![]() |
Sinfrônio (à direita) trabalhou nas obras do cantetinho, sede do governo durante a construção da capital. (FOTO/ Arquivo Público - DF). Fonte/ Agência Senado. |
A memória do Distrito Federal sofreu mais um golpe no dia 30 de setembro último com a derrubada do imóvel conhecido como Casa da Dona Negrinha, uma edificação antiga, situada no Centro Histórico de Planaltina, cidade de 161 anos e distante 38 quilômetros da capital da República. Para a professora de história da Universidade de Brasília (UnB) Ana Flávia Magalhães Pinto, a perda desse patrimônio revela “descompromisso com o direito à memória e à história da gente negra no Distrito Federal” — uma falha que deve ser combatida, segundo ela. A estudiosa, que tem doutorado e pós-doutorado em história pela Universidade de Campinas (Unicamp), vem nos últimos anos trabalhando justamente em projetos de resgate que mostrem a importância dos negros na trajetória de Brasília, incluindo o período que precedeu à fundação da cidade, em 1960. A Casa da Dona Negrinha ficava a aproximadamente 8 quilômetros da Pedra Fundamental de Brasília, obelisco assentado em 1922 por ocasião do centenário da Independência.
Em
2019, Ana Flávia coordenou o projeto “Reintegração de Posse: Narrativas da
Presença Negra na História do Distrito Federal”, ponto de partida de um esforço
de pesquisa mais amplo em que as experiências sociais vividas nesse território
são analisadas em diálogo com os estudos históricos do pós-Abolição, da
liberdade e da cidadania dos afrodescendentes no Brasil. Um grupo de pessoas
negras de ambos os sexos — entre estudantes e profissionais de pesquisa ou
atuantes nas áreas de história, letras, arquitetura e urbanismo, comunicação e
produção cultural — realizou a busca de imagens e outros registros. Uma das
fotos da exposição montada no saguão do restaurante universitário da UnB
ilustra como poucas a questão do apagamento da memória justamente por se
relacionar a uma exceção: apresenta o negro quilombola Sinfrônio Lisboa da
Costa (1925-2015), que participou da construção do Catetinho, a primeira
residência do presidente Juscelino Kubitschek no Planalto Central. O peculiar a
respeito dele é que recebeu em vida algum reconhecimento e homenagens por seu
papel. A maior parte dos negros que vieram participar da construção de Brasília
tiveram o destino do anonimato, da fixação em bairros distantes do Plano Piloto
projetado por Lúcio Costa e até do retorno obrigatório aos estados de origem.
As fotos e informações históricas do “Reintegração de Posse” também foram
exibidas no Museu Nacional da República e na Câmara Legislativa do Distrito
Federal.
Entrevista
Ana
Flávia Magalhães Pinto, professora de história da UnB
O
apagamento da história perpetua a segregação
![]() |
A pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto no Instituto Central de Ciência (ICC), da Universidade de Brasília. (FOTO/ Arquivo Pessoal). |
Quais
foram os principais achados da pesquisa que culminou com a exposição
“Reintegração de Posse: Narrativas da Presença Negra na História do Distrito
Federal”? Que formulações podem ser feitas a partir do material encontrado? A
etapa da construção de Brasília ofereceu aos negros alguma oportunidade de
reparação de uma história de segregação?
O
Distrito Federal pode ser visto como um território síntese do pós-abolição, e
não apenas pelo fato de atualmente sua população ser majoritariamente negra —
57%, segundo dados da Codeplan [Companhia de Planejamento do Distrito Federal]
para 2015. A partir da década de 1950, ocorreu um intenso fluxo migratório de
pessoas, em grande parte negras, que vieram para cá na esperança de ver
realizados sonhos de vida que eram dificultados ou interditados em seus locais
de origem, e isso incluía gente do campo e das cidades. Quando da inauguração
de Brasília, em 1960, passados mais de setenta da abolição, homens e mulheres
negras seguiam investindo em possibilidades de superação da perversa associação
com a escravidão e o lugar do escravizado — associação que representa uma forma
de naturalizar e, ao mesmo tempo, negar o racismo. Sendo assim, a imagem da
“capital da esperança” acabou por mobilizar corações e mentes que se
autovincularam às promessas de modernidade e desenvolvimento. Acontece que isso
não batia com as aspirações das elites nacionais. Já em 1964, quando os
principais monumentos estavam construídos, afora o investimento na formação das
chamadas cidades-satélites (como Taguatinga, Gama, Planaltina e,
posteriormente, Ceilândia), o governo de Brasília promoveu a “Operação
Retorno”, a fim de expulsar uma inconveniente massa de trabalhadores que não
teria mais utilidade. As lutas populares por moradia no Distrito Federal falam
muito da história da sociedade brasileira, que não previa espaço e participação
democrática para todos e todas. Vestígios expressivos dessa dinâmica foram
encontrados no acervo do Arquivo Público do Distrito Federal, que dispõe de
imagens e textos que nos ajudam a montar um quebra-cabeças e refletir para além
dos termos de uma história meramente local.
Que avaliação faz da situação da população negra no Distrito Federal em termos socioeconômicos? E em que medida o quadro se liga ao que a pesquisa mostrou?
Há
uma nítida diferença expressa no perfil de raça e renda das regiões
administrativas do Distrito Federal. Enquanto nas mais pobres a presença negra
alcança até 70% dos habitantes, nas mais ricas essa participação gira em torno
de 25%, tendendo para menos. Ocorre que muitas vezes não conseguimos articular
esses dados para falar sobre a vida no Distrito Federal, porque eles não se
encaixam nas imagens que aprendemos a mobilizar para dizer o que é Brasília,
entendida geralmente como o Plano Piloto. Nesse jogo de escalas, em que a parte
toma o lugar do todo, até mesmo Brasília fica reduzida a momentos como a Praça
dos Três Poderes, que são registrados ora sem a presença de pessoas, ora
protagonizados por sujeitos da política hegemônica, em sua maioria homens
brancos e vinculados às elites. Além disso, a chave do anonimato, como
materializado na escultura “Os Candangos” ou “Os Guerreiros”, de Bruno Giorgi,
acaba por contribuir para a naturalização do apagamento das histórias dos
trabalhadores antes e depois de 1960. Dessa maneira, fica comprometida nossa
capacidade de reconhecer pessoas negras e brancas pobres como sujeitos
históricos. O projeto buscou, então, reposicionar imagens que vão na contramão
de tudo isso. Juntamente com textos curtos e diálogos diretos e indiretos com
os cerca de 20 mil visitantes, buscamos evidenciar essa ampla participação, o
que implica falar sobre o vivido nas muitas regiões administrativas, não apenas
no período da construção, mas sobretudo nas décadas posteriores.
Se questões socioeconômicas por si só definem certas condições de estar num determinado território, no caso do Distrito Federal existem outras, que se apresentam de maneira subjetiva, capazes também de revelar a posição a que é relegado um grupo social. Qual é o espaço que os indivíduos de cor negra têm para usufruir do território do Distrito Federal? Em que medida a segregação com origem no processo de escravidão persiste, de maneira mais ou menos explícita? Em termos um pouco mais concretos, qual é a facilidade que os negros têm para transitar sem serem constrangidos em locais como prédios residenciais e públicos, aí falando de portarias, elevadores, comércio, praças e ambientes em geral no Plano Piloto e nas cidades-satélites?
Brasília
é a capital de um país cujas elites, no momento da sua independência nacional,
em 1822, optaram pela manutenção da escravidão e pela diferenciação entre seus
habitantes. Os limites colocados à plena cidadania de libertos, como registrado
na Constituição de 1824, são indícios de que a estratificação racial alcançava
o mundo da liberdade e da cidadania. Nessa sociedade, que por muito tempo se
valeu do “preconceito de cor” ou do racismo para excluir, mas, no mesmo passo,
buscou negar que fazia isso, a segregação racial verificada no Distrito Federal
faz todo sentido e é um dado objetivo. O racismo no Distrito Federal pode ser
verificado por meio de séries estatísticas de órgãos oficiais. Por certo, tudo
o que se registra em números pode ser analisado também desde perspectivas
subjetivas. Mas, efetivamente, como disse o geógrafo Milton Santos, todo mundo
sabe que as pessoas negras são discriminadas no Brasil. O que é preciso é que
sejam fortalecidas as estratégias existentes e que outras sejam construídas
para combater essa cultura de exclusão. Até porque o Brasil só é atualmente um
país de maioria negra porque os descendentes de africanos foram estabelecendo
meios de sobreviver à violência racial complexa e cotidiana, indo além dos
constrangimentos em portarias, lojas e outros espaços públicos.
Por abrigar a capital do país e configurar um ambiente de atenção ao que é legal e institucional, o Distrito Federal se apresenta como um lugar no qual a cidadania para os negros oferece uma segurança maior do que em outras localidades do Brasil?
A institucionalidade que parece caracterizar o Distrito Federal não é garantia de proteção contra o racismo. Os próprios mecanismos oficiais de defesa da cidadania das pessoas negras no DF são resultado das lutas de ativistas do movimento negro que, desde os tempos da inauguração, já se faziam presentes. Essa presença negra pioneira, aliás, foi fundamental para o surgimento das primeiras entidades negras, como o Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), o Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto Nacional Afro-Brasileiro (Inabra). Isso sem falar de associações de cultura negra como a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc) e o Centro de Tradições Populares associado ao Bumba Meu Boi do Seu Teodoro, entre tantas outras.
O que a academia, a sociedade e o poder público podem fazer no sentido de reestruturarem as cidades e melhorarem o quadro cultural em favor de uma sociedade democrática em matéria étnica e racial?
No
fim de setembro, a casa da Dona Negrinha, que estava localizada na Rua Treze de
Maio do chamado Setor Tradicional de Planaltina, foi derrubada, não havendo
qualquer interesse de setores do poder público e da iniciativa privada em
garantir o reconhecimento daquela construção como patrimônio material. O
descompromisso com o direito à memória e à história da gente negra no Distrito
Federal é algo que precisa ser combatido com seriedade. Isso certamente depende
do estabelecimento de uma outra relação e até mesmo da escrita de uma outra história
do Distrito Federal, em que as vidas de todos os grupos sociais importem. Além
da manutenção de grupos de pesquisa nas universidades, precisamos potencializar
o diálogo com a Secretaria de Cultura e a Secretaria de Educação, por exemplo.
O letramento histórico e a educação patrimonial antirracista são peças
fundamentais para a promoção de cidadania.
No momento, desenvolve ou coordena alguma pesquisa que dá segmento ao trabalho “Narrativas”?
Em
virtude da pandemia de covid-19, os planos para a remontagem da exposição no
contexto das comemorações dos 60 anos de Brasília tiveram que ser suspensos.
Mas as pesquisas seguem. Além do trabalho iniciado com estudantes de graduação,
eu tenho orientado estudantes de mestrado e doutorado e tenho desenvolvido minhas
próprias pesquisas sobre trajetórias individuais e coletivas da gente negra no
Distrito Federal e no estado de Goiás. Além disso, em parceria com
pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições, estamos em vias de
formalizar o Grupo de Trabalho (GT) Emancipações e Pós-Abolição – Distrito
Federal e Goiás, vinculado à Associação Nacional de História (Anpuh).
Imigrantes negros deram depoimentos a filme de 1966
______________________-
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!