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Karla Alves é historiadora e colunista do Blog Negro Nicolau. (FOTO/ Reprodução/ Facebook). |
Muito
conveniente esse discurso adaptado da meritocracia espiritual que
responsabiliza ao indivíduo pela escassez de recursos em sua própria vida, como
se o morador de rua fosse o único responsável pela miséria que atraiu para si
através da energia quântica que emana. Digo "conveniente" porque
isenta quaisquer práticas políticas de sua responsabilidade social disfarçando
o jogo de poder que envolve causa e consequência, como se privilégios sociais
não existissem e não houvesse uma estrutura hierárquica de distribuição desses
privilégios.
Aí
quem goza dos privilégios pode desfrutar sem receio algum já que o pobre é o
culpado por sua miséria econômica, assim como, de acordo com esse pensamento da
luz artificialmente divina, a população negra é responsável pelo racismo, @ gay
pela homofobia, e toda vítima de injustiças sociais seria responsabilizada pela
opressão que sofre.
A
história social nos mostra como uma teoria biológica (darwinismo) foi usurpada
e adaptada para o campo da sociologia (darwinismo social) para justificar o
racismo através do discurso revestido de uma suposta cientificidade, criando
categorias classificatórias com base no fenótipo (características físicas, como
tamanho do crânio, cor da pele, etc) para identificar criminosos bem como
identificar qual o estágio de determinada cultura na linha evolutiva
civilizatória.
Com base nessa hierarquia racial, diversas culturas foram
subjugadas a condições de inferioridade devido ao seu aspecto primitivo para
que, assim, a cultura considerada (pela própria atribuição de seus
representantes) evoluída, desenvolvida, erudita, pudesse ocupar um lugar superior
predominando sobre as demais que deveriam nela se espelhar para alcançar o
progresso. Assim o idioma oficial de uma nação é escolhido, bem como os símbolos
que compõem a história oficial, a religião que manipula a ideologia
predominante, enquanto as demais resistem nos esconderijos marginalizados da
sociedade.
Essa
é uma demonstração de como pode funcionar a adaptação de um pensamento
científico para o campo social. Daí os racialmente privilegiados se
aproveitaram por muito tempo do discurso da meritocracia para justificar sua
posição social dentro do sistema capitalista, onde, segundo eles, tudo dependia
do próprio esforço para se alcançar o sucesso. Então eu me recordo que certa
vez ouvi uma professora universitária dita de esquerda dizer que sua avó lia os
livros de Jose de Alencar e outros autores canônicos para ela dormir. Naquele
momento olhei para uma amiga preta ao meu lado e perguntei para ela se a avó
dela sabia ler, porque a minha era analfabeta. E como nós tivemos que adequar
tempo, trabalho, tarefas domésticas e estudos disponíveis aos não disponíveis
(como leitura de livros obrigatórios ao vestibular) para conseguir ingressar no
ensino "superior" que só nos inferiorizava.
Se
eu tivesse escolhido Física ao invés do curso de História talvez tivesse sido
diferente. Mesmo assim aquela professora resistia em aceitar os fatos sobre a
funcionalidade dos privilégios para o sucesso.
Agora que essa forma de
meritocracia foi denunciada e condenada, chega essa outra baseada na carga
espiritual, onde o sucesso depende da energia quântica holisticamente emanada
para atrair só o que for lindo e bom ou transmutar miraculosamente a miséria em
riqueza porque, afinal, todo rico é bom, limpo e belo e herdarão o reino dos
céus. Não, pera, acho que não foi bem assim... De qualquer forma, a
romantização da pobreza é o outro lado dessa fantasia que acomoda bem cada tipo
social no seu "lugar de fala". Não cabe todo mundo no topo da
pirâmide. É necessário muita subjetividade encarcerada no discurso identitário
para sustentar na base os que desfrutam do topo.
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Karla Alves é Historiadora
pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo de Mulheres
Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau.
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