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Zenilda Oliveira. (FOTO | Acervo pessoal de Heloísa Bitú) |
A descrição é densa, visto que são
memórias intensas!
Aos
18 de junho de 1929 nasceu Zenilda Gonçalves de Oliveira, à sombra de outra
Zenilda (Maria Zenilda) que Deus chamou antes de completar um ano de vida.
Diante do conhecimento da fatalidade da primeira, a segunda costumava dizer que
Deus levou a boa e que ela, a menos boa, daria mais trabalho pra ir. Filha de
Frutuoso José de Oliveira e Júlia Gonçalves de Morais, nasceu à beira da Lagoa
de Santa Teresa D´Ávila e se gabava de haver saído do lugar onde enterrou o
umbigo apenas para viver a maior parte do tempo de vida do outro lado da mesma
Lagoa.
(...)
Das
filhas de Seu Frutuoso, a Zenilda era a mais extrovertida, a mais
espalhafateira, desinibida, corajosa, determinada, opiniosa e o melhor:
desobediente! Certamente seria o gênio oposto da outra irmã que não chegou a
conhecer! De natureza indomável e gargalhadas únicas, esta geminiana não se
submetia às ordens dos irmãos mais velhos, permitindo apenas à ela mesma as
responsabilidades das escolhas sobre sua vida!
(...)
Quando
jovem, aproveitava as tardes de domingo indo ao forró no salão da rua nova,
acompanhada “das amigas de pagode” Bela Agostinho, Sinhorinha, Nenem
Rodrigues... Para ela as horas de imensurável alegria eram aquelas que junto
com as amigas engabelava Olival Frutuoso (irmão) pra não ir pra casa mais cedo!
Era
moça prendada, cozinhava bem, engomava roupa como ninguém, costurava e era da
labuta da roça também. Tinha boa mão para domesticar, plantar jardins e também
sabia tirar leite de cabra!
Adquiriu
matrimônio à beira dos seus 25 anos (um pouco tarde para o costume da época).
Sempre dizia que se casaria apenas com quem ela acreditasse que a trataria como
ela realmente merecia. A altivez na dignidade lhe rendeu o adjetivo de
“opiniosa”! A verdade é que a vovó sabia bem o que queria...
Ela deixou
claro para o meu avô, quando ainda namoravam, que ele teria de saber bem o que
queria com uma mulher feito ela... Teria de seguir à risca tudo aquilo que ela
acreditava ser louvável que um homem de caráter respeitasse!
Meu
avô prometeu... E cumpriu! Apenas a morte dele em 2001 os separou.
(...)
Por
volta dos 35 anos, meu avô Francisco Alves Bitú passou a desenvolver ataques
epiléticos. Tiveram 5 filhos: Francineuda Bitú de Oliveira (Mumu), Francenilda
Bitú de Oliveira (Didi), Francisco Bitú de Oliveira (Tico), Antônia Francilene
de Oliveira (Lena) e Francelma Bitú de Oliveira. A doença neurológica de meu
avô foi uma espécie de estigma social na vida dele, de minha avó e de seus
descendentes mas, o fato de ser tão “opiniosa” fez jus aos cuidados que Dona
Zenilda teve com ele até os seus últimos dias de vida. Por isso a vovó é pra
nós o exemplo dos sacrifícios que só o amor profundo suporta e atravessa.
(...)
A
vovó transpos o deserto da dor de ver uma filha partir para a morada eterna
antes dela mesma, e teve que endurecer para me acolher orfã quando eu tinha só
12 anos de idade. Com ela tive valorosos ensinamentos. A você vovó sou muito
grata por tudo o que foi e pelo continuará sendo pra mim! É verdade que a vovó
sempre me amou em todos os meus despropósitos e sonhos mais absurdos! O meu
sonho de me tornar arqueóloga foi um deles! Ela sustentou junto comigo que eu
não desistiria!
(...)
Quando
a pandemia veio, Deus, como foi difícil manter a vovó dentro de casa, sem as
visitas das amigas de prosa... (Neném Barros, Socorro de Diassis, Maria
Lourenço...)
Quando
a voinha saía na calçada pra pegar um ar fresco na cadeira de balanço,
reclamava que a rua era muito parada! Não passava um cristão, nem por reza! A
gente explicava...
-
Vó, estamos em pandemia! Tá todo mundo em suas casas, as pessoas não andam mais
nas ruas, vovó!
-
Tem notícias de Risalva? Antônio Bitú e Zelinda? Esse povo tá tudo dentro de
casa?
- Tá
vovó... eu tô vindo aqui de teimosa e pq a senhora já tomou a primeira dose,
vó! Nem era pra eu estar vindo aqui...
(...)
Sempre
que eu aparecia por lá, a tia Francelma contava uma história nova da vovó...
-
Mãe tem horas que não tá falando aprumado, não! Acredita que comadre Angelita,
comadre Francisca e Titia de Mãe Gulora vieram aqui... e depois que saíram
perguntei:
-
Mãe sabe com quem passou a tarde conversando hoje?
-
Uma muié aí... uma conversa até boa... mas não sei não... Era Maria Firmino?
(...)
Me
gabei por uns dias... Pois ela esquecia um bocado de gente mas, se eu chegasse
lá a tia fazia questão:
-
Agora eu quero ver!
Quando
Luan tava estudando na Profissionalizante todo dia a pergunta era a mesma...
- E
por onde tú andou em Nova Olinda, tú viu Heloísa?
Se
eu chegasse e a tia perguntasse pra ela quem era... ela olhava, fazia cara de
risinho faceiro e respondia...
-
Vocês tão sendo besta? É a Heloísa.
Eu
gaiteava... e me exibia!
Depois
até de mim ela não lembrava o nome! Parece que reconhecia a fisionomia, porque
olhava pra mim e sorria... Tinha um xodó com Maya... Nunca deixava ela sair de
mãos abanando... Corria na bolsinha e tirava uma notinha pra dar pra bisneta
chupar um picolé! Eu voltava pra casa de coração quentinho!
(...)
Entretanto,
os lapsos começaram a ficar mais presentes! E até os benditos da igreja que eu
cantarolava com ela... vez ou outra só arranhava a melodia... letra que é bom,
necas!
Foi
dureza demais pra mim a cada visita diagnosticar um esquecimento diferente! Eu
não conseguia mais ficar sem chorar! A conversa não fluía... nem os causos de
antigamente ela sabia mais contar direito! Eu fui entrando no luto... sabendo
que a minha cangaceira preferida estava indo devagarinho... não tinha mais a
voz imponente, nem a coragem à punho! Valentia? Já não tinha... Não era mais a
vovó Zenilda!
Depois
eu comecei a voltar... Levar Maya... Sorrir com as presepadas da veinha, que
vez ou outra sabia o que a gente estava proseando na frente dela e outras vezes
parecia alheia ao mundo!
(...)
Fazia
dias que eu não dormia com ela! Então, na véspera do aniversário de morte da
mamãe eu decidi que ia com Maya!! Ela queria ver a Bisa e eu tbm.
A
vovó estava meio agitadinha... queria ir comigo pro Festival de Quadrilhas pra
no caminho deixá-la na casa da irmã mais velha! Que já morreu, por sinal!
Foi
peleja pra convencê-la a ficar! Tive que dizer que ia pro Cabaré! kkkkkk. Ela
ficou meio contrariada mas, se aquietou.
No
dia seguinte, passei o dia do ladinho dela! Conversamos algumas coisas,
arranquei alguns sorrisos e lá pelas tantas...
- Vó
eu já vou, viu?
- Tú
vai pra onde?
-
Pra Nova Olinda! Vou pra minha casa!
- E
tú vai de quê?
- De
carro.
- O
carro vem te buscar aqui?
- É
sim! Tá chegando já...
-
Apois me leva mais tú! Tú me deixa na entrada da rua, na casa de Lindave.
-
Vó, hoje é domingo! Lindave não está em casa! Deve ter saído com Domingos Gino!
-
Deixe de conversar besteira! Tá em casa sim! Domingos Gino tá adoentado e ela
tá em casa cuidando dele! Me leve lá que eu tenho que conversar com ela! Mãe
foi pro Juazeiro e ainda não chegou!
- Vó
e se eu passar por lá e ela não estiver em casa? Vou ter que voltar pra trás
com a senhora... e eu não posso me atrasar! Bora fazer assim... Eu passo por
lá, dou o recado e peço pra ela vir aqui! Se ela não vier, é porque não achei
ela em casa!
- Tú
faz isso mesmo? Não. Eu acho melhor eu ir... Me leva mais tú mulher, bem ali na
entrada da rua! De carro num instante a gente chega lá... eu fico e tu vai tua
viagem!
- Vó
eu tô trabalhando aqui pela manhã... Amanhã, eu volto e passo por aqui e a
gente resolve isso, tá?
-
Bença, vó?
-
Deus te dê vergonha!
-
Vem cá Maya, dá bença pra bisa... a gente já vai.
-
Deus lhe faça, feliz!
(...)
Voinha
foi dormir umas 19:00h. No dia seguinte demorou a levantar como de costume. O
que fez a tia estranhar, pois já tinha ido duas vezes olhar e ela dormia
serena! A manhã era fria e a tia Francelma, não quis chamar, decidiu esperar
mais um tiquinho. Foi às 08:30, às 09:00 e tudo quieto...
Achou
estranho... Às 09:30 voltou... voinha não passava bem. A tia percebeu que não
estava legal, pois não abria nem os olhos!
Voinha
foi socorrida imediatamente! Acompanhada por médica, enfermeira e a tia pro
Hospital Regional em Juazeiro!
Voinha
do jeito que chegou no hospital, permaneceu! Como quem dorme...
Voinha
foi dormir no dia de aniversário de 25 anos que perdeu a filha... e não
acordará mais!
Durante
estes dias de angustia e aflição com ela na UTI aprendi que o bem mais valioso
que alguém pode adquirir na vida se chama memória!!!
Enquanto
estivermos na memória de alguém continuamos vivos - ainda que pensemos que a
memória afetiva é uma construção subjetiva daquilo que vivemos, sentimos...
Permanecer
vivo é ser lembrado.! (não é a toa que a frase virou marketing de sucesso)... e
quer admitamos ou não, ninguém constrói um bem valioso como este tão somente
sozinho!
Nesta
perspectiva, a memória afetiva requer a construção de uma teia estabelecida
com/para o outro. Se uma das partes esquece, não decreta apenas a própria
morte, mas a do outro também! E que doloroso é morrer para quem se ama!!!
Nestes casos é como se, ainda que vivo, tivéssemos morrido!
(...)
Quando
a vovó não mais distinguia quem era quem... Deus, como foi doloroso! Tanto, que
para continuar as visitas em sua casa, tive de pensar em algo que pudesse
transpor essa constatação. Criar novos vínculos!
Lembrei
que cantar os benditos na igreja, era algo que a minha avó materna amava!
Então, mudei a estratégia e tratei de tecer teias fincadas naquilo que para nós
seria algo inesquecível! O caminho foi a música! E é certeza que agindo assim
estabeleci novos vínculos com ela, novas memórias afetivas e adiei o nosso fim
por mais alguns dias.
(...)
A
vida pode ser dura mas, também pode ser engraçada!
Durante
o confinamento em decorrência da pandemia fiz uso de leituras que considero
transformadoras para atravessar desertos emocionais!
A
primeira delas foi um livro de Laura Gutman chamado: A Maternidade e a busca
pela própria sombra - o resgate do relacionamento entre mães e filhos. Na
ocasião eu imaginava que ele pudesse me orientar para ser uma mãe melhor! E na
verdade, o que consegui ser, acredito eu, foi uma filha/neta de melhor
percepção!
Entre
uma página e outra, eu observava o comportamento da minha avó e refletia sobre
a maternidade dela, a da minha mãe e a minha... Aquilo foi um exercício muito,
muito, valioso!
Sempre
que eu aparecia na vovó ela me questionava:
- Tú
já merendou hoje? Em cima da mesa tem bolo e banana, tira lá uma torinha de
bolo pra tu comer!
- Tu
vai almoçar hoje onde? Aqui eu não coloco mais a panela no fogo, recebo o prato
na mão! Tu quer uma nota pra ir almoçar na rua?
- Não
vovó, eu já estou alimentada!
Somente
durante a pandemia, percebi que a vovó fracionava a aposentadoria! E já no
início do Alzheimer notei que ela às vezes se levantava da poltrona, ia nas
gavetas e esconderijos dos armários, procurava algo, voltava pra cama, olhava
debaixo do travesseiro, levantava os lençóis e já meio invocada indagava:
-Tu
viu quem foi que veio aqui e levou minha bolsinha de algodão cru que tem uma
alça de pano?
-
Por acaso, não é essa aí que está pendurada no seu pescoço, vovó? Hahahahahaha
Ela
abria o zíper, contava as notinhas, separava uma nota na mão e organizava o
resto na bolsinha! Fazia isso inúmeras vezes!
Certa
vez, me contou que precisou de um dinheiro pra fazer alguma coisa que queria e
pediu pro meu avô. Só porque ele perguntou pra quê ela queria... Nunca mais ela
pediu!
-
Ora, pra quê é que a gente quer dinheiro...
Tratou
de criar tudo quanto era bicho no quintal pra vender e ter seu próprio
dinheirinho!
A
vovó era vista como uma pessoa durona, altiva, opiniosa e por vezes
autoritária! Não gostava de beijos (chamava tirar a pagode), detestava
aniversários (achava uma bobagem), se gabava por nunca ter sentido vontade de
ir à São Paulo ou se largado de onde enterrou o umbigo! Entretanto, o tempo foi
cansando a veinha e ela já aceitava os beijos e assoprava as velinhas sorrindo!
A
vovó tinha dinheiro pra tudo! E sempre me dizia que na vida só não há jeito pra
morte! O resto...
A
tia Francelma aparecia com o almoço e ela dava uma notinha pra comprar o bolo
do café da tarde.
Maya
aparecia saltitante, ela dava uma notinha pra ir comprar bombom.
Luan
aparecia desconfiado, ela dava uma notinha pra ir comprar um pote de sorvete.
Olhava
pra mim e dizia: essa pega pra tu ir almoçar lá nos “café” de quem tiver
aberto!
É
claro que a sabedoria da vovó me foi muito eficaz para não desistir do que eu
queria mas, dolorosamente também aprendi que existem situações na vida, das
quais não há jeito que dê jeito (não apenas a morte)!
Quando
Maya tinha 5 anos, perguntei o que ela queria ser quando crescer... De
prontidão respondeu:
-
Quero ser igual a Bisa que só fica na cadeira de balanço dando dinheiro pra
quem passa!
E
esse era o jeitinho dela de cuidar dos seus!
(...)
Lembro
de mais um ensinamento:
-
Para as causas impossíveis: fé e oração, minha neta!
Despertei
por volta de meia noite e meia e decidi aproveitar os lampejos de criatividade
e a explosão de ideias que me ocorreu. Tais estalos sempre se sucedem em período
noturno! Habitualmente, neste interim, alcanço a melhor atividade neurológica.
Acatar o ímpeto de levantar e escrever é a única alternativa que me resta, se
quiser voltar a descansar depois.
Debulharam-se
muitos parágrafos, de modo que já não consigo aqui quantificar mas, que foram
interrompidos pela ligação telefônica do Hospital Regional. Era a médica de
plantão na UTI que apeou a notificar a passagem terrena da vovó. Como quem
intuía a motivação da comunicação, recebi a informação sem surpresa ou
afobação! Me ocorreu apenas perguntar o horário da passagem, agradecer a
atenção e solicitar informações acerca dos rituais de liberação do corpo.
Com
tranquilidade lembrei da orientação da vovó e da última canção que cantamos:
-
Para as causas que você considere impossíveis apenas fé e oração, Heloísa!
(...)
“Se
as tristezas desta vida quiserem te sufocar
Segura
na mão de Deus e vai
Segura
na mão de Deus, segura na mão de Deus
Pois
ela, ela te sustentará
Não
temas segue adiante e não olhes para trás
Segura
na mão de Deus e vai
Segura
na mão de Deus e vai
Orando,
jejuando, confiando e confessando
Segura
na mão de Deus e vai
Segura
na mão de Deus e vai
Jesus
Cristo prometeu que jamais te deixará
Segura
na mão de Deus e vai...”
Voinha
queremos lhe prestar nossa última homenagem e agradecer! Agradecer o amor.
Agradecer os dias de alegria. Agradecer os incentivos. Agradecer os conselhos.
Agradecer a atenção e os cuidados. A proteção, as orações e os dinheirinhos
escondidos que andou destribuindo! Caminha na luz e vai sem lembrar ou se
preocupar por nós, pois já não precisa mais! Teu rebanho da pronto pra caminhar
sem ti.
Deus
esteja contigo e conosco!
Heloísa
Bitú.
21/07/2022.