“Juarez
Macaco.” “Unesp cheia de macacos
fedidos.” “Negras fedem.” As
frases nas paredes de um banheiro no campus Bauru da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), no final de julho, escancaram o
racismo crônico brasileiro. O desprezo não poupa ninguém com raízes africanas.
Mesmo alguém que tenha vencido a discriminação e alcançado título de docente
numa universidade estadual. Aos 55 anos, Juarez Tadeu de Paula Xavier,
professor do curso de Jornalismo, cravou, em entrevista à TV Unesp: “Os banheiros sempre serão porta para esses
comportamentos. Mas de forma tão orquestrada assim é a primeira vez que eu vejo”.
Publicado
originalmente no Ceert
O
preconceito de raça tem raízes profundas, do tempo em que o homem habitava as
cavernas. Embora sua origem tenha explicação na necessidade de defesa para
garantir assim a sobrevivência, a discriminação resulta de aspectos biológicos
articulados com sociais e ambientais ao longo do tempo. No século 19, quando
apenas os povos europeus eram considerados civilizados, raça era considerada
fundamental para definir o potencial “civilizatório” de uma nação. Segundo a
teoria predominante na Europa na primeira metade do século 19, o evolucionismo
social, a espécie humana é uma só, mas se desenvolveria em ritmos desiguais e
passaria pelas mesmas etapas até atingir o último nível que é o da
“civilização”.
No
topo estaria a “civilização” europeia e na base, os povos negros e indígenas.
Uma teoria criticada por considerar apenas critérios ocidentais de progresso.
A
partir da independência do Brasil, em 1822, a identidade nacional foi para o
centro do debate. Estudiosos estrangeiros viam o país como um laboratório
racial por causa da miscigenação. O naturalista alemão Von Martius, ao defender
que a trajetória social brasileira funde o branco, o negro e o índio, venceu em
1844 o concurso “Como escrever a História
do Brasil”, de um recém-criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com
o fim da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, é
concedida igualdade jurídica a todos os brasileiros. Em 1890, é promulgado o
primeiro Código Penal republicano. Quatro anos depois, o médico baiano Nina
Rodrigues publica As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Sua
intenção era definir critérios diferenciados de cidadania para negros e
brancos.
Ganhava
força o determinismo racial, teoria criada na segunda metade do século 19 por
cientistas europeus. Para eles, a raça determinava as características físicas,
o caráter e o comportamento dos indivíduos. A preservação de “tipos puros”
seria o remédio contra a degeneração racial e social causada pela mistura de
raças. Temiam as características físicas e psicológicas do mestiço, até então
desconhecidas. Acreditavam que a miscigenação poderia inviabilizar o Brasil
como nação.
O
livro A Curva Normal (1994) tentou consolidar um suposto conceito de raça.
Segundo seus autores, os norte-americanos Charles Murray e Richard Herrnstein,
a inteligência seria mais generosa entre os brancos, especialmente os mais
ricos. Sem fundamento científico, o trabalho remete ao pensamento da metade do
século 19, aferindo os “limites” da raça negra, biologicamente incapaz de se
adaptar à “civilização” que se impunha.
A
ciência, no entanto, mostra que existe apenas uma raça humana: a que surgiu na
África. Em 2002, pesquisadores norte-americanos, franceses e russos se
dedicaram a comparar 377 partes do DNA de 1.056 pessoas provenientes de 52
populações de todos os continentes. Concluíram que 95% da diferença genética
entre os seres humanos está nos indivíduos de um mesmo grupo, e que a
diversidade entre as populações é responsável por menos de 5%. Ou seja, o
genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que
com o de alguém que tenha nascido na África, de família negra.
A
descoberta veio a confirmar que raças são populações que apresentam diferenças
significativas quanto à frequência de seus genes, embora exista entre
diferentes raças um grande número de genes em comum, como aqueles que formam o
fígado, por exemplo, conforme explica o pioneiro da genética humana no Brasil,
Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010).
Para
ele, o conceito de raça é comparativo porque a “raciação” é um processo longo e
contínuo, produzindo raças dentro de raças, é o grau de diferença entre as
raças varia. E mesmo que um grupo étnico indique o conjunto de suas
características culturais e genéticas, as raças não são estáticas porque
representam estágios de evolução em constante mudança.
O bem da mestiçagem
O
determinismo racial começou a ser descartado a partir de 1933, com a publicação
de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. O mestiço é alçado à
principal marca da originalidade nacional e os símbolos étnicos negros são
transformados em símbolos nacionais. Exemplo disso é o samba carioca,
consagrado no país e no exterior como ícone da diversidade racial e cultural.
Surgido na década de 1910, nos redutos negros dos bairros da Saúde, Gamboa e
Cidade Nova, nas casas das lendárias “tias baianas”, como a famosa Tia Ciata, o
samba foi ganhando espaço no Brasil e no mundo. Tanto que, em 1922, Paris
recebeu o conjunto musical Oito Batutas, do qual faziam Pixinguinha e Donga –
que assina ao lado de Mauro de Almeida a autoria de Pelo Telefone (1917), o
primeiro samba gravado.
A
obra de Freyre foi divisor de águas para o entendimento do racismo como
subproduto de conflitos de classes, pondo abaixo qualquer interpretação de
ordem biológica, genética ou evolucionista.
Último
país a abolir a escravidão, o Brasil ainda preserva o preconceito contra
afrodescendentes, embora em diversas pesquisas a maioria declare não ser
racista. O racismo definido pelo cientista social Florestan Fernandes
(1920-1995) como “o preconceito de ter preconceito” leva muita gente a chamar
uma pessoa negra de mulata, escurinha ou moreninha.
A
partir de 1989 o racismo passou a ser um crime inafiançável. A pretensa
igualdade racial, porém, não se ampara no cotidiano. Os indicadores sociais
também não são um atestado de fé para nossa democracia racial. O Censo do IBGE
2010 mostra que 52% da população se autodeclara negra e parda. Mas do total dos
10% mais pobres do país, 70% são negros. A renda média mensal dos que não têm
instrução é de R$ 1.284 entre os brancos e R$ 1.038 entre os negros. Entre as
brancas, essa média é de R$ 925, e de R$ 658, para as negras. Segundo um estudo
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2014 a chance de um
adolescente negro ser assassinado era 3,7 vezes maior do que a de um
adolescente branco.
Algumas
iniciativas vêm sendo tomadas para combater o racismo. Há cinco anos foi
promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, que determina a promoção da
igualdade de oportunidades. Por meio dele foi criado o Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, para articular políticas das três esferas do
governo, as cotas nas universidades e no serviço público, além da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Há
ainda a Lei 10.639/03, que determina o ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena nos currículos de Ensino Fundamental e Ensino Médio
nas escolas. É possível que a partir do momento em que seja posta em prática, a
disciplina possa contribuir com a formação de uma nova visão a respeito de
nossa formação. Como a lei mal saiu do papel para a maioria das escolas, essa
omissão ilustra tanto o racismo oculto brasileiro como o papel omisso do
sistema educacional em suas origens.
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Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor e pesquisador (reprodução). |
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