8 de março de 2023

Sou uma mentira

 

Alexandre Lucas. (FOTO| Acervo Pessoal).


Por Alexandre Lucas, Colunista

Já confundo todos os olhares e desconheço todas as luas. Construo versos para trincar certezas e já não me deito na cama para enganar o coração. É tempo de amor, porque ele nunca sai de moda.

Sou toda mentira que o amor é capaz de fazer. Inventei na palavra que o amor era maior que a imensidão do universo e previsivelmente mais quente que o sol, fui dogmática e professei que o amor era eterno. Lógico que dopada e embriagada pela realidade alienante.

Eu espedaçada, fui triturada, mas o amor nos faz mosaico, um todo formado de pedaços. Enquanto me deito, não espero nada, mentira, estou esperançando e de vez em quando sonho, nem tudo é desespero. Ainda vejo estrelas e mares nos olhos. Estou vivinha, ainda, assim quero ficar. Porque dizem por aí que o amor é perigoso, vejo nas manchetes dos jornais flores, infelizmente nós caixões.

O amor é um bicho louco. O amor me esperou na esquina. Teve uma vez que passou no trem. O amor ficou em casa guardado nos livros. Apareceu cansado e o vi pelas frestas. O amor é teimoso e não obedece a razão. É carne, fogo e furacão, mas é também são manhãs de domingo mais preguiçosas, as equações de sexto grau, que não sei nem o que é, só sei que são de difícil resolução, principalmente para mim que não tenho nenhuma intimidade com a matemática.

Depois que cercaram as terras, o amor ficou tão desigual que desconfio que ele foi reinventado.

7 de março de 2023

Bancada do Livro chega à Câmara Municipal de Fortaleza

 

(FOTO | Aglécio Dias).

Quem está contente no mundo político é o deputado federal Idilvan Alencar. Ele que lançou a professora Adriana Almeida como candidata a vereadora em 2020 e, hoje (07), ela assumiu uma cadeira na Câmara Municipal de Fortaleza, com a ida de Guilherme Sampaio para a Assembleia Legislativa.

Adriana é mais uma parlamentar da chamada “Bancada do Livro” liderada por Idilvan, que tem profissionais da educação ocupando espaços nos parlamentos de vários municípios do Ceará.

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Texto da assessoria do deputado Idilvan, encaminhado a redação do Blog.

5 de março de 2023

Lula se compromete a acelerar a titulação de terras quilombolas no Brasil

 

(FOTO | Pedro Borges | Alma Preta).

Lideranças do movimento negro e quilombola, como Douglas Belchior, Dulce Pereira e Aline Mendes, estiveram reunidos com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e apresentaram uma carta com pedido de compromisso do presidente eleito no combate ao racismo ambiental e à garantia da justiça racial. A importância de titulação das terras quilombolas também foi reforçada pelo movimento negro durante o encontro.

Se a gente não fizer agora com rapidez o reconhecimento dos quilombos brasileiros, o processo demora muito. A burocracia não permite que as coisas que parecem fáceis, sejam fáceis. Então eu voltei com a disposição de fazer o que eu não fiz da outra vez, fazer mais e com mais competência e mais qualidade”, destacou Lula no evento.

Ao longo do encontro com a sociedade civil, também foram entregues a Lula cartas e demandas dos povos originários, das juventudes e das populações das periferias, que destacaram a importância de participação nas decisões sobre políticas públicas que os afetam. “Nós vamos retomar as conferências nacionais para que o povo decida qual é a política pública que entende ser a correta para o meu governo colocar em prática”, afirmou Lula.

O encontro, realizado nesta quinta-feira (17), foi organizado pelo Brazil Climate Hub, espaço da sociedade civil criado desde a COP25, em Madrid, na Espanha. Alguns nomes anunciados para a equipe de transição do governo estiveram presentes na reunião, como Célia Xakriabá, Douglas Belchior, Fernando Haddad, Joênia Wapichana, Marina Silva e Sônia Guajajara.

A carta feita pela Coalizão Negra por Direitos destaca a presença de integrantes da organização durante a COP 27, em Sharm El Sheik, Egito. Os participantes ressaltam a necessidade de manter o aquecimento em 1.5 C até 2030, de acordo com as previsões do IPCC.

O movimento negro, unido ao movimento dos povos originários e unido ao movimento dos povos tradicionais, aprofundou o debate sobre a questão climática. Hoje, para nós, isso é fundamental. Não existe justiça climática, sem enfrentamento ao racismo”, disse o historiador e fundador da Uneafro, Douglas Belchior.

A importância da adaptação para as mudanças climáticas também é destacada na carta produzida pelas organizações negras para o presidente eleito. "No Brasil, a população negra está diretamente afetada pelos impactos das mudanças do clima nas cidades, e no campo estamos vivendo a emergência climática. Mais de 60% da população negra no país está diretamente impactada pelos eventos extremos do clima devido às condições de moradia, alimentação, saúde, acesso à terra urbana e rural, trabalho e renda, mobilidade e localização", afirma a Coalizão.

O documento das organizações negras - que já reúne 256 assinaturas - ressalta que as bases de conhecimento em saberes tradicionais, técnicos, científicos e tecnológicos da população negra devem ser consideradas para o alcance das metas de sustentabilidade climática e social.

Durante o evento, Lula também falou sobre a importância de se garantir a proteção das terras indígenas. “Se a gente não resolver as questões sociais, não vale a pena a gente governar esse país. É por isso que vamos criar o Ministério dos Povos Originários, porque a gente precisa fazer uma mudança completa na nossa relação com os indígenas desse país”.

Além disso, o presidente eleito contou que terá uma conversa com o secretário-geral da ONU, António Guterres, em que pretende cobrar um posicionamento mais contundente dos países signatários dos acordos e metas climáticas. “Os fóruns da ONU não podem continuar sendo fóruns de discussões teóricas intermináveis e que, muitas vezes, não são levadas a sério”, destacou.

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Com informações do Alma Preta.

4 de março de 2023

Anielle Franco é eleita uma das mulheres do ano pela revista ‘Time’

 

Anielle Franco sobre ser incluída na lista da Time das mulheres mais influentes do mundo: "Estou muito feliz e não chego sozinha. Esse reconhecimento não é só meu, é de todas as mulheres negras do Brasil".(FOTO | Ricardo Stuckert/PR).

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, foi eleita pela revista Time uma das mulheres do ano em 2023. A lista, divulgada ontem (2), é composta por um total de 12 nomes. “Mulheres extraordinárias que estão liderando um mundo mais igualitário”, define a publicação.

A inclusão de Anielle Franco foi baseada por seu ativismo na luta antirracista. “Sua trágica história familiar, personalidade calorosa e uso hábil das mídias sociais transformaram a outrora reservada Franco em uma líder improvável no movimento pelos direitos dos negros no Brasil”, diz trecho do perfil que a revista publicou sobre a ministra.

Irmã da vereadora do Rio Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018, Anielle é diretora do instituto que leva o nome da irmã. A organização luta por direitos humanos e na defesa da memória de Marielle. Desde sua criação, a agora ministra se envolveu diretamente no ativismo político pelas causas da população negra, das mulheres e da população LGBTQIA+.

Em entrevista à GloboNews, a ministra comentou sobre a homenagem. “A gente só dá valor pelo que a gente recebe e por estar aqui nesse Ministério por ter passado por esses quatro anos de muito ódio, de muito ataque, e ter hoje um governo federal que cuida da gente, que cuida do caso da Mari, que cuida do povo preto. É entender que a gente está de uma certa maneira vencendo esse ódio.”

Aos 38 anos, ela é jornalista formada pela Universidade do Estado da Carolina do Norte (nos Estados Unidos), e em inglês e literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Extraordinárias

Em suas redes sociais, Aniele se manifestou sobre o reconhecimento internacional. “Muito orgulhosa e emocionada em ter sido a primeira e única brasileira indicada como ‘Mulher do Ano’ entre as doze escolhidas pela revista norte-americana Time. Estou muito feliz e não chego sozinha, esse reconhecimento não é só meu, é de todas as mulheres negras do Brasil”.

Ao lado de Anielle Franco, a lista das 12 mulheres mais influentes do ano traz ativistas como a mexicana Véronica Cruz Sánchez, a ucraniana Olena Shevchenko e a iraniana Masih Alinejad. Também estão na lista mulheres influentes da cultura e do esporte, como a atriz Cate Blanchet, a cantora Phoebe Bridges, a jogadora de futebol Megan Rapinoe e a roteirista Quinta Brunson.

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Com informações da RBA

2 de março de 2023

Os gregos não inventaram a filosofia

 

Molefi Asante, autor de 'Erasing racism: the survival of the American nation'. (FOTO| Divugação).

Sem dúvida, as investigações do nosso grupo de pesquisa têm motivado muitas objeções. Os estudos que realizamos sobre filosofia africana não são inéditos; mas o aumento da circulação de material acadêmico no Brasil que problematiza o nascimento da filosofia na Grécia, trazendo à luz fontes africanas mais antigas que as ocidentais, tem sido motivo de críticas variadas. Objeções que alegam: “filosofia” é um termo grego; outras insistem que só na Grécia Antiga o pensamento ganhou tom laico. Ou ainda, perguntam por que deveríamos “impor” o registro filosófico a outras formas de pensamento de povos da antiguidade fora do mundo helênico. Em resumo, tais questões têm sido acompanhadas de argumentos diversos que dizem algo como: a filosofia nasceu na Grécia, desenvolveu-se dentro da ambiência territorial europeia como uma aventura ocidental do pensamento humano. Não cabe destrinchar cada uma das objeções, tampouco teríamos condições de apresentar o vasto elenco de tréplicas em favor da produção filosófica africana desde George James com Legado roubado, passando por Cheikh Diop, Theóphile Obenga, Molefi Asante, até A filosofia antes dos gregos, de José Nunes Carreira. Todos os autores advogam uma hipótese comum: a filosofia não nasceu grega. A abordagem que defendemos denuncia uma grave confusão. A questão não é onde nasceu a filosofia. Com base em fontes históricas diversas, os textos egípcios são documentos africanos mais antigos do que os escritos gregos, que são referências da cultura ocidental. Alguns expoentes da egiptologia, seja Jean-François Champollion (1790-1832), Cheikh Anta Diop (1923-1986), Theóphile Obenga (1936-) ou Jan Assmann (1938-) concordam que os textos egípcios são mais antigos do que os gregos. A polêmica está no caráter filosófico dos escritos egípcios. Nós estamos de acordo com Diop e Obenga – o material egípcio é filosófico.

A filosofia de Ptahhotep

Em A filosofia antes dos gregos, Carreira menciona o Egito como uma região rica em produção filosófica. Ptahhotep foi alto funcionário do Faraó Isesi da 5ª Dinastia do Reino Antigo e sua função era chamada de rekhet, traduzida por Obenga como “filosofia”. Identificamos nos ensinamentos de Ptahhotep recomendações para o debate, sugerindo uma conduta adequada numa contenda. Ptahhotep diz que em relação ao contendor podem existir três tipos de pessoas. 1ª) As que têm uma balança mais precisa, “superiores”; 2ª) As que têm balança tão precisa quanto a nossa, “iguais”; 3ª) As que têm balança menos precisa, “inferiores”. O filósofo não menciona diretamente a deusa Maat; mas ela aparece de modo indireto à medida que a balança é um dos seus principais símbolos. “Maat” circunscreve várias ideias: “harmonia”, “verdade”, “ordem”. A sua balança é o instrumento que mede a palavra. O que está em jogo na contenda é o uso adequado da balança para mensurar a verdade. Por isso, a arte da rekhet é inconclusa; sempre podemos encontrar um contendor com balança mais precisa. Os limites da rekhet “não podem ser alcançados, e a destreza de nenhum artista é perfeita”. (Veja o texto “Ensinamentos de Ptahhotep”, publicado no livro Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico, de Emanuel Araujo. Brasília/São Paulo, 2000.) Nossa defesa está a favor da atitude filosófica de não recusar uma tese sem o seu devido exame; por isso, a recomendação de ler Ptahhotep.

A certidão de nascimento da filosofia

Propor uma agenda de leitura dos textos africanos antigos não sinaliza um interesse em substituir a Grécia pelo Egito, fazendo da cultura africana o paradigma civilizatório na antiguidade. Pelo contrário, o esforço por definir um “marco zero” para a filosofia vale-se de uma interpretação entre outras – o que não pode ser um tabu dogmático. A título de analogia, o filósofo inglês Michael Hardt interpela a filosofia de Hegel por meio de Nietzsche, e nos diz que “a dialética é um falso problema”(Em Gilles Deleuze: um aprendizado filosófico, na tradução de Sueli Cavendish. São Paulo, 1996). Algumas abordagens filosóficas usam o modelo dialético como indispensável para a filosofia da história, enquanto outras a recusam plenamente. Do mesmo modo, defendemos que o nascimento da filosofia é um falso problema. Não se trata de afirmar que a filosofia nasceu no Egito e substituir Tales de Mileto ou Platão por Ptahhotep. Não pedimos a retirada da “certidão grega da filosofia” dos manuais, mas sim que ela não venha sozinha, sem o registro de que existem posições a favor do nascimento africano. Os manuais de filosofia precisam incluir versões diversas sobre suas origens, reconhecendo a legitimidade de todas, assim como não ignoramos perspectivas diferentes em várias questões filosóficas. É perigoso e reducionista para uma boa formação filosófica limitar toda a filosofia a poucas tradições. Com efeito, o problema não seria estritamente teórico, mas político (e obviamente filosófico). O projeto de dominação do Ocidente tem um aspecto epistemológico que pretende calar qualquer filosofia que tenha sotaques diferentes. Afinal, a filosofia foi “eleita” como suprassumo da cultura ocidental.

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Artigo de Renato Noguera - doutor em Filosofia pela UFRJ, professor da UFRJ e coordenador do grupo de pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções. Publicado originalmente na Revista Cult.


1 de março de 2023

O que é trabalho análogo à escravidão, segundo a lei brasileira

 

 Trabalhadores resgatados em situação semelhante à escravidão em Bento Gonçalves — Foto: Reprodução/RBS TV.

Relatos dos trabalhadores da colheita da uva resgatados em Bento Gonçalves (RS) na última semana descreveram um cenário de violência cotidiana, condições degradantes de vida e violações a direitos humanos básicos.

O caso é o registro mais recente de trabalho análogo à escravidão no Brasil. Mas, afinal de contas, o que a lei brasileira reconhece como trabalho escravo?

O artigo 149 do Código Penal Brasileiro traz a definição jurídica do que é trabalho análogo à escravidão:

“É CARACTERIZADO PELA SUBMISSÃO DE ALGUÉM A TRABALHOS FORÇADOS OU A JORNADA EXAUSTIVA, QUER SUJEITANDO-O A CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO, QUER RESTRINGINDO, POR QUALQUER MEIO, SUA LOCOMOÇÃO EM RAZÃO DE DÍVIDA CONTRAÍDA COM O EMPREGADOR OU SEU PREPOSTO.”

A lei determina que é crime submeter alguém à condição de trabalho análogo à escravidão e que também é punível por lei qualquer pessoa que atue para impedir o direito de ir e vir do trabalhador que esteja nessa condição. Veja o que diz o texto:

“Também é punido com as mesmas penas aquele que, com o fim de reter o trabalhador: a) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; b) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho; ou c) retém documentos ou objetos pessoais do trabalhador.”

Portaria

O Código Penal, no entanto, não é o único texto sobre o tema. A Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência 1.293, de 2017, define os termos utilizados pelo Código Penal e ajuda a entender melhor os traços que caracterizam o trabalho análogo à escravidão, como trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante. 

Veja a seguir.

Trabalho forçado é qualquer tipo de atividade imposta ao trabalhador sob ameaça, seja ela física ou psicológica. No caso recente de Bento Gonçalves, os trabalhadores relataram que eram espancados e agredidos com choques elétricos e spray de pimenta.

Jornada exaustiva é qualquer período de trabalho que viole os direitos do trabalhador à segurança, saúde, descanso e convívio familiar ou social. Uma jornada exaustiva pode se caracterizar tanto pelo tempo de duração quanto pela intensidade das atividades desenvolvidas. Os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves contaram que eram obrigados a trabalhar seis dias por semana, das 5h às 20h, sem permissão para pausas.

Condição degradante é qualquer prática que negue dignidade ao trabalhador e viole sua segurança, higiene e saúde. Em Bento Gonçalves, relatos ouvidos pelas autoridades apontaram que os trabalhadores recebiam comida estragada e só podiam comprar produtos em um pequeno comércio próximo ao alojamento, onde os preços eram superfaturados e o valor consumido era descontado de seu salário.

Restrição de locomoção é a violação ao direito de ir e vir livremente, sob o argumento de que o trabalhador deve dinheiro ao empregador ou a seu representante. A restrição pode tanto manter o trabalhador preso no local de trabalho como impedir que ele peça demissão. No caso recentemente descoberto no Rio Grande do Sul, os trabalhadores afirmaram que eram impedidos de sair do local sem antes pagar uma suposta “dívida” e que os empregadores ameaçavam seus familiares.

Cerceamento do uso de meios de transporte é toda ação que impeça o trabalhador de utilizar meios de transporte, sejam públicos ou particulares, para deixar o local de trabalho ou de alojamento.

Vigilância ostensiva é qualquer forma de fiscalização direta ou indireta praticada pelo empregador que impeça a saída do trabalhador do local de trabalho ou alojamento.

Apoderamento de documentos ou objetos pessoais é quando o empregador mantém sob sua posse, ilegalmente, documentos ou objetos pessoais do trabalhador, como forma de impedi-lo a sair do local de trabalho ou de pedir demissão.

Como denunciar?

Existe um canal específico para denúncias de trabalho análogo à escravidão: é o Sistema Ipê, disponível pela internet. O denunciante não precisa se identificar, basta acessar o sistema e inserir o maior número possível de informações.

A ideia é que a fiscalização possa, a partir dessas informações do denunciante, analisar se o caso de fato configura trabalho análogo à escravidão e realizar as verificações in loco.

28 de fevereiro de 2023

A cor da devoção: o legado do povo negro no Cariri cearense

 

Maria Telvira é Pós-Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Professora do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA).

Qual é a cor dos devotos de Padre Cícero? A constituição das romarias em Juazeiro do Norte (CE) informa sobre um processo histórico que remonta o final do século XIX. Tradicionais na região Nordeste, essas práticas são reconhecidas como um dos maiores fenômenos religiosos do Brasil. Anualmente, estima-se que mais de dois milhões de romeiros/as ocupem os espaços sagrados, valendo-se de um longo ciclo de peregrinações. Diante da expressividade numérica e simbólica dessas manifestações religiosas, interrogo sobre a participação do povo negro nas romarias de devoção ao Pe. Cícero Romão. Essa  indagação remete à poesia-monumento de Aimé Césaire: “Minha negritude não é uma pedra, surdez arremessada contra o clamor do dia. Minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho morto da terra. Minha negritude não é uma torre ou uma catedral […]”.


Berço do Pe. Cícero – Momento de visita de romeiros no Museu Casa do Pe Cícero. Juazeiro do Norte (CE), s./d. Fonte: Acervo do Centro de Psicologia da Religião.

Este texto é fruto da pesquisa A cor da devoção: africanidade e religiosidade no Cariri contemporâneo, realizada com recursos da bolsa produtividade da Fundação Cearense de  Amparo à Pesquisa (FUNCAP-CE), desenvolvida entre 2017 e 2018, com desdobramentos em 2019 e 2020 durante o pós-doutoramento no Programa Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. As análises focalizaram as cidades de Juazeiro do Norte e Crato (CE). As fontes utilizadas incluem documentos de arquivos físicos e virtuais, 34 entrevistas orais, bem como dados resultantes da aplicação de um questionário para 2.009  romeiros/as. Além disso, foi possível coletar informações com os/as romeiros/as durante a realização de conversas, rezas, benditos, celebrações, as narrativas de curas e de fé. A  interlocução com os/as devotos/as no tempo presente favoreceu a articulação de temporalidades e de contextos históricos diversos.

Ao longo da investigação a questão central observada diz respeito sobre o silenciamento da identidade racial dos/as devotos/as. Situação que denomino de as fronteiras do silêncio. Contudo, no percurso desta  pesquisa, 74% dos romeiros/as entrevistadosas se autorreconheceram  negros/as (pardos e pretos). Vale ressaltar que essa porcentagem ultrapassa o quantitativo do  Brasil e do Ceará.  No que tange às práticas devocionais, no caminho aberto por Carlos Moore, podemos dizer que “ a cor não se presta a dúvida”. Contudo, apesar das evidências, há reiteradas tentativas de apagamento das faces negras nas romarias da região.

A fim de desnaturalizar essa visão, eu dialogo com a  perspectiva contra-colonial, de   Antonio Bispo,  que  enfatiza a necessidade de reconhecer as soberanias intelectuais, alimentares, cartográficas e religiosas dos povos originários africanos, chamados pelo autor de  afropindorâmicos. Essa abordagem favorece a emergência de novas interpretações sobre o passado e o presente.


Negro zelador do Cemitério do Perpétuo Socorro. Fotografia: Roque Miranda. Juazeiro do Norte (CE), 1951. Fonte: Arquivo pessoal de Renato Cassimiro e Daniel Walker.

Em termos históricos desde os primórdios da tradição, beatos/as majoritariamente negros/as participaram de forma ativa. Os registros mostram que eles/as desenvolviam atividades de assistência religiosa na comunidade local. O que incluía, por exemplo, acompanhar pessoas que estavam no leito de morte, bem como a realizar cantos fúnebres conhecidos como as incelências. De igual modo, podiam exercer a função de zeladores de cemitério. Também estavam envolvidos/as com ações que visavam angariar recursos financeiros, como o pedido de esmolas para sua própria sobrevivência. Essas práticas integravam parte significativa do trabalho de caridade. O que  incluiu a participação negra nas missões humanitárias do Pe. Ibiapina no Nordeste da década de 1870.

A partir do século XIX, ocorreram migrações negras de todo o Nordeste para Juazeiro. Situação que favoreceu a constituição de agenciamentos individuais e coletivos em torno das romarias. Dentre eles destaco:  a trajetória da Beata Maria de Araújo, afilhada do Pe Cícero, que desde a adolescência dedicou-se à vida religiosa, bem como a existência da comunidade revolucionária do Caldeirão, liderada por José Lourenço.


Fotografias de beatos da História de Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte (CE). Fonte: Ciclo Operário Complexo da Matriz de Nossa Senhora das Dores – Exposição Temporária.

Ademais, ainda no século XVIII, o Cariri conheceu a formação de irmandades negras, sendo a Irmandade do Rosário de Barbalha considerada a mais antiga. Essas organizações eram formas de vivenciar religiosidades, de estreitar relações e, sobretudo, de enfrentar as consequências da apartação racial, elemento fundante da sociedade brasileira. Suas práticas coletivas atravessaram o século XIX e chegaram até o século XX, conforme ocorreu com a Irmandade  Penitentes Aves de Jesus e a Irmandade  Penitentes da Santa Cruz do Deserto. 

Pela força do racismo, indivíduos e coletividades negras, além de apagados da história, foram insultados pela elite, pela imprensa da época e pela própria igreja como “rudes, atrasados, delirantes, vagabundos e fanáticos”. Importante destacar que, mesmo tendo suas ações desqualificadas como curandeirismo ou macumbaria, esses/as sujeitos/as continuaram expressando suas devoções e participando da dinâmica sociocultural do Cariri.  Narrar suas experiências é uma forma de promover reparação histórica, pois, conforme lembra o historiador Michel-Rolph Trouillot, a história tem sido um discurso de poder que se caracteriza pela produção da invisibilidade.

Nesse sentido, é preciso combater aquilo que o autor chamou de o “poder da distribuição do registro”. A história que tem sido considerada legítima sobre o Cariri subtrai as realizações, os fatos e as labutas do povo negro.  

Com efeito, mesmo diante do silêncio historiográfico, do controle da Igreja e dos preconceitos da sociedade, essas experiências negras atravessaram a cronologia do silêncio, instituindo modos singulares de exercer a religiosidade. Para isso, articularam sofisticados sistemas de memória e de vivências coletivas. São histórias de reelaborações da existência cuja singularidade pode ser expressas pela poética de Conceição Evaristo: “Meu rosário é feito de contas negras e mágicas. Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo padres-nossos, ave-marias”.

Assista ao vídeo da historiadora Maria Telvira da Conceição no Acervo Cultne sobre este artigo:


          

Sem liberação de armas, Brasil teria evitado mais de 6 mil mortes violentas entre 2019 e 2021

 

(FOTO/ Pixabay).

O país poderia ter evitado 6.379 homicídios, entre 2019 e 2021, se o governo federal não tivesse flexibilizado o acesso às armas de fogo, revelou um levantamento exclusivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado na última quinta-feira (29).

Uma explicação trazida no estudo é que o aumento de circulação de armas, a partir de 2019, tem relação com a ilegalidade: quanto mais armas nas mãos da população, mais delas migrarão para o mercado ilegal — seja por meio de extravios, roubos ou ações premeditadas de seus proprietários. A pesquisa também revelou que a criminalidade cresce 1,2% — em latrocínio (roubo seguido de morte) — a cada 1% a mais de pessoas armadas. Já a cada 1% de aumento de armas, a taxa de homicídio cresce 1,1%.

Mais armas circulando

Em 2019, após assumir a presidência da República, Jair Bolsonaro (PL) promoveu uma verdadeira mudança na legislação armamentista. Com mais de 40 atos normativos e decretos publicados para fragilizar os mecanismos estabelecidos pela lei 10.826/03, as mudanças promovidas implicaram na facilitação dos requisitos para aquisição de licenças, especialmente de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), ampliação do limite de armas para todas as categorias, aumento da quantidade de recargas de cartucho de calibre restrito que podem ser adquiridos por atiradores desportistas anualmente, dentre outras.

As ações do governo resultaram no crescimento de 476,6% nos registros ativos de CACs entre 2018 e 2022 e em, ao menos, 4,4 milhões de armas em estoques particulares, conforme dados recentes divulgados no Anuário do FBSP.

Redução poderia ser maior

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde 2018 o país vem reduzindo a taxa de mortes violentas intencionais, saindo de 30,9 por 100 mil habitantes em 2017 e chegando a 22,3 em 2021. No entanto, "o aumento da difusão de armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes. No caso dos latrocínios os efeitos também foram diretamente proporcionais e marginalmente mais fortes. Por fim, não encontramos relação estatisticamente significativa entre a disponibilidade de armas e outros crimes contra a propriedade, o que evidencia a falácia do argumento armamentista, segundo o qual a difusão de armas faria diminuir o crime contra a propriedade”, diz o estudo.

O levantamento considera como hipóteses explicativas dessa queda na violência letal a mudança do regime demográfico rumo ao envelhecimento da população, mudanças nas políticas de segurança pública em alguns estados, e a dinâmica pelo controle do narcotráfico no país - entre 2016 e 2017, o país assistiu a uma guerra envolvendo as duas maiores facções criminais – o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) que culminou no crescimento abrupto da taxa de letalidade violenta.

Os resultados robustos e estatisticamente significantes indicaram que quanto maior a difusão de armas, maior a taxa de homicídios. Isso implica dizer que se não fosse a legislação permissiva quanto às armas de fogo, a redução dos homicídios (provocada por outros fatores, como o envelhecimento populacional e o armistício na guerra das facções criminosas após 2018) teria sido ainda maior do que a observada”, avaliou o estudo feito pelo Fórum.

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Com informações do Andes.