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O filme "O Poço" está disponível na Netflix. (FOTO/ Reprodução). |
(El
hoyo, direção de Galder Gaztelu-Urrutia)
Resumo
sem spoiler: em um mundo distópico, existe uma instituição penal/educativa
chamada de O Poço. Em cada nível existem duas pessoas que são alimentadas por
uma plataforma/mesa que desce com comida. Os níveis superiores podem comer bem
e, à medida que a mesa desce, as celas inferiores recebem pouco ou nada. O
filme começa com a personagem Goreng (Iván Massagué) despertando no nível 48
junto a um companheiro de cela chamado Trimagasi (Zorion Eguileor) que explica
ao novato como funciona o sistema.
Pontos
de análise
O
filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se
preocupam com os de baixo. Leitura de um sistema no qual, como diz Trimagasi, é
“comer ou ser comido”. Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome. O
tema parece retirado da metáfora do mexicano Mariano Azuela González: Los de
Abajo.
Existe
um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a
condição humana é um recurso clássico. Ocorre com O Senhor das Moscas (romance
de William Golding) ou nas peças de Samuel Beckett ( a crítica internacional
apontou um traço de Esperando Godot, mas eu indicaria, também, a influência de
Fim de Partida). O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a
visão idealista e realista. A palavra-chave de Trimagasi é “óbvio” porque, para
o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que
exigem adaptação para sobreviver. Goreng questiona tudo do sistema do poço. O
símbolo das duas atitudes está na escolha do que levar para o poço: o realista
traz uma faca e o idealista um livro (D. Quixote) . Pegando o tema de
Cervantes, teríamos D. Quixote e Sancho Pança.
Que
preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma?
Sobreviver é só o que importa?
Quanto
mais fundo se desce, maior o sofrimento. A ideia está no Inferno da Divina
Comédia. Há uma referência religiosa da culpa. No terceiro círculo do Inferno (
e na sexta cornija do Purgatório) estão punidos os gulosos. O mais importante é
tomar consciência do próprio pecado. Trimagasi matou alguém e optou por aquela
pena no poço. Goreng busca certificados, uma espécie de esforço de meritocracia
e de competitividade. Ao contrário de Dante, existe mobilidade no Inferno e
isso permite que opressores sejam oprimidos. A experiência da dor da fome pouco
ou nada ensina aos apenados.
Existe
um mundo de planejamento, tecnocrático e muito elaborado. Na entrevista,
perguntam sobre alergias e cuidados. Na cozinha luxuosa, a apresentação é tudo
e a qualidade e higiene é rigorosa. Na prática, todo o planejamento (estatal?)
resulta inútil e em desastre. Quem organiza a seleção e a alimentação não
possui visão do todo. A mesa volta sempre sem nada e isso pode ser lido na
cozinha como êxito da culinária. Se a panacota voltar intacta, isso pode ser
uma mensagem de que algo não funciona. A funcionária que trabalhou 25 anos na
seleção também diz nada saber. Existe uma síndrome de Eichmann e do mal banal.
Quem pensa o modelo não sabe como ele funciona e quem sofre o planejamento não
tem acesso aos que elaboram tudo. Todos cumprem ordens.
O
filme é anterior ao coronavírus mas serve perfeitamente ao momento. Tenho de me
salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim. Pouco ou nada me importam os
outros. Assim, como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a
natureza humana é má e egoísta. Uma criança seria a esperança? Um bom selvagem?
Existiria de verdade ? Só a ameaça educa (“vou defecar na sua comida”) e só
funciona para baixo. Não existe bom-senso, apenas ameaça. É o mundo hobbesiano
que precisa de Estado forte. Em plena epidemia, é o Estado (democrático, por
sinal) que está ditando regras de controle cada vez mais amplas. Para salvar a
vida, abrimos mão da liberdade e da própria humanidade. Só queremos viver. Todo
o resto é secundário. O sucesso do Poço não é acidental.
A
principal angústia d’O Poço é querer enquadrar a obra em uma proposta de
esperança. O filme é realista, politicamente maquiavélico (no sentido de não
mostrar o mundo como deveria ser, todavia como é). Chamamos isto de Realpolitik
em oposição a um mundo idealizado. Vejamos exemplos:
A
ideia de que existe um sentimento mais forte como a maternidade que se possa se
impor à barbárie é falsa. A mãe, ao procurar a filha, mata, trucida e pratica
canibalismo. É uma egoísta para duas pessoas. Os outros são egoístas
individuais. O amor materno não redime. Defender a filha é defender apenas a si
e ao seu narciso.
Os
ideais religiosos de missão recebem, literalmente, m... na cabeça. A morte de
Deus (Nietzsche) vem acompanhada da morte da potência humana fora das voltas do
poder (Foucault). Como em Machado de Assis, desponta um niilismo realista, um
esvaziamento de sistemas idealistas ou de uma metafísica. Lembram a frase de
Shakespeare sobre a vida (ainda que Shakespeare não seja um niilista) : é uma
história contada por idiotas, cheia de som e fúria , que nada significa.
A
perturbação com o final ( estariam mortos?, são fantasmas?, aquilo ocorreu de
fato?) andam de mãos dadas com o próprio sentido da criança: é uma mensagem,
porém a mensagem não redime e não significa nada. A civilização é uma casca
frágil, o canibalismo surge em uma semana, somos educados e com fé só se
estivermos alimentados. Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à
dor, criamos metafísica. É isso que incomoda no filme.
Quando
as pessoas dizem, quase em coro: “não entendi o final” , reclamam, no fundo, da
ausência de uma cena que produza a redenção, o sentido e a esperança. A
pergunta curiosa seria não como a maldade humana fica evidenciada no poço,
todavia como se permite a constituição desse panóptico (expressão analisada por
Foucault a partir da ideia de Benthan) que vira apenas uma gaiola de hamster,
um experimento behaviorista (do comportamento), uma situação simples de indução
dos ratos ao choque.
No
panóptico introduzimos o delírio do controle da vida alheia. Como não
controlamos sequer a nossa, esse delírio é muito sedutor, um opiáceo, vivido
agora pelas classes médias nas sacadas da quarentena. Na verdade, toda a
internet é um sistema de panóptico que trouxe a possibilidade de ampliar nosso
ancestral desejo de examinar outras existências. A sociedade distópica do poço
não ficaria melhor se todos fossem alimentados ou o próprio sistema destruído.
As mentes que elaboraram o poço continuariam lá. O que substitui a tirania de
Nicolau II é a ditadura de Lênin e de Stálin. O que vem depois da Bastilha é a
ditadura de Napoleão e a sociedade burguesa e excludente da França. O poço foi
apenas uma maneira de exercer as voltas do poder e o sadismo do controle. Como
a internet ou a quarentena, são expressões conjunturais e históricas de coisas
estruturais. São como as personagens de Sartre (Entre quatro paredes/Huis Clos)
supondo sempre que o inferno está na incapacidade alheia de captar a verdade, a
minha, claro. Em período de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e de
redenção. O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo. Quem
suportaria olhar para a Medusa e sobreviver? Quem consegue olhar para seu poço?
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Análise
do historiador Lenadro Karnal.
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