![]() |
Reunião de um Kgotla em Mochudi, Botsuana, 1968, Dreams Time. (FOTO | Reprodução | Instituto Búzios). |
Os gregos podem ter ficado com a fama por ter institucionalizado uma forma de governo direto em cidades, mas não se engane: a tomada de decisão coletiva pelas pessoas comuns tem uma história muito mais antiga, que remonta a origem da humanidade na África.
Neste
breve ensaio, defendo que a democracia teve início na África Antiga, ao invés
da Grécia Antiga. [1] Ao longo do caminho, demonstro que o foco hegemônico da
História mundial na civilização é equivocado e enganoso. Tal foco, ao fim e ao
cabo, direciona nossa atenção coletiva na direção de impérios, reinos e
dinastias e, ao fazê-lo, ofusca outra História, mais relevante para a
democracia: a história do autogoverno, do igualitarismo, da resistência contra
o controle estatal e da verdadeira democracia. A verdadeira democracia é
definida aqui como o autogoverno pelas pessoas comuns. Ela não tem conexão com
o voto e certamente permanece desconectada de eleições e da representação política
– e ela começou na África.
Uma contra-história da humanidade
A
maior parte da historiografia reconta a história das sociedades humanas como
sendo uma história da civilização. Segundo a Enciclopédia Britânica: “Em geral,
a civilização envolve o surgimento de instituições jurídicas e a aquisição do
monopólio legal da força por um governo. Esses desenvolvimentos possibilitaram
as cidades e os impérios da época clássica e o crescimento de densas
populações.”
Há,
no entanto, outra história a ser contada, a saber, a história das pessoas
comuns e de sua resistência contra o tipo de civilização caracterizada por
domínio, hierarquia e exploração. James Scott (2009) nos forneceu uma
contra-história desse tipo ao descrever a luta de sociedades como os Gumlao,
nas montanhas Zomia, no planalto da Birmânia. Murray Bookchin (1996, 1998, 2004)
também tenta estabelecer uma contra-história nesse sentido, mesmo que seu
tratamento se concentre apenas na Europa e na América. Ronald Glassman (2017)
escreveu uma monografia em quatro volumes sobre a Origem da Democracia em
Tribos, Cidades-Estados e Estados-nação, dedicando um volume inteiro às origens
tribais. Um tratamento mais completo e global das pessoas comuns que resistem
ao domínio e à hierarquia deve começar na África e contar a história da
resistência contra o poder de poucos sobre muitos e a destruição do
igualitarismo amplamente dominante, característico entre caçadores-coletores.
A
próxima fase nesta explicação deve consistir em democracias de aldeias
igualitárias, que devemos conceber como o próximo passo histórico na história
humana – que, até este ponto, ainda era apenas história da África. Somente de
maneira lenta e relutante é que alguns indivíduos devem ter sido capazes de
usurpar o poder da aldeia e concentrá-lo em suas mãos após a fixação em um
local. O governo hereditário deve ter sido o próximo passo nesta história, na
qual cada etapa deve ter sido contestada e recebido resistência ativa,
especialmente por todos aqueles cuja memória do igualitarismo anterior à
fixação local ainda estava viva. Até hoje, ainda podemos encontrar aldeias em
diferentes partes da África praticando a democracia aldeã, mesmo que a
colonização tenha distorcido enormemente essa prática ancestral (Mamdani,
1996). Em lugares como Botsuana, por exemplo, podemos encontrar muitos exemplos
de um ininterrupto governo igualitário aldeão.
A democracia dos comuns
Democracia
significa governo das pessoas comuns. Essa terminologia remonta à Grécia
Antiga, como é amplamente conhecido. Democracia não tem nada a ver com votação
e eleições. Na Grécia Antiga, a maioria dos cargos públicos era distribuída por
sorteio e todos os cidadãos – ou seja, todos os homens livres nascidos na
Grécia – participavam ativamente da tomada de decisões coletivas, praticando
portanto a democracia direta, sem intermediários, sábios ou representantes.
Contudo,
a tomada de decisões coletivas em conjunto não foi uma invenção grega; ela é
muito mais antiga. De fato, há muitas evidências indicando que os seres humanos
tomavam decisões coletivas em conjunto durante a maior parte de sua existência
como espécie e de nossa capacidade de falar – cobrindo, dessa forma, a maior
parte dos últimos 100.000 a 160.000 anos. As evidências arqueológicas
disponíveis indicam que as sociedades pré-neolíticas eram sociedades
igualitárias, sem líderes ou hierarquias pronunciadas e, certamente, sem
representantes políticos (Service, 1975, Clastres, 1985). Glassman chama esse
estágio da democracia antiga de “democracia da fogueira”, baseando sua
categorização nas sociedades coletoras contemporâneas. É com a revolução neolítica
e com o estabelecimento dos primeiros assentamentos que a hierarquia se insere
nos assuntos humanos na forma de reis, chefes, aristocratas e todos aqueles que
estabelecem domínio sobre os outros. É na Inglaterra medieval, enfim, que a
representação política entra na história, quando pessoas começam a eleger
aqueles que as governam.
Grécia e África
A
Grécia Antiga, após as reformas conduzidas por Sólon em 596 a.C., recebe os
créditos pela fundação da democracia, mas, após uma análise mais detalhada, não
foi a democracia em si o que os gregos inventaram, mas a institucionalização da
democracia (Glassman, 2017). Isso porque, como afirmamos anteriormente, as
sociedades pré-históricas eram democráticas, pela própria definição que os
gregos davam a esse termo, ou seja, o “governo das pessoas comuns”. Algumas
sociedades permaneceram democráticas e igualitárias, governando a si mesmas de
maneira coletiva até hoje, seja por não se estabelecerem em um lugar (e,
portanto, evitando a pré-condição para o governo – Woodburn, 1982); por se
esconderem em florestas e selvas (Turnbull, 1968); ou por se refugiarem nas
montanhas e escaparem do Estado e do poder político (Scott, 2010). De acordo
com James Woodburn (1982), certos caçadores-coletores trabalham ativamente para
defender e impulsionar o igualitarismo e têm feito isso há muito tempo. Entre
os Hadza, que ele pesquisou nas décadas de 1970 e 1980, as instituições
políticas atuam contra o estabelecimento de prestígio pessoal, hierarquia e
concentração de poder. O mesmo compromisso com a defesa da igualdade e, de
fato, do igualitarismo é relatado entre os !Kung (Woodburn, 1982). Segundo
Woodburn, “tanto entre os !Kung quanto entre os Hadza, indivíduos que estejam
com quaisquer objetos dos quais pareçam não ter necessidade imediata ficam sob
uma enorme pressão para abandoná-los, e muitos itens são doados quase
imediatamente após serem obtidos e, geralmente, creio eu, sem qualquer
expectativa de retorno.” (Woodburn, 1982:444) Os Oromo na África Oriental
continuam a praticar uma forma de democracia de conselhos, mesmo que
enfraquecida primeiro pelo domínio colonial e, posteriormente, pelas imposições
do Estado-nação etíope (Jalata, 2018).
Da
mesma forma, entre os Tolai, uma sociedade matrilinear do arquipélago de
Bismarck, a acumulação de riqueza pessoal é neutralizada por rituais funerários
que levam à distribuição da riqueza acumulada por uma pessoa após sua morte
(Monsell Davis, 1977; Epstein, 1968). Epstein explica que, “durante os ritos
mortuários de um homem rico, quase todo o seu estoque acumulado de tambu
[dinheiro de conchas] era distribuído, bem como parte do que pertencia aos seus
parentes, e, portanto, a arena do poder era sempre mantida aberta para a
entrada de novos concorrentes diligentes” (Epstein, 1968:26).
Muitas
sociedades nativas e indígenas das Américas criaram instituições políticas
semelhantes, que diluem a concentração do poder entre poucos ou nas mãos de um
indivíduo, protegendo assim o igualitarismo intergeracional e garantindo a
participação política de todos em termos equivalentes (Reiter, 2017).
O sistema Kgotla
O
sistema de democracia rural chamado Kgotla tem raízes pré-colonização e foi
integrado à constituição de Botsuana após a independência do país. Para muitos
botsuanos, o Kgotla é a origem da democracia moderna. Ao discutir a governança
local em Botsuana, Keshav Sharma constata que “Botsuana tem um histórico
louvável em relação ao funcionamento e crescimento do governo local no contexto
africano (Sharma 2005a, 2005b, 2007a, 2007b). O país possui um ambiente
político democrático que permite e propicia o desenvolvimento do governo local.
Há paz, estabilidade e Estado de Direito em todo o país, e há também liberdade
de expressão, crítica e oposição. A participação pública na formulação de políticas
públicas, no planejamento e na implementação do desenvolvimento tem crescido de
forma constante” (Sharma, 2010:137).
Conclusão
Parece
que os verdadeiros democratas da história humana são aqueles grupos e
sociedades que resistiram ou escaparam da dominação e da hierarquia, mantendo o
igualitarismo até os dias de hoje – povos como os !Kung, os Hadza, os Bambenga,
os Mbuti, os Batwa, os Bayaka e muitos outros na África, na Ásia e entre os
povos nativos e indígenas americanos. Tipicamente, eles conseguiram escapar do
sistema estabelecido de dominação sobre os outros buscando refúgio em regiões
de difícil acesso – altas montanhas, como o povo Wintukua da Colômbia (Reiter,
2017) ou os Gumlao, descritos por James Scott (2010); selvas densas (os
Bambenga, Mbuti e Batwa); ou não se fixando e, dessa maneira, escapando do
poder estatal invasor (os Hadza e os !Kung).
Assim
que as pessoas começaram a se fixar em assentamentos permanentes, por volta de
10.000 A.C., a hierarquia e o domínio sobre os outros começaram a tomar o
espaço do igualitarismo. A façanha dos antigos gregos foi institucionalizar uma
forma de governo que permitia o governo direto nas cidades, por meio do
estabelecimento de leis que exigiam a participação ativa de todos, organizando
a vida coletiva de tal forma que, se o governo seria uma realidade, pelo menos
cada cidadão teria a chance, e a obrigação, de participar ativamente dele –
tornando-se, assim, um governante sobre os outros de tempos em tempos.
Entretanto, a democracia em aldeias já havia sido institucionalizada na África
muito antes de Sólon conduzir suas reformas em Atenas. O próprio Sólon estudou
em Alexandria antes de instituir o Conselho dos Quatrocentos em Atenas (Platão,
2012), e devemos presumir que suas propostas foram influenciadas por seus
aprendizados no Egito.
As
evidências disponíveis sugerem que o desenvolvimento gradual do igualitarismo
para o assentamento em aldeias passou por uma fase de democracia aldeã antes
que reis e chefes tivessem sucesso em usurpar o poder. Em alguns casos, a
democracia aldeã permanece como uma realidade até hoje. A institucionalização
gradual da democracia aldeã, com regras, leis e procedimentos acordados
coletivamente, deve ter ocorrido durante a revolução neolítica na África, há
cerca de 10 mil anos – e, portanto, muito antes da institucionalização da
democracia ateniense. O conhecimento e a prática da democracia aldeã institucionalizada,
que é basicamente um tipo de democracia de conselhos, devem ter chegado à
Europa em geral e à Grécia em particular através do Egito, de onde se originou
a civilização grega (Bernal, 1987, 1993; Anta Diop, 1974, 1987).
Notas
[1]
Sou grato aos comentários que recebi de Victor Nweke, que apontou como a
comparação entre a Grécia e o continente africano como um todo é enganosa.
Compreendo a sua crítica, mas não consigo identificar o ponto exato da África
onde a democracia surgiu. O meu argumento é que a democracia, definida como o
autogoverno pelas pessoas comuns, é uma invenção africana, e não europeia.
Espero que pesquisas futuras possam nos ajudar a localizar com mais precisão
onde exatamente na África o regime democrático institucionalizado foi praticado
pela primeira vez.
Referências
Anta
Diop, Cheikh. 1987. Precolonial Black Africa. [A África negra pré-colonial] Chicago: Lawrence Hill
Books.
___. 1974. The African Origin of Civilization: Myth or
Realty. [A
origem africana da civilização:mito ou realidade] Chicago: Lawrence Hill Books.
Bernal, Martin. 1987. Black Athena. Vol. 1. [Atena
negra. Volume 1] New Brunswick: Rutgers University Press.
___. 1993. Black Athena. Vol. 2. [Atena negra. Volume
2] New Brunswick: Rutgers University Press.
Bookchin, Murray. 1996. The Third Revolution. Vol.
1. [A terceira revolução. Volume 1] London: Cassell.
———. 1998. The Third Revolution. Vol. 2. [A terceira
revolução. Volume 2] London: Cassell.
———. 2004. The Third Revolution. Vol.
3. [A terceira revolução. Volume 3] London: Continuum.
Clastres, Pierre. 1989. Society against the State. [A
sociedade contra o Estado] New York: Zone Books.
Epstein. Scarlett. 1968. Capitalism, Primitive and
Modern. [Capitalismo, primitivo e moderno] East Lansing: Michigan State
University Press.
Glassman, Ronald. 2017. The Origins of Democracy in
Tribes, City-States, and Nation-States. [A origem da democracia em
tribos, cidades-Estado e Nações-Estado] Cham (Switzerland): Springer.
Jalata, Asafa. 2018. “The Contested and Expanding
Meaning of Democracy.” [O significado de democracia, disputado e em
expansão] Journal of Interdisciplinary Studies. Vol. 2 (2):1-29.
Mamdani, Mahmood. 1996. Citizen and Subject. [Cidadão
e sujeito] Princeton: Princeton University Press.
Monsell Davis, Michael. 1977. “Inheritance, Magic and
Political Power on South East Papua.” [Herança, mágica e poder
político no sudeste de Papua] Journal of Pacific Studies, III (1977):69-88.
Plato. 2019. Timaeus and Critias. [Timeu e Crítias]
New York: Penguin Classics.
Reiter, Bernd. 2017. “Alternatives to Representative
Democracy and Capitalist Market Organization: The Wintukua, Guardians of the
Earth.” [Alternativas
à democracia representativa e à organização capitalista do mercado: os
Wintukua, guardiões da Terra] Anarchist Studies, 25.1. (2017):68-93.
Scott, James. 2009 The Art of Not Being Governed. [A
arte de não ser governado] New Haven: Yale University Press.
Service, Elman. 1975. Origins of the State and
Civilization. [A origem do Estado e da civilização] New York: W.W.
Norton & Company.
Sharma, Keshav. 2010. “Role of local government in
Botswana for effective service delivery: Challenges, prospects, and lessons.” [O
papel do governo local em Botswana para o fornecimento efetivo de serviços:
desafios, perspectivas e lições] Commonwealth Journal of Local Governance,
Issue 6 (July 2010):135-142.
Turnbull, Colin. 1968. The Forest People. [As pessoas
da floresta] New York: Touchstone.
Woodburn, James. 1982. “Egalitarian Societies.”
[Sociedades igualitárias] Man, New Series, Vol. 17, No. 3. (Sep., 1982), pp.
431-451.
________
Por
Reiter Bernd | Tradução: Everton Lourenço, no Instituto Búzios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!