Ela
não concedeu a alforria a um escravo tuberculoso, chamava os seus serviçais de
pretos e debochava dos abolicionistas mais combativos – assim era a “Redentora”, hoje candidata à
canonização.
Ensina-se
nos livros escolares que a princesa Isabel (1846-1921) foi uma heroína
nacional, a redentora que sancionou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888,
libertando os negros da escravidão. No momento em que até se cogita a sua
canonização, o livro “O Castelo de Papel”
(Rocco), da historiadora Mary Del Priore, desfaz essa imagem de santa
progressista. Com base em documentos inéditos dos arquivos do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Museu Imperial, em Petrópolis,
Mary sacramenta o que outros estudiosos suspeitavam: a herdeira do trono não
defendia as causas sociais nem se indignava contra os açoites recebidos pelos
escravos. Era apenas isso: uma mulher mais preocupada com a família e a
sustentação da realeza.
Toda
época tem limites no que diz respeito aos avanços políticos, mas a omissão da
princesa era flagrante. Em 1881, ou seja, quase uma década antes da abolição,
Isabel fingiu não ouvir os lamentos das senzalas ou mesmo as vozes exaltadas
dos púlpitos republicanos. Recém-chegada de uma viagem à Europa em companhia de
seu marido, o conde D’Eu, ela evitou o clamor que já dominava as ruas do Rio de
Janeiro e se refugiou na residência imperial na região serrana, em Petrópolis.
As cobranças, no entanto, eram feitas até por aqueles de quem menos se
esperava, caso de sua aia, Luisa de Barros Portugal, a condessa de Barral, que
cuidou de sua educação na juventude. A princesa respondeu assim às reprimendas
da velha senhora, com quem mantinha correspondência: “Que demônio pode ter-lhe contado tantas coisas, querida? São os
horríveis artigos de José do Patrocínio? Se você não pode ignorá-los, mostre
que eles lhe são desagradáveis.” O deboche era endereçado ao combativo
abolicionista.
A
suposta generosidade da monarca não se comprovava na prática. Sempre cercada de
mucamas, o tratamento que dirigia aos descendentes de uma raça pela qual ela
teria lutado para emancipar não era nada lisonjeiro. Já aos 18 anos, assim
listou os seus escravos: “Marta, negrinha
de quarto, Ana de Souza, sua mãe, Francisco Cordeiro, preto do quarto, Maria
d’Áustria, mulher dele, Minervina, lavadeira, Conceição, Florinda e Maria
d’Aleluia, engomadeiras. José Luiz, preto músico, Antonio Sant’Ana, preto que
me serviu algum tempo.” Isabel era indiferente aos sofrimentos dos
serviçais. Mary traz à luz o caso de um escravo de sua residência, que, já
velho e tuberculoso, teve de recorrer ao imperador dom Pedro II, pai da
governante, para conseguir a alforria.
Embora
se colocasse como liberal, ela se mostrou irritada com a decisão da Câmara dos
Deputados que aprovara a Lei do Ventre Livre, promulgada contra a sua vontade
em 1871, dando liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data.
As discussões na Câmara foram muito acaloradas e os conservadores usaram de
vários meios para impedir a aprovação da nova lei. Mais preocupada em evitar a
animosidade dos donos de terra que davam sustentação à Coroa, Isabel qualificou
a votação de precipitada. Escreveu ao pai: “O
espírito dos fazendeiros anda agitado.” Somente quando a situação se tornou
insustentável ela tomou da pena e oficializou a sua adesão ao abolicionismo. A
essa altura, o movimento já tinha conquistado grande parte da opinião pública e
a rebelião tinha se espalhado pelas senzalas.
Mary
mostra que Isabel não tinha vocação para o reinado ou uma clara preocupação
pelos rumos políticos do País. Já no início dos estudos, demonstrava pouco
interesse por temas nacionais. Aos 25 anos, assumiu pela primeira vez o trono
como regente e depois confessou ao pai: “Quando
entrei na sala, fiquei abismada, cinco enormes pastas recheadas, algumas de uma
maneira monstruosa, estavam-me esperando.” Uma indisposição que vinha de
longa data. “Na documentação, percebe-se
que os sentimentos do seu marido pelo Brasil são muito mais visíveis e
palpáveis do que os de Isabel”, disse a historiadora. “Em sua correspondência, a palavra política aparece sempre como sinônimo
de coisa entediante. É vista como desconhecida e cansativa.” (As
informações são de Michel Alecrim, ItstoÉ e, publicado no Pragmatismo Político).
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Foto: Reprodução/ Pragmatismo Político. |