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Júlia Rocha. (FOTO/ Reprodução/ Site ECOA). |
A semana de sofrimento e morte promovida em Manaus pela incompetência logística e pelo desdém das lideranças políticas que tinham a obrigação de proteger as pessoas da morte por desassistência mas que, deliberadamente, escolheram nada fazer foi, sem dúvida, das coisas mais tristes que muitos de nós viu e vai ver na vida.
Tão
incômodo e doloroso quanto ver as cenas das pessoas morrendo sufocadas por
falta de oxigênio dentro de unidades de saúde foi ver o desespero dos colegas
profissionais da saúde chorando, implorando por ajuda, pedindo recursos ao
telefone, nas redes sociais e na televisão.
Contudo,
não estávamos todos desesperados e chorosos em meio ao caos. Uma parte dos
profissionais de saúde brasileiros estava usando suas redes sociais para
incentivar seus milhares de seguidores a desafiar as autoridades e o vírus. Faziam
em seus stories verdadeiras convocações para que as pessoas saíssem às ruas sem
máscara, sem evitar aglomerações, sem se preocupar com a higiene das próprias
mãos para caminhar nas praias e nas praças livremente já que estariam
supostamente protegidas por medicamentos com capacidade de prevenir ou tratar a
covid-19.
Basta
buscar nas redes para assistir a vídeos bizarros de profissionais questionando
as análises científicas de sociedades médicas conceituadas e insinuando que
quem não prescreve o tal tratamento precoce está compactuando com o extermínio
que estamos vendo em Manaus e em outras localidades pelo país.
Inverteram
as responsabilidades e as obrigações. Agora, são os profissionais que observam
a segurança e a eficácia dos tratamentos e que exigem que primeiro evidências
sólidas e confiáveis sejam publicadas quem tem de provar que o suposto
tratamento precoce não funciona.
Seria
muito fácil que profissionais sérios convencessem a população se estivéssemos
lidando com amadores, com notícias falsas descaradas, toscas e claramente
ridículas e inacreditáveis. Não é o caso. Estamos falando de algo muito forte e
organizado. Estamos falando de uma máquina de fake news qualificada que não
tenta convencer apenas por meio de memes engraçadinhos.
Em
grupos de médicos, tem sido cada vez mais comum que colegas sérios compartilhem
postagens de defensores do tratamento precoce para que, em grupo, chequemos a
veracidade das informações, tamanha é a similaridade das postagens com o que
conhecemos como produção científica séria. Quem não tem familiaridade com
conceitos básicos da epidemiologia, da Saúde Coletiva, da Prática em Saúde
Baseada em Evidências (PSBE) e de outras áreas que formam as estruturas onde a
assistência médica se alicerça vai olhar aquilo e acreditar piamente que
estamos vivendo um tempo onde médicos se negam a prescrever tratamento adequado
aos seus pacientes para que morram e assim contribuam para a queda de um
governo.
Sim,
por que é isso que está em jogo nas entrelinhas do “prescreve quem quer” ou
“toma quem quer”. Adotaram um discurso quase que religioso onde o “tratamento
precoce” nunca tem culpa de nada. Se o paciente fica bom após alguns dias, sem
manifestar sintomas relevantes (como já fica a maioria esmagadora dos
infectados), mérito do tal “kit covid”. Se o paciente desenvolve sintomas um
pouco mais desconfortáveis, o “tratamento precoce” o salvou da possibilidade de
agravamento. Se o paciente piora e fica grave, culpa do paciente, que não usou
as medicações como deveria, ou culpa do médico daquele paciente que não
prescreveu a medicação da forma correta ou no tempo correto. Como se existisse
forma correta de se prescrever um tratamento ineficaz.
O
importante é terceirizar a própria responsabilidade por estar orientando
pessoas a tomar comprimidos ineficientes e encorajando-as, direta ou
indiretamente, a se expor ao vírus.
O
Ministério da Saúde e muitas entidades que representam os trabalhadores que
estão na ponta, se matando para conseguir dar conta da demanda cada vez maior
por assistência à saúde, estiveram em silêncio até 5 minutos atrás, quando, ou
mudaram seus discursos, ou resolveram se posicionar de forma mais firme em
relação a coisas muito básicas como a efetividade do uso de máscaras, do
distanciamento e do isolamento social, de vacinas adequadamente estudadas e
testadas e da lavagem das mãos.
Até
agora, jogavam a bomba armada no colo dos profissionais, exaltando uma suposta
autonomia enquanto pagavam influenciadores na internet para repetirem discurso
anticientífico. Eu me questiono que autonomia é essa que seria possível de ser
exercida dentro de um consultório fechado, com um paciente infectado por um
vírus potencialmente letal, cobrando que você prescreva um medicamento que ele
viu na internet e ameaçando te bater.
Foi
isso que fizeram da nossa prática nos últimos meses. As pessoas viam vídeos de
médicos e até de seguradoras de saúde enviando para a casa dos pacientes os
tais kits para tratamento precoce e vinham dizer aos seus médicos que eles
também queriam ter direito aquilo.
As
postagens com gráficos, tabelas, setas, cores e legendas em inglês, que para
leigos soam como a mais pura nata da ciência, frequentemente sequer
identificavam seus autores. Isso sem falar que omitem números importantes para
sua avaliação por pares e tem metodologia ruim. São comumente trechos e
citações de estudos que não conseguiram sequer ser publicados em revistas
científicas sérias.
E já
se percebe uma distorção mais nefasta e perigosa: estes profissionais retiram
de suas análises bons estudos, com boas metodologias, que se deram respeitando
o rigor científico desde suas fases iniciais até a análise e publicação dos
seus dados, mas que mostraram resultados diferentes daqueles que esses
charlatões querem alardear.
Profissionais
de saúde levam meses, até anos, para construir uma intimidade com o método
científico. Também levam outros bons anos para aprimorar sua capacidade de ler,
interpretar e julgar de forma crítica um artigo ou o conjunto das evidências
disponíveis. Não podemos, portanto, achar que uma pessoa leiga exposta às
maiores barbaridades e mentiras está capacitada para decidir se toma ou não um
medicamento para poder se expor ou não a um vírus que já matou mais de 2
milhões de seres humanos.
De
um lado, jornalistas, comunicadores, pesquisadores, médicos, lideranças
políticas e até religiosas tentam convencer a população que a melhor maneira de
se proteger inclui lavar as mãos rotineiramente, usar máscaras corretamente
sempre que for sair, cuidar de não trazer a infecção para a sua casa lavando
roupas que usou fora de casa, tomando banho assim que chega, deixando sapato na
porta, evitando aglomerações, visitas a familiares, abraços, passeios, viagens,
festas.
Do
outro lado, um bando de irresponsáveis convida você a se juntar a eles na
praia, a desrespeitar as medidas que reduzem seus riscos e os da coletividade,
a zombar dos trouxas que seguem se cuidando e cuidando dos outros e a tomar
medicamentos que só servem pra te dar coragem de se expor ao abismo. Não é
difícil perceber que a ciência séria já sai perdendo na preferência das pessoas
desde a começo.
É
mais fácil escolher ir para a praia a ficar sentindo calor dentro de uma casa
pequena, com suas crianças. A questão é que não deveríamos ter de passar por
isso. Não deveríamos ter que fazer essas escolhas. Esta é, ou deveria ser, uma
responsabilidade das instituições e de seus quadros, que certamente estão
capacitados para fazer esta análise e publicá-las sem receios, sem medos, ser
covardia.
Quando
a pandemia passar, por que ela há de passar, os profissionais e as instituições
que colaboraram para promover esta carnificina, seja por ação ou por omissão,
precisarão se justificar. Precisarão trazer à luz qual foi o combustível que os
moveu a trabalhar pela morte. Terá sido o medo? Medo de quê? De quem?
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