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(FOTO | Iara Venanzi e Pedro Sena). |
O juiz Guilherme Lamas condenou à pena de um ano, em regime aberto, o segurança Denner Cirineu do supermercado Assaí por crime de racismo contra Luiz Carlos da Silva, de 58 anos. Na sentença, emitida no dia 17 de agosto, o magistrado citou uma série de intelectuais negros, como Sueli Carneiro, Kabenguele Munanga, entre outros.
Luiz
Carlos foi abordado pelos seguranças Denner Cirineu e João Venancio Neto
durante uma ida a uma unidade do Assaí, em Limeira, interior de São Paulo,
localizada na Praça José Bonifácio. O cliente foi colocado em um canto separado
no mercado, sob suspeita de ter furtado algum produto, e constrangido com a
ação se despiu e ficou apenas de cueca, para provar que não havia cometido
qualquer delito. Testemunhas do fato sinalizaram que viram pessoas se
aglomerarem em volta de um “homem seminu”
e que ouviram Luiz Carlos gritar que “não
era ladrão”. O caso ocorreu em 6 de agosto de 2021, por volta das 18h.
O
magistrado sinalizou para os problemas de medidas com potencial de cercear a
liberdade das pessoas e os danos para a sociedade de maneira geral, e condenou
Denner Cirineu a um ano de serviço comunitário em associação com trabalho na
luta antirracista, ao invés de condenar o segurança com 1 ano de reclusão e
pagamento de multa. João Venancio, funcionário contratado de uma empresa
terceirizada de segurança, a Comando G8, não foi localizado pela justiça. A
empresa foi procurada pela equipe de reportagem e não emitiu comunicado até a
publicação deste texto.
Em
um trecho da decisão, Guilherme Lamas cita o livro “Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como
fundamento do ser”, de autoria da filósofa Sueli Carneiro. O juiz destacou
durante a decisão o trecho "a
sustentação do ideário racista depende de sua capacidade de naturalizar a sua
concepção sobre o Outro. É imprescindível que esse Outro dominado, vencido,
expresse em sua condição concreta aquilo que o ideário racista lhe atribui. É
preciso que as palavras e as coisas, a forma e o conteúdo, coincidam para que a
ideia possa ser naturalizada. A profecia autorrealizadora - que confirma as
expectativas negativas em relação aos negros - é imprescindível para a
justificação da desigualdade”.
O professor Kabengele Munanga também é referenciado pelo juiz na sentença. Guilherme Lamas destaca a obra “Negritude: Usos e sentidos”, para rebater o argumento utilizado pela defesa dos réus de que foram oferecidos “cursos” de formação e “treinamento sobre os procedimentos e cuidados com as pessoas” para os funcionários da empresa. No texto, o magistrado afirma que “cabe lembrar que Kabengele Munanga destaca as peculiaridades do racismo no Brasil, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas [do racismo]”.
Diante
da situação de discriminação sofrida por Luiz Carlos da Silva, o juiz reconhece
a seletividade racial existente no Brasil e os privilégios colocados para
pessoas brancas. “A grande complexidade
deste feito reside justamente neste ponto: este signatário, Juiz branco, jamais
seria abordado, trajando seu terno e gravata, em um estabelecimento comercial e
muito menos seria obrigado a ficar apenas em seus trajes íntimos para provar
que não estava furtando”.
Acusação
Luiz
Carlos da Silva afirmou, diante do juízo, que já presenciou em outras situações
pessoas serem abordadas pelos seguranças do mercado, e que em nenhuma das
oportunidades tratava-se de uma pessoa branca. Guilherme Lamas entendeu essa
informação como importante, e rebateu os argumentos utilizados pelo Ministério
Público, que tentou qualificar a situação como “isolada” e sem conexão com a
“política da empresa”. O magistrado, inclusive, sinaliza para o entendimento de
que havia uma necessidade de se aprofundar as investigações, para “se o caso, houvesse eventual inclusão de
superiores hierárquicos na denúncia”.
O
caso envolveu outra particularidade, que foi o fato de Denner Cirineu se
autodeclarar como uma pessoa negra, com familiares negros, e incapaz de cometer
crime de racismo. O juiz rebateu com uma explicação sobre o mito da democracia
racial e sinalizou texto de Dodô Azevedo, publicado na Folha de S. Paulo, em
que o autor sinaliza para a impossibilidade de negros serem racistas, mas terem
a possibilidade de reproduzirem discursos racistas.
Guilherme
Lamas ainda destacou que, se o segurança reproduziu determinada ação, as
práticas racistas estão no meio onde vive, inclusive no estabelecimento
comercial em que trabalhava.
Denner
Cirineu foi desligado da empresa por não cumprir as orientações colocadas pela
companhia. O juiz, para determinar a sentença alternativa e a não reclusão do
funcionário, também levou em consideração o fato de Cirineu ser
responsabilizado de maneira isolada, sem nenhum outro funcionário superior da
empresa, ou mesmo o colega de trabalho.
“Atribuir
apenas ao réu o racismo, isentando os superiores hierárquicos e partindo do
pressuposto de que agiram contra as orientações da empregadora não
retroalimentaria o próprio racismo estrutural do sistema criminal, condenando,
sozinho, por fato de repercussão nacional, apenas alguém se identifica como “uma pessoa preta, com todos os familiares
pretos”?”. Diante disso, ele sinalizou que “talvez seja o caso de buscar alternativas”.
Outro lado
Em
nota enviada à Alma Preta, o supermercado Assaí afirmou que “o ocorrido motivou o desligamento do
ex-colaborador, ainda em 2021, e, desde então, reforçamos nossas ações por meio
de treinamentos e guias orientativos. Mantemos o aprimoramento e as ações de
conscientização para temas como racismo estrutural, vieses inconscientes e
letramento racial, capacitando as pessoas que trabalham no contato com clientes
sobre protocolos de atendimento ao público e comunicação não violenta".
A
rede de supermercados ainda afirmou que "no contrato com todas as empresas prestadoras de serviço em segurança
também foi reforçada a nossa posição de não tolerância quanto atitudes
discriminatórias, com cláusulas prevendo multa e rescisão contratual em caso de
não-cumprimento".
________
Com informações do Alma Preta.
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