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O crespo é livre: belo e ancestral, cabelo afro resiste ao racismo estético

 

Renata Varella reforça a importância da rede de apoio entre mulheres negras (Foto: Leo Martins).

Black Power, rastafari, com dreads, cacheados, encarapinhados… Os cabelos das mulheres pretas chegam a este 13 de maio — data que marca a abolição da escravidão — livres e como um dos maiores símbolos da negritude ao lado da pele. Protagonista do debate racial desde sempre, ele volta à roda no Brasil de hoje com o resgate da ancestralidade, na ressignificação do conceito de beleza e na denúncia do racismo estético. Na última semana, por exemplo, ao defender seu crespo, uma mulher negra mobilizou o metrô de São Paulo a externar o preconceito sofrido por ela, após uma senhora branca declarar que temia “pegar doença” ao encostar em seu cabelo.

Estudante negra é proibida de entrar na escola por não ter cabelo liso

(FOTO | Reprodução).


Por causa dos cabelos crespos, a estudante Eloah Monique Tavares, 13 anos, foi impedida de entrar na escola militarizada onde estuda, por um funcionário também negro e militar reformado. O episódio aconteceu no Colégio Municipal Doutor João Paim, em São Sebastião do Passé, na Região Metropolitana de Salvador, no dia 21 de março, e está sendo acompanhado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA). A unidade de ensino e as demais do gênero na Bahia poderão agora ser obrigadas a rever as regras de ingresso nos estabelecimentos. A família da estudante registrou boletim de ocorrência na Polícia Civil e, segundo o advogado da mesma, ações nas áreas criminal e cível já estão em andamento. O episódio gerou uma série de denúncias do mesmo teor, que também serão apuradas.

Segundo Eloah, que cursa a 7º ano do ensino fundamental, a cena protagonizada por ela aconteceu na porta da escola e foi testemunhada por outros estudantes e pais de alunos, que nada fizeram, se limitando a acompanhar tudo em silêncio. “Quando cheguei na entrada do colégio, o inspetor falou que meu cabelo estava muito ‘inchado’ e que eu não estava adequada para assistir as aulas”, disse a estudante ao Correio.

Segundo ela, mesmo argumentando que morava longe, o inspetor de ensino insistiu nas ofensas. “Ele disse que eu precisava alisar o meu cabelo porque estava fora dos padrões. Quando fui embora, chorando, bastante estressada, e já atravessando a rua, ele começou a gritar comigo, dizendo que se eu não me adequasse, minha mãe teria que pedir minha transferência para outro colégio”.

Regras

O motivo da polêmica, segundo a estudante, foi a falta de “redinha” de prender o cabelo, acessório obrigatório para os estudantes, segundo o regulamento.Eu sempre usei essa redinha, tenho consciência das regras, mas perdi a minha e avisei que isso tinha acontecido. Fui duas vezes pra aula sem essa rede para o cabelo e só na terceira aconteceu esse problema todo.”

Monique considera que foi vítima de racismo e afirma que vai continuar frequentando a mesma escola. “Eu e minha mãe decidimos isso. Sei que não é o colégio que faz as regras, mas o regime militar. Infelizmente, fui vítima de racismo sim. O jeito que o inspetor falou comigo foi muito agressivo, muito ofensivo”, lamenta.

A vigilante Jaciara Tavares, 31, mãe de Eloah, também considera que a filha foi alvo de “preconceito rasgado”. Ela admite que a única falha da filha foi não usar a rede que cobre o coque, mas argumenta que nada justificaria a não aceitação de cabelo crespo, “que é naturalmente mais volumoso, mesmo quando preso”. “Proibir o estudante de ter acesso à escola só porque ele tem cabelo duro é indignante, constrangedor. Eu e minha filha nunca passamos por situação parecida antes, pelo menos dessa forma , tão descarada”, lamenta. A possibilidade de mudar a filha de escola, segundo ela, chegou a ser cogitada, mas ambas chegaram ao consenso de que Eloah é, agora, “porta-voz de todas as meninas negras”.

Tortura

Para o advogado da família, Marcos Alan Hora, trata-se de indiscutível prática de racismo. “É crime emblemático impedir o acesso de um estudante a qualquer estabelecimento de ensino, sobretudo público, simplesmente por causa de seu cabelo e, principalmente, quando a vítima é menor de idade”, disse.

De acordo com Horta, a conduta do policial reformado que trabalha na escola é respaldada por uma decisão interna da instituição e que, por isso, cabe um termo de ajuste de conduta (TAC) para alterar ou eliminar as regras vigentes. “Esperamos que essas regras, pelo menos, mudem. O próprio movimento negro da Bahia está atuando para que isso ocorra, e que o fato seja devidamente apurado e reparado. É degradante julgar uma pessoa por sua origem genética no afã de atender a uma norma ou formalidade. Além de racismo, é uma prática de tortura”, assevera.

Ele afirma que na esfera cível cabe indenização por danos moral e material e, na criminal, o autor do delito deverá responder por prática de racismo. E cita o artigo 6º da Lei 7.716, que estabelece que a recusa, negação ou impedimento a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau prevê reclusão de três a cinco anos e que a pena pode ser agravada se o crime for cometido contra menor de idade.

O combate ao racismo começa com a denúncia. Trata-se de uma prática executada no dia a dia de forma natural. É um sentimento malévolo, degradante para uma pessoa negra, experimentar esse tipo de violência. Por isso, é imprescindível denunciar, buscar punição para os agressores”, defende Hora.

Injúria

A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) etá acompanhando o processo. A defensora Eva Rodrigues engrossa o coro dos que consideram o caso como racismo, e solicitou à escola esclarecimentos sobre a conduta do funcionário. A DPE-BA instituiu neste ano o selo “escola antirracista” e também lançou um livro com histórias e orientações voltadas aos pais, além de indicar publicações correlatas, visando diminuir as práticas racistas nas escolas.

Infelizmente, crianças e adolescentes negros sofrem racismo de maneira cotidiana, das mais diversas formas, também no ambiente escolar. Essa que a aconteceu São Sebastião do Passé é uma situação, muito provavelmente, de injúria racial”, declarou a defensora Larissa Rocha.

A escola informou que no momento da matrícula os estudantes, pais ou responsáveis são orientados sobre as normas disciplinares da instituição, e a eles são fornecidas cartilhas e cópias do regimento interno. Alegou aina que o colégio segue o “regimento padrão do ensino militar”, que inclui regras disciplinares e normas sobre vestimentas, penteados, cortes de cabelo, fardamento, uso de calçados e outros itens. Além disso, informou que, por três dias consecutivos, Eloah foi alertada sobre o penteado indevido, e que lhe foi dado um prazo para que ela procedesse os devidos ajustes.

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Com informações do Correio Braziliense e do Geledés.

Conheça a história da discriminação do cabelo crespo no Brasil

(FOTO/ Reprodução/The J Report).

O cabelo crespo, característica estética encontrada em boa parte da população negra, carrega em si alguns tabus. Em uma cultura que valoriza traços e aspectos brancos e eurocêntricos, o preconceito contra quem não faz parte deste grupo ainda existe no Brasil, apesar de pretos e pardos representarem a maior parte do conjunto populacional do país.

Um estudo publicado em 2021 na revista Social Psychological and Personality Science mostrou que candidatas negras aos mais diversos cargos de emprego no mundo todo – com penteados naturais ou usando tranças afro – são percebidas como menos profissionais do que negras com cabelos alisados.

No entanto, não é de agora que o cabelo crespo sofre com microagressões de cunho racista, ou até mesmo é colocado em uma posição de “feio”, “sujo” e “duro”. É o que explica a socióloga Anita Pequeno, autora do artigo “História Sociopolítica do Cabelo Crespo”.

As mulheres negras conhecem a violência do racismo desde muito cedo, principalmente através da maneira como a sociedade taxa o cabelo crespo como ‘ruim’. Acredito que esse é um dos discursos racistas mais abertamente postulados”, afirma a socióloga.

Anita explica que, de modo geral, os primeiros esforços de transformação do corpo negro começam na infância, com o desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo, através do alisamento capilar. No entanto, embora compartilhem da crença na importância simbólica do cabelo, de acordo com ela, os estudiosos das relações raciais mostram que a importância específica do cabelo para negros e negras é irrefutável, devido ao seu legado histórico e político específico.

No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça. Fora todas as tensões que existem quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos”, ressalta a pesquisadora.

Marca identitária

De acordo com a professora universitária e escritora estadunidense Ingrid Banks, na obra “Hair Matters”, nos anos 1960, debates sobre o que as práticas com o cabelo crespo representam entre mulheres negras surgiram na academia. Quando o Feminismo Negro chega às universidades, está fortemente associado à necessidade de autodeterminação das mulheres negras sobre a sua própria estética.

A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade”, diz Banks, em um trecho da obra.

No livro “400 years without a comb”, que aborda a importância dos cabelos para a população negra, o autor Willie Morrow afirma que o pente garfo era um artefato cultural muito valorizado na África. A escravidão, no entanto, forçou os escravizados a abandonar essa tradição, sendo retomada mais tarde, por meio do avanço na discussão da estética negra.

Além de deixar o pente para trás, a escravidão também significou a perda da liberdade, da dignidade e do amor-próprio. Os homens negros, por exemplo, diante da nova realidade de negação da sua humanidade e, consequentemente, da sua beleza, muitas vezes cortavam os cabelos extremamente curtos – o que era muito perigoso devido à exposição ao sol no trabalho escravo”, diz o livro.

Junto com a imposição de um novo padrão estético, os pentes africanos, ideais para o cabelo crespo, foram substituídos por novos artefatos completamente inapropriados para o trato com aquele cabelo. Não é à toa que, frequentemente, é dito que alisar o cabelo é mais simples e fácil de cuidar; ora, isso é verdade, se o regime de cuidado é moldado por assunções da branquitude”, complementa a socióloga Anita Pequeno.

Cabelo crespo no Brasil

A negação da beleza negra é parte estruturante do racismo, que busca desumanizar suas vítimas. O cabelo crespo surge como uma questão desde muito cedo na vida dos negros, sobretudo, das mulheres. A manipulação dessa parte do corpo tende a protagonizar os seus rituais de beleza, mesmo durante a infância”, salienta Anita.

No Brasil, o artigo História Sociopolítica do Cabelo Crespo explica que no final do século XIX, já perto do fim da escravidão, tomava força um modelo racial de análise em resposta à miscigenação, a qual era tida, naquele contexto, como um grande “tumulto”.

Diante do enfraquecimento da escravidão, que resultou em seu fim, e da necessidade de realização de um novo projeto político para forjar uma identidade para o país, os modelos raciais se tornaram um caminho de negação à civilização dos negros e negras.

O artigo ainda pontua que o mito da democracia racial, ao negar uma realidade, criava uma dificuldade maior para o povo preto: a de ter de enfrentá-la e superá-la. Nesse momento, segundo a socióloga e autora do artigo, era preciso “reeducar a raça”.

Ela explica que no Brasil pós-abolição, com a voz dos negros endereçada aos negros, a ideia era eliminar os estereótipos consagrados pelos séculos anteriores: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça” e a hiperssexualidade da população preta. Para isso, concursos de beleza foram promovidos por esse grupo a fim de, além de auxiliar na construção de um conceito de beleza negra, responder à imagem da “mulata promíscua” que surgiu na escravidão .

A pesquisadora pondera ainda que apesar de as três primeiras décadas do século XX terem ficado marcadas pelos resquícios do período escravista, a imprensa foi fundamental para disseminar voz e dar visibilidade e espaços de sociabilidade aos negros.

Tanto que o que a publicidade ‘vendia’ era um ideal de beleza eugênico, historicamente construído e perpassado por relações de poder. Naquele contexto de romper com os estereótipos, o alisamento capilar também era uma maneira de ascender. Ou seja, a busca por uma inserção social passava pela estética, ainda que isso custasse uma profunda manipulação de seu corpo”, ressalta.

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Com informações do Alma Preta. Leia o texto completo aqui.