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(FOTO/ Mídia Ninja). |
O genocídio é um fato mais do que dado. Os números do Atlas da Violência e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registram o que a experiência vivida pela população preta e periférica já sabem. Eu, por exemplo, sei de incontáveis crianças que cresceram comigo e que agora não estão mais vivas. Todas, obviamente, morreram de mortes não naturais. Amigas e amigos pretos também têm esses dados. Gente que some, deixando de existir por uma regra que habituamos ver.
Todos
sabemos: há um genocídio em curso. Isso não é um fenômeno, e sim um projeto que
tem raízes profundas na História do Brasil. A escravidão e a ausência de
políticas públicas de inclusão, acrescidas da ojeriza às pessoas negras,
resultaram no cenário em que somos super representados nas mazelas e
sub-representados no que chamo de sociabilidade saudável.
O
assassinato de George Floyd tirou do segredo palavras nunca ditas na imprensa
brasileira: “Policial branco mata cidadão
negro”. Tratando-se de acontecimentos semelhantes no Brasil, seria possível
uma afirmação desta ordem? A resposta é sim e não. O teor de profundidade que
um sistema de opressão como o racismo opera e como ele se exprime à moda
brasileira, não seria suficiente para noticiar com precisão: Estado branco
assassina cidadão negro.
Por
que digo Estado? Além de haver muitos pretos nas corporações militares, há um
jogo muito bem desenhado que encontra forças no mito sobre a diversidade
brasileira: o bem conhecido mito da democracia racial, cujo um dos efeitos
escamoteou convenientemente para a população branca os entraves de uma relação
de poder violenta, bem como para os próprios negros sua real condição nessas
terras.
A
esse respeito, chama atenção os resultados da Pesquisa Nacional Por Amostras e
Domicílios (PNAD), de 1976, cujo foco era averiguar mobilidade social e a cor
das pessoas. Naquela pesquisa, foram registrados 136 cores. Qualquer caminho
parecia melhor do que ser “negro”. Aliás, quem se sentiria confortável de estar
associado a uma narrativa iniciada nos navios negreiros, que determinou a
cultura negra como inferior: seja pelos traços físicos, seja pelo lugar de
precarização econômica e social que é consequência dos mesmos?
Essa
informação também desvela nuances sofisticadas do racismo, que perpassa pela
noção de colorismo que, a grosso modo, diz respeito de quanto mais escura for a
pele, menos oportunidades e mais associações negativas. É em grande parte, do
preto escuro que escondem a bolsa e relacionam ao macaco. É importante afirmar
que o colorismo não diminui a negritude de ninguém, mas que produz intersecções
diferenciadas num país com letramento racial ainda incipiente.
O fato é que, além de um Estado branco, temos um modo operante branco, uma cultura de sociabilidade embranquecida. Falo “cultura de sociabilidade” porque quando se trata de cultura como expressão artística e imaterial, nós pretos somos bem vindos no carnaval, no samba, no maracatu e tudo que entretenha a branquitude.
Nesses
casos, negras e negros são bem vindos se participarem como fazedores, mas nunca
como gestores e, principalmente, obtendo os ganhos econômicos que toda essa
animação produz. Quando se pensa em políticas públicas, o modelo se repete:
pessoas negras são concebidas como destinatárias dessas políticas e nunca como
escreventes, políticos, gestores e pensadores.
Assim,
o Estado se soma à conveniência dos privilégios garantidos desde tempos
coloniais. A Lei de Terras, de 1850, é um excelente exemplo de como se deu a
divisão da posse e do direito fundamental à moradia. Essa legislação, criada no
contexto internacional da pressão para o fim da escravidão, definiu que o
acesso às terras no Brasil se daria por via da compra. Imaginem vocês uma
pessoa escravizada, forçada ao trabalho incessante em condições sub-humanas e
sem renda, adquirindo um lote?
Naturalizaram a ausência de pessoas pretas em espaços de sociabilidade saudável. Funciona assim: por um lado, somos super representados nos presídios, na situação de rua, nos empregos menos remunerados, por outro, e diretamente proporcional, somos sub representados nas carreiras com salários avantajados como engenharia, judiciário, medicina, tanto quanto na TV, jornais, na política, nas grandes empresas e nas universidades como docentes e reitores. As cotas estudantis, conquistadas a duras penas pelos Movimentos Negros, de certa forma, modifica o cenário discente, apenas.
O
Estado tem tanta responsabilidade quanto a sociedade civil. Para saber quem é
você na fila do genocídio se pergunte e questione: onde estão os negros?
Observe seu círculo social. Se nós negras e negras estivermos neles apenas
servindo, a lógica permanece. A nossa pele não deve determinar nosso trabalho,
nossas escolhas e, principalmente, de estar vivo ou não. Se pergunte e pratique
o antirracismo!
Movimente
essa cena, assumindo sua responsabilidade neste processo. Pretos, em condições
saudáveis e dignas de sociabilidade, deslocam economicamente e culturalmente
uma rede gigante de outras pessoas pretas, que encontram caminhos para uma vida
longe dos estigmas criados e alimentados pelo racismo.
Para
resumir: é bom para todo mundo. “Vidas
negras importam”, não exclui o direito à vida de ninguém, e sim escancara a
participação do conjunto da sociedade na abjeção destas vidas. E, por fim, não
achem que somos um corpo-massa-sólida-única. Ao contrário, somos subjetividades
diversas, de espiritualidades ou não, mulheres e homens cisgênero,
transgêneros, de sexualidades múltiplas, de formas e tamanhos infinitos.
Humanidade que fala, né? Não é teoria, é prática desconstrutiva. Vidas Negras
importam vivas!
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Publicado
originalmente no Alma Preta.
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Erica Malunguinho é deputada estadual (PSOL-SP), educadora, artista, mestra em
Estética e História da Arte e pernambucana.
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