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Quitandeiras, 1875. Acervo Brasiliana Fotográfica/ Instituto Moreira Sales. (FOTO/ Marc Ferrez). |
Não
apenas pelo fato da nossa resistência em relação a tudo aquilo que foi imposto
pelas sociedades ao longo do tempo, mas, principalmente, pela centralidade que
temos ocupado nos processos históricos. Sim! As mulheres de pele escura foram
personagens importantes de muita das coisas que têm aconteceram por aqui.
Algo
que, quando visibilizado, nos ajuda a humanizar a nossa própria vivência e a de
nossas ancestrais. De forma que, não fiquemos à procura de heroínas e
supermulheres da era colonial ou dos tempos atuais. Informações que tornam mais
convidativa e prazerosa o reconhecimento do valor das ações do dia-a-dia, das
capacidades de ação e negociação que a nossa população tem utilizado em
contextos específicos, com possibilidades e oportunidades muito bem delimitadas
ou escassas. Algumas dessas destrezas, ainda sobreviventes, como relíquias, e
que têm sido transmitidas em forma de tecnologia de social de geração em
geração, dentro de nossas próprias famílias. Como já dizia bell hooks, o fato
de a mídia e os currículos escolares não abordarem a profundidade da nossa
existência, não significa que as nossas vidas não sejam complexas e sem valia.
As
mulheres negras têm ocupado papéis centrais e consolidado ações estratégicas
para a sobrevivência da nossa comunidade desde os tempos da escravidão ao
pós-abolição. Sejam elas em espaços religiosos, naqueles que envolvem as redes
construídas a partir do trabalho ou do cotidiano familiar. Foi sobre a
escravizada que, no passado, se construiu a possibilidade da família dentro do
cativeiro. Mesmo sendo a minoria entre os trabalhadores forçados durante todo o
período escravocrata, foi em torno delas que se estabeleceram as linhagens
capazes de atravessarem gerações dentro da plantation. Isso tem a ver um pouco
com as heranças da organização social e política de algumas comunidades
africanas que herdamos na diáspora. E, também, está relacionado com as
configurações dos modos emergentes daquele tempo de se pensar o gênero. Fatores
decisivos para as disputas e o surgimento de um número considerável de
processos judiciais que pautaram o direito dessas mulheres à guarda das filhas
e filhos que nasciam aprisionados pelos ventres cativos, de um decreto que
proibiu a separação das famílias nas transações de vendas dos escravizados (Decreto
n° 1.695 de 15 de Setembro de 1869) e, de certa maneira, da própria da
promulgação da Lei Rio Branco, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre”
(1871). A mobilização que as mulheres escravizadas geraram em torno dos
próprios interesses, impactou, diretamente, o processo da abolição no Brasil,
em Cuba e outras regiões das Américas. Por aqui, essas personagens foram as
figuras centrais para a formação de uma identidade negra que se opunha à
escravidão, pois, além dos motivos já apresentados, elas também foram aquelas
que mais acessaram a liberdade via a compra de alforrias desde do século
XVIII.
As
mulheres escravizadas foram as mais bem sucedidas no acesso às cartas de
liberdade e se alforriaram em maior número quando comparadas aos homens. Além
de trabalhar no campo e vender os excedentes do que plantavam nas feiras
urbanas, as mulheres negras dominavam as
ruas das cidades no que dizia respeito ao comércio de alimentos, amuletos,
entre outras coisas. O dinheiro que arrecadavam com a venda desses artefatos e
das iguarias foram o suficiente para libertar muita gente. Às vezes, elas
exerciam duas profissões ou mais, combinando as funções de escravas domésticas
ou trabalhadoras do campo com o ofício da lavagem de roupas, da venda no
tabuleiro e outros mais.
O
comércio foi uma atividade tão rentável para as mulheres negras a ponto de
mulheres brancas se incomodarem com as africanas livres que, nos tempos da
colônia, tinham dinheiro suficiente para comprar tecidos de boa qualidade e
desfilar pelas ruas dos centros urbanos vestidas com seda e, até, com algumas
joias. Qualquer semelhança com os tempos de hoje quando uma preta tem um
diploma na mão ou consegue comprar uma passagem de avião deve ser mera
coincidência… A presença das mulheres de pele escura nesses espaços também
esquentou a cabeça dos médicos, engenheiros, arquitetos, gestores públicos e
políticos que se empenharam nas reformas urbanas da virada do século XIX para o
XX em cidades como Campinas e Rio de Janeiro. Vistas como parte de um “problema
sanitário”, eles fizeram de tudo para acabar com a prática da lavagem de roupas
nas beiras dos rios e a comercialização de alimentos. A rua foi, cada vez mais,
associada a um lugar profano, infecto e de desordem. Desapropriado para a
mulher branca. Essa degradação moral da imagem das mulheres negras esteve
diretamente atrelada à formação dos padrões socialmente aceitáveis de
feminilidade no período.
Ao
tocarmos nesse assunto, sempre é importante lembrar que a escravidão não foi a
nossa única possibilidade de existência no passado. Geralmente, quando pautamos
a experiência negra, o direito à história e à memória, tentam encurralar nossa
existência em, aproximadamente, três séculos de trabalho forçado nas Américas.
Contudo, muita gente tem lutado para romper os modelos hegemônicos que nos
ensinam formas limitadas de ser, nos ver e pensar. Os olhares que mulheres
negras têm lançado para o passado estão inspirando novas perspectivas
libertadoras de futuro. E, ainda, têm incentivado a pesquisa histórica a
ampliar o campo das análises. Trabalhos recentes revelam que muitas das nossas
também eram trabalhadoras libertas e “livres” antes mesmo da abolição da
escravidão. Outras pesquisas, como a de
quem vos fala, tem apontado para a presença das nossas mulheres nas mais
diversas profissões do mercado de trabalho das cidades e tentado entender
historicamente como fomos aprisionadas no subemprego e encurraladas em
profissões pouco valorizadas. Para além de empregadas domésticas, as mulheres
negras empobrecidas também foram trabalhadoras de fábricas, doceiras,
costureiras e muito astutas, pois sobrevivemos em uma sociedade que nos desejou
a morte.
No
primeiro dia dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, a Unidos do
Viradouro contou um pouco dessa história de forma didática e com muita
maestria. Deu uma aula ao narrar um pouco dos caminhos e descaminhos das relações
de trabalho no Brasil. Com muita beleza e de um jeito que coube o protagonismo
da nossa gente. O samba enredo Viradouro de Alma Lavada trouxe para a Sapucaí a
vida das ganhadeiras, das lavadeiras do Abaeté envolvidas pelo zelo da orixá
que lava as nossas almas: Oxum.
Mesmo
que seja a contragosto, nós existimos e celebramos a nossa trajetória. Aí de
quem ousar esconder a nossa história. Seguimos criando, agindo e desviando dos
estereótipos que poucos nos ajudam a entender as relações de raça e gênero desse
lado do atlântico. E, de alma lavada, seguimos transgredindo o modo de nos ver
e sermos vistas.
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Por
Taina Aparecida Silva Santos, para o Geledés.
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