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Mulheres negras são poderosas e perigosas — Audre Lorde fotografada por Robert Alexander/Getty Images. |
Se
você também suspira quando chega a época do ano em que as pessoas se animam com
um feriado regional, mas essas mesmas pessoas também fazem comentários do tipo
“não existe o dia da consciência branca”, talvez compreenda meu estado de
espírito ao cometer este texto. Por um lado, há quem tenha interesse e precise
de indicações para começar a ler mais autoras negras, mas, como alguém que tem
lido cada vez mais e escrito a respeito sempre que uma obra me comove, há
tempos desejo que o Mês da Consciência Negra se torne um pretexto cada vez
menos necessário.
Você
se lembra de quando março era o mês em que mais se falava das escritoras
mulheres nas redes sociais, jornais, revistas e depois do #LeiaMulheres temos
lido autoras o ano todo? É claro que existem pessoas lendo autoras negras em
sua rotina, no entanto, minha expectativa é que leiamos e falemos tanto sobre a
qualidade do texto, as referências, a relevância das questões tratadas em sua
escrita de modo que ‘negra’ se torne apenas um detalhe ao se tratar da literatura
produzida por essas mulheres. Quero ver a igualdade de falarmos de literatura
sem caixinhas como ‘feminina’, ‘lésbica’, ‘negra’ — que todas essas vozes sejam
reconhecidas em sua importância e aspecto político sem serem limitadas a
rótulos que possam ser usados em leituras reducionistas.
É
delicado, porque existem questões como a representação fora dos estereótipos e
o impacto do racismo na vida. Autoras negras têm a vivência, são mais atentas
ou têm um interesse maior para as confluências entre o racismo, o machismo e as
desigualdades sociais, no entanto, as literaturas de mulheres negras vão além
destes temas, embora tenham olhares e linguagens afiadas para tratar de tais
assuntos. Mulheres negras são muito mais do que histórias de violência, de superação
ou a repetição de estereótipos sobre a empregada doméstica, a figura maternal,
a mestiça sensual ou a mulher raivosa.
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Nikki Giovanni. |
De
acordo com a poeta Nikki Giovanni “não há nada mais fantástico do que uma
mulher negra […] ela virá para cá (os EUA), criará uma culinária e ela também
criará uma canção e criará uma cultura”. A partir de uma diáspora forçada,
mulheres trazidas da África para diversos pontos do continente americano se
tornaram lideranças religiosas, articularam estratégias de sobrevivência e resistência,
se tornaram guardiãs dos conhecimentos de seus povos e trabalharam no limite
das proibições impostas pelos captores. Foram fundamentais para a criação da
cultura no Brasil, nos EUA e em diversos países com estruturas escravocratas. O
samba, a feijoada, o sincretismo religioso. Os spirituals, o blues, o jazz, as
culinárias creole e cajun. As danças, as rezas, as curas. A literatura é apenas
mais uma manifestação da capacidade de criação, da coragem e da engenhosidade
das mulheres negras.
Na
Flip 2017, Conceição Evaristo falou sobre como Carolina Maria de Jesus, autora
do clássico Quarto de despejo, geralmente é lida em uma perspectiva documental,
de um relato sobre a pobreza, quando seus diários tratam da angústia
existencial, da escrita como algo que confere sentido à existência humana, da
preocupação de uma mulher com sua liberdade e a solidão decorrente de sua
escolha. Conhecer a literatura de escritoras negras pode ser um exercício de
alteridade, de se abrir a visões de mundo desconhecidas, como também pode ser a
revelação de uma riqueza ancestral, apagada por uma ideia de mestiçagem, que
diminui o valor da produção cultural dos negros entre categorias como gosto e
classe. Conhecer a produção de mulheres negras é se deparar com um rico
trabalho de autoras questionando, produzindo e desafiando o status quo há
gerações.
Para
além de diversos temas, podemos observar a habilidade de transitar por vários
gêneros literários. Conceição Evaristo escreve contos em Olhos d’água, romance
em Ponciá Vicêncio e poesia em Poemas da recordação, além de sua produção
acadêmica. Audre Lorde foi poeta, ensaísta e publicou diários sobre sua
experiência com o câncer. bell hooks publicou diversos títulos sobre teoria
feminista, crítica cultural e livros infantis. Roxane Gay escreveu um romance,
um volume de contos, reuniu ensaios provocadores em Má Feminista e acaba de
chegar ao Brasil seu relato autobiográfico Fome, sobre sua relação com seu
corpo, e a experiência de ser obesa.
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Alice Walker |
Entre
os romances são exploradas diversas fórmulas. Temos a narrativa histórica em Um
defeito de cor de Ana Maria Gonçalves; já Alice Walker usa a estrutura
epistolar com muita habilidade em A cor púrpura e Octavia Butler usou a ficção
científica/especulativa para tratar das histórias fora das versões oficiais e
das desigualdades que persistem em Kindred — Laços de Sangue. Há uma
multiplicidade de vozes e estilos. A expressão “autoras negras” não pode ser um
rótulo que uniformiza diversas possibilidades.
Na
poesia, temos Miriam Alves falando do cotidiano e da ancestralidade, o banal e
o sagrado na vida. Elisa Lucinda menciona os afetos, a relação com a natureza,
a busca pelas semelhanças entre diferentes. Os poemas falados de Stela do
Patrocínio registrados por funcionários da Colônia Juliano Moreira condensam a
força da oralidade e uma visão de mundo cortante, a compreensão da pobreza, a
condição de paciente no hospital psiquiátrico e um entendimento de seu valor
como mulher e entre as demais criações de Deus.
O
sucesso de Chimamanda Ngozi Adichie abriu caminho para a tradução e publicação
de mais autoras como NoViolet Bulawayo, Scholastique Mukasonga, Djaimilia
Pereira de Almeida e Yaa Gyasi. Narrativas de imigração, sobre guerras civis, o
extermínio de povos e de seus saberes, assim como histórias de família que nos
mostram como a África e o Brasil têm muito em comum. Escritoras de romances
young adult como Nicola Yoon e Angie Thomas demonstram muita habilidade ao
tratar do amadurecimento das adolescentes negras, da tomada de consciência do
racismo no dia a dia, da construção da autoestima contra padrões de beleza e da
perda e do luto como parte da formação.
São
muitas as literaturas das mulheres negras, assim como variam suas experiências,
suas disputas no campo literário e as histórias a serem contadas. Aventurar-se
por essas estéticas e narrativas pode ser um passeio fora da zona de conforto,
da ilusão da democracia racial que dizem existir em nosso país. É provável que
exista o incômodo ao se dar conta de como a ficção pode revelar muito mais do
que o noticiário, a revelação dos pontos de vista de personagens comumente
abandonados no esquecimento. No entanto, para quem deseja se abrir para o
diferente, para o diálogo, é apenas o começo. Um passo que pode ser tomado num
mês de novembro, mas um percurso que pode durar uma vida.
Novembro
é o Mês da Consciência Negra. Em 20 de novembro, o país celebra o Dia Nacional
da Consciência Negra, data escolhida por marcar o dia da morte de Zumbi dos
Palmares, um dos maiores símbolos de resistência e luta contra a escravidão.
Nas pesquisas realizadas pela especialista em literatura Regina Dalcastagnè
vemos que, nos lançamentos publicados entre os anos de 1990 a 2004, 93,9% dos
autores são brancos e apenas 7,9% dos personagens são negros. É preciso abrir
espaços na Literatura, é preciso ler mais mulheres e, principalmente, mais
mulheres negras.
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Com
informações do Portal Medium.
*Jornalista,
tradutora e poeta.
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