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As marchas carolas de 1964 foram reeditadas em 2015 como parte da estratégia do golpe. (Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas). |
Uma
dezena de universidades públicas mobilizou-se para criar disciplinas sobre o
golpe de 2016, seguindo a iniciativa do professor da Universidade de Brasília
Luis Felipe Miguel. Na primeira aula, na segunda-feira 5, o cientista político
explicou por que essa palavra é tão repelida justamente por aqueles que a
puseram em circulação no Brasil.
“Não foi só uma mudança em quem ocupa a
Presidência. É uma mudança profunda, que se pretende definitiva, imposta
unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos de dentro do Estado, nas
regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um golpe”, escreveu o
professor.
A
academia começa a cumprir o seu papel, e é preciso dar nome aos bois, ainda que
estes tenham o infortúnio de ser chamados de Temer, Cunha, Aécio ou Geddel. A
esta altura do campeonato, só mesmo golpistas não admitem que Michel Temer é um
presidente ilegítimo e o mandato popular de Dilma Rousseff foi roubado por
eles.
Porém,
a jornalista Maria Inês Nassif alerta no prefácio da Enciclopédia do Golpe - O
papel da mídia que, se as futuras gerações se dedicarem a estudar esse período
da história brasileira por meio do noticiário da imprensa comercial, certamente
considerarão que tudo transcorreu dentro da normalidade institucional.
“O que aconteceu é o que aconteceu: não
existem duas versões para um Congresso que se reúne e depõe uma presidente legitimamente
eleita e entrega o poder a um vice de passado nebuloso; não há duas
interpretações para um Judiciário que condena inocentes inventando
interpretações sobre textos legais que variam conforme o réu; não há duas
visões sobre uma mídia que omite, esconde e manipula”, resume Maria Inês.
A
obra de 251 páginas contém 28 verbetes escritos por profissionais e estudiosos
da comunicação, cientistas políticos, filósofos e historiadores. Os capítulos
tratam de temas variados, que vão desde uma radiografia do conluio entre
jornalistas e o Judiciário, passando pela falta de democratização da mídia, o
protagonismo político da TV Globo, a tomada das redes sociais por movimentos
reacionários e a ainda influente agenda imposta pelos veículos tradicionais. O
foco é a centralidade da mídia hegemônica, tida pelos organizadores da obra
como a principal responsável pela narrativa dos acontecimentos.
“Indispensável
a contribuição da propaganda inutilmente disfarçada de jornalismo para
demonizar Lula, alvo maior da manobra golpista, reconhecido como principal
entrave ao projeto de um Brasil-satélite no quintal dos EUA, país em demolição
atado a instituições medievais, insignificante no plano internacional,
exportador ainda e sempre de commodities”, defende Mino Carta, diretor de
redação de CartaCapital, na introdução da enciclopédia.
“De
fato, uma mídia empresarial totalitária, com força e decisão para capturar e
ditar o rumo dos acontecimentos parece ter sido a principal engrenagem motora
da ruptura da normalidade democrática”, anota o filósofo Bajonas Teixeira de
Brito Junior, da Universidade Federal do Espírito Santo.
Para
ele, é possível traçar paralelos entre a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, que defendeu o golpe de 1964, com o que define como “pseudo ‘movimentos de protesto’”, como o
MBL, Vem pra Rua e Revoltados Online, reeditando a estratégia golpista em 2015.
No
conjunto, a enciclopédia presta-se a iluminar sombras de uma cobertura
visivelmente negativa praticada pelos maiores e mais privilegiados veículos
midiáticos. Ela é classista, por estar em defesa dos interesses empresariais
das elites, e não surgiu com o impeach-ment. Mais de um autor defende que o
golpe já vinha sendo fermentado desde que o PT assumiu o poder.
“A Globo, com seus obedientes mervais, já
vinha trabalhando desde o ‘Mensalão’, em 2005, para construir a ideia de que o
PT inventou a corrupção no Brasil”, afirma o jornalista Rodrigo Vianna.
Autores
dos verbetes descrevem a onipresença da emissora global para a “construção e disseminação de propaganda
antipetista e antiesquerda”, segundo Maria Inês. “O processo de impeachment foi um jogo de futebol. A Globo passava a
bola para a Folha, que deixava a Veja perto do gol, que tocava para o Sergio
Moro completar de cabeça”, explica o jornalista Miguel do Rosário.
Essa
triangulação só foi possível por haver um sistema midiático altamente
concentrado no Brasil e cujo antídoto, a democratização dos meios de
comunicação, jamais chegou a representar uma ameaça real às empresas.
Ora
a imprensa atacava ferozmente o governo federal por aventar colocar em pauta
esse assunto, ora Lula e Dilma não só recuavam como continuavam a favorecer as
grandes corporações destinando generosos recursos por meio da propaganda
oficial. Entram nessa combinação as revistas semanais Veja, Época e IstoÉ, como
anota o professor Frederico de Mello Brandão Tavares, da Universidade Federal
de Ouro Preto. “Em ‘tempos de golpe’,
estas revistas (...) funcionam como gatilho para a pauta noticiosa. Vendem
opinião como notícia.”
Outro
verbete essencial é o caráter misógino do golpe. Para a socióloga Eleonora
Menicucci, ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma, e a
jornalista Júlia Martim, a mídia “estimulou
em todas as oportunidades as críticas pautadas em questões comportamentais e
não políticas”.
Esse
conteúdo machista alimentou e fortaleceu um discurso de ódio, que acabou
invadindo as redes sociais manipuladas por robôs, perfis anônimos e favorecendo
a explosão das fake news, que também virou um verbete. “A imprensa brasileira faz parte da articulação de um golpe
protagonizado por uma elite de homens brancos, declarados como heterossexuais e
defensores de uma sociedade estruturada no patriarcado.”
Este
é o segundo volume da Enci-clopédia do Golpe. O primeiro foi lançado em
novembro e procurou explicar como cada um dos golpistas atuou em 2016.
Escreveram verbetes, entre outros, os historiadores Luiz Alberto Moniz Bandeira
e Fernando Horta, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, o economista Luiz
Gonzaga Belluzzo (consultor editorial da CartaCapital) e o sociólogo Jessé
Souza. (Com informações de CartaCapital).