As
tentativas de controle da internet por meio de legislação específica não são
novidade. Há muito o tema faz parte da pauta de discussões sobre a rede mundial
de computadores, seja como especulação, seja como certeza. Alguns países, como
a China, procuram meios eficazes de limitar o acesso de seus cidadãos aos
conteúdos que circulam livremente pela net, sem muito êxito. A atividade de
hackers libertários faz com que cada restrição seja acompanhada por uma ou mais
maneiras de superá-la, devolvendo ao público, ou à parte dele capaz de furar
bloqueios oficiais, a possibilidade de continuar navegando sem limites pela
rede.
A
novidade talvez esteja na elaboração de leis com alcance mundial, e aí o
conceito “novidade” aplica-se somente à regulação da internet. Outros setores
já estão há bastante tempo sob controle direto ou indireto dos grandes poderes
internacionais, como as atividades de importação e exportação, as reservas de
mercado, as finanças, a economia baseada na produção e na exploração de
conflitos armados. A atual onda de projetos de regulação do acesso a conteúdos
da internet vem num momento significativo, de recomposição do modelo
neoliberal; de avanço do pensamento conservador entre dirigentes europeus e, em
especial, estadunidenses; do fenômeno Wikileaks como desmascaramento das forças
e dos interesses que realmente movem o mundo e como detonador de potências latentes
em cidadãos até então prisioneiros do pensamento único; dos protestos populares
que, no mundo árabe, levaram à derrubada de dois ditadores e a uma nova
articulação entre as forças conservadoras para garantir-se no poder; do
surgimento de novos protestos, inspirados na Tunísia e no Egito, em todo o
planeta, para exigir o fim de um sistema econômico que privilegia seus
criadores/mantenedores em detrimento da grande maioria da população mundial, a
multidão de anônimos que produz a riqueza da qual se apropria a minoria
dominante, os chamados “1%”.
Mais
do que simplesmente penalizar aqueles que distribuem conteúdos cujos direitos
autorais estão nas mãos das grandes companhias da indústria do entretenimento,
os projetos de regulação da rede mundial de computadores visam a enquadrá-la na
lógica capitalista. Não que a rede tenha nascido e se desenvolvido fora desse
modelo – ao contrário, ela teve origem no Pentágono, o braço militar mais
evidente do capitalismo de ponta –, mas seu funcionamento descentralizado, que
transforma cada usuário em tomador de decisões e o conjunto deles em força
política de potencial ainda desconhecido, acabou levando a uma lógica própria,
mutante, criada no processo mesmo da utilização e bravamente defendida pelos
utilizadores, para os quais a internet significa a possibilidade de acesso a um
mundo que, por motivos variados, sempre lhes foi negado.
É
natural que nenhum usuário pretenda abrir mão dessa possibilidade e do que ela
traz na forma de contatos, trocas, informações, facilidades, conhecimento. Ao
contrário, quer-se ampliá-la, para permitir a exploração de novos usos e mais
socialização de saberes e descobertas. E isso inclui alguns elementos de risco
para o sistema que domina o mundo: organização na base das populações e as mudanças,
no poder político, que essa organização acarreta; perda de fontes de lucros;
incontrolabilidade de desejos, de decisões e de apropriação de novos
conhecimentos; abandono, por parte de cidadãos comuns, da sensação de
impotência, e certeza de que é possível mudar e moldar a realidade de acordo
com as conveniências da maioria e não segundo interesses impostos por alguns
como se fossem de todos; desmascaramento dos bastidores das negociações entre
poderes; vitrine para povos oprimidos por ditaduras, invasões civis e militares
e injustiças de toda ordem, além de fontes de informação variadas assegurando a
divulgação e a análise de aspectos diversos dos acontecimentos, o que leva,
entre outros fatores, a efeitos em rede, como a construção de conhecimento próprio
por parte do cidadão comum, o desmascaramento da mainstream media como
instrumento de manipulação política e o realinhamento da solidariedade
planetária segundo aquilo que os internautas testemunham e divulgam e não em
conformidade com o que o filtro das mídias ideológicas lhes oferece.
Não
é pouca coisa. Levando em conta esses fatores, além do fato de que as poucas
dezenas de transnacionais que comandam a economia – e, portanto, as decisões
que dizem respeito a todos nós – estão também sob a batuta do grupo que comanda
96% da mídia e da indústria do entretenimento nos Estados Unidos, não é difícil
montar a equação da necessidade, por parte desse grupo, de controlar a internet
e de mantê-la sob domínio absoluto. Como os EUA são o país militarmente mais
poderoso do planeta, e por isso em posição de ameaçar aqueles que desafiam suas
decisões, entende-se por que os projetos de lei mais restritivos em relação à
internet tenham se originado naquele país. Não estão em jogo apenas os
royalties do presente, mas o domínio político que garantirá os royalties do
futuro.
É
contra esse estado de coisas que se colocam aqueles que não aceitam a regulação
da internet, mesmo quando desconhecem o alcance de sua luta. Para que ela
avance diante de um inimigo tão poderoso é necessário fazer alianças com os que
também se opõem a ele e montar estratégias eficazes mas flexíveis, capazes de
adaptar-se aos vários estágios da batalha e às artimanhas de um adversário
disposto a vencer ou vencer. Também é necessário que todos tenhamos clareza do
que está realmente em jogo, para que o debate sobre direitos autorais e a luta
por uma internet livre não tropecem em armadilhas aparentemente de fácil
superação, mas na verdade extremamente vantajosas ao inimigo – incluindo o
enfraquecimento e a dispersão de seus oponentes.
Com
informações do RECID
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