"Não há muito tempo, em dias de carnaval, um
rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em
seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre
sofrimentos atrozes". Esse trecho é de uma crônica de 1915 escrita por
Lima Barreto, o homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)
deste ano, provando que feminicídio não é um problema dos nossos tempos.
Da
RBA - O texto "Não as matem" é parte da publicação
"Vida Urbana", uma
coletânea de crônicas e artigos do autor publicada em 1953.
Confira a íntegra:
Não as matem
Esse rapaz que, em Deodoro, quis
matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um
sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand
même, sobre a mulher.
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Criador de uma das obras mais inovadoras e plurais, o escritor carioca será tema da 15ª Flip. Foto: Reprodução/ Flip. |
O caso não é único. Não há muito
tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas
do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer,
dias após, entre sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo carnaval,
ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de
pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.
Todos esses senhores parece que não
sabem o que é a vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito de
impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito
diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam
senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de
mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.
O ladrão ainda nos deixa com vida,
se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa:
a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos que
matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.
De resto, semelhantes cidadãos são
idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha
para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem
coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e
então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados
amor ou coisa equivalente?
Todas as considerações que se
possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as
mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser
desprezadas.
Esse obsoleto domínio à valentona,
do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.
O esquecimento de que elas são,
como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas
inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão
estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido.
Todos os experimentadores e
observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a
eternidade do amor.
Pode existir, existe, mas,
excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão
grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.
Deixem as mulheres amar à vontade.
Não as matem, pelo amor de Deus!
(Vida urbana, 27-1-1915)