinar
para esse lado. Por outro lado, a União Europeia - leia-se, a Alemanha - quer
atrair a Ucrânia como mercado e já anuncia a bem nossa conhecida
"inevitabilidade de reformas estruturais".
É
esta vampirização da Ucrânia pelas potências que está em jogo por estes dias.
Nesse jogo só há uma certeza: os ucranianos sairão sempre a perder, seja qual
for o credor que lhes couber em sorte. Haja ou não divisão do país em dois,
prevaleça a política como continuação da guerra por outros meios ou prevaleça a
guerra como continuação da política por outros meios, aos ucranianos será só
dada a mais sórdida das escolhas: entre o sufoco das liberdades às mãos dos
tiranetes de turno e o sufoco das vidas às mãos dos tecnocratas das reformas
estruturais. A tragédia dos povos da Ucrânia é essa mesmo: a história fez deles
peões de um jogo jogado sempre por outros. Que para qualquer desses outros, a
guerra ou a política - ou seja, a guerra quente ou a guerra fria - sejam apenas
escolhas técnicas para obterem os mesmos resultados só acrescenta tragédia ao
horizonte das gentes da Ucrânia.
A
análise é José Manuel Pureza e foi publicado originalmente no Diário de
Notícias, de Portugal.
Via
Carta Maior