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Na mira da ditadura: Walmor Chagas, Millôr Fernandes, Heleno Fragozo,Cáio Mário, Roberto Marinho. Arte: Carta Capital |
Uma
leva de documentos inéditos do Serviço Nacional de Informações (SNI) detalha o
período em que a ditadura brasileira, acuada pela campanha internacional contra
a tortura e as prisões de opositores, monitorou jornalistas e a direção da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A instituição, mostram os papéis de 1976,
era considerada pelo regime uma entidade subversiva e a serviço do Movimento
Comunista Internacional, cujo objetivo seria a “agitação e a desmoralização dos
“órgãos de segurança do País no exterior”.
“Esta
má fé, caracteriza a posição do seu presidente, Caio Mário da Silva Pereira,
elemento esquerdista e anti-revolucionário, bem como do seu vice-presidente
Heleno Fragoso, militante comunista e notório defensor de presos subversivos,
inclusive, do recém expulso Padre François Jentel, como bem mostram os
prontuários respectivos (Anexo U)”, revela o informe redigido em português
pedestre obtido por CartaCapital. “A representação da OAB, encaminhando a
denúncia dos subversivos presos, é mais uma tática do MCI para desmoralizar e
intimidar os órgãos de segurança, visando à sua neutralização atual e extinção
futura.”
Durante
a gestão de Caio Mário da Silva Pereira, lembra o atual presidente do conselho
federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, houve deliberadas tentativas de
vincular a Ordem ao Poder Executivo, “especialmente quando os militares
tentaram transformá-la em uma espécie de departamento do Ministério do
Trabalho”. “Foi uma reação ao então presidente, visto até hoje como símbolo de
resistência à tentativa de ceifar a independência da OAB”, explica, antes de
ressaltar que Pereira e seu sucessor, Raymundo Faoro, eram defensores dos
direitos humanos, mas não necessariamente de esquerda. “Se olharmos a
literatura do Dr. Caio, vemos que não se tratava de um comunista. Ele prezava
pelos direitos civis, mas também pela propriedade privada. Faoro tampouco era
comunista. Mas em ambas as gestões, na tentativa de restabelecer a dignidade da
pessoa humana, a Ordem buscou revelar o que ocorria nos porões da ditadura.”
O
regime linha-dura de Ernesto Geisel também demonstrava uma crescente
preocupação com jornalistas e outros profissionais liberais, cujas ações eram
monitoradas. Em 13 de março de 1976, uma lista com 127 nomes foi enviada ao
comando do I Exército, juntamente com a documentação relativa aos “elementos de
interesse daquele grande comando”. Nomes como Mino Carta, Milton Coelho da
Graça, Millôr Fernandes, Ziraldo Alves Pinto, Walmor Chagas, Ancelmo Rezende
Gois e Nelson Werneck Sodré compõem a lista. Até um aliado da ditadura, o
empresário Roberto Marinho, não escapou.
O
mesmo documento de março de 1976 registra ainda um episódio que revela a
proximidade do dono da Rede Globo com a alta cúpula do regime. “Roberto
Marinho, que inicialmente se mostrou incrédulo, no que se refere à infiltração
comunista no ‘‘complexo – O Globo’’, manifestou ao CMT do I EX a intenção de
demitir 17 (dezessete) jornalistas. Tais elementos foram denunciados,
pessoalmente, pelo = CMT do I EX, a Roberto Marinho, como sendo elementos do
PCB.” Ainda segundo o despacho, as demissões não teriam ocorrido à época a
pedido do próprio comandante do I Exército: “(...) o CMT do I EX aconselhou a
Roberto Marinho a não despedir os jornalistas, a fim de aguardar os trabalhos
de ação psicológica, com o propósito de desmoralizá-los”.
Preso
em 1964 e 1975 e integrante do grupo de “elementos” monitorados, Milton Coelho
da Graça foi chamado pelo próprio Marinho, em 1976, quando deixou o cárcere,
para comandar revistas do grupo, entre elas História do Rock, Vela e Motor e
Arte Hoje. Embora não se lembre de demissões por motivos políticos na editora,
no jornal ou mesmo na TV Globo, ele se recorda de “O Globo estar cheio de
agentes responsáveis por passar informações à polícia e ao serviço secreto”.
Apesar
da célebre frase “Dos meus comunistas cuido eu”, dita por Marinho em 1964 ao
general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do marechal Castello Branco,
Coelho da Graça cita uma lista entregue por Magalhães a diretores de veículos
com nomes de jornalistas proibidos de trabalhar na imprensa, especialmente como
redatores responsáveis por finalizar o texto. “Eles achavam que quem controlava
o que saía publicado eram os copydesks”, relembra.
À
época, a pressão contra o regime de Geisel ocorria em duas frentes. Enquanto,
no plano interno, os ditadores eram pressionados por denúncias de tortura e
mortes em instalações militares, como escancarado em um extenso documento
elaborado por presos políticos apelidado de “Bagulhão”, no plano externo,
diversas entidades na Europa e nos Estados Unidos condenavam a tortura.
O
mesmo documento que cita a OAB como parte do MCI define a entidade como uma das
responsáveis por engrossar o coro da “‘campanha da Tortura’ no Brasil, da qual
faz parte a denúncia dos subversivos e representação da OAB”. “Com apoio de D.
Hélder Câmara, essa campanha alcançou repercussão no exterior, onde passou a
ser patrocinada pelo Amnesty International, entidade que assumiu a liderança
dessas difamações, visando ao descrédito do nosso País.” O relatório cita
também o Livre Noir –Terreur et Torture au Brésil, editado em novembro de 1969
na França, o italiano Livro Bianco – Tortura in Brasil, que data de 1970, além
das denúncias de tortura publicadas no Tricontinental, da Ospaaal (Organização
de Solidariedade aos Povos da Ásia, África e América Latina), e na revista
equatoriana Polemica.
Líder
ecumênico metodista e coordenador do grupo de trabalho da Comissão Nacional da
Verdade que investiga o papel das igrejas na ditadura, Anivaldo Padilha lembra
que a campanha internacional acuou os militares. “Não apenas denunciávamos a
tortura, mas expúnhamos a falácia do milagre econômico e demonstrávamos que a
tortura era parte de um política de Estado organizada como instrumento
sistemático de interrogatório e meio de aterrorizar a população”, conta o
ex-coordenador da campanha nos EUA. Apesar de a Anistia Internacional ter se
unido ao grupo em 1976, os esforços começaram anos antes, por intermédio de dom
Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, que buscava denunciar a
repressão no Brasil. Soma-se a isso o discurso do ex-presidente norte-americano
Jimmy Carter contra as ditaduras na América Latina, ainda durante a corrida à
Casa Branca, em 1976.
O
relatório elaborado pelos presos e encaminhado pela OAB ao ministro Golbery do
Couto e Silva, em 26 de novembro de 1975, cita não apenas métodos de tortura,
mas nomes de agentes torturadores. Nele, 35 ex-presos políticos, entre eles o
ex-deputado federal José Genoino e o ex-secretário de Direitos Humanos Paulo
Vannuchi, relatam torturas a que foram submetidos, assim como prisões de
advogados. O texto descreve métodos e instrumentos de tortura, como a “cadeira
do dragão” (cadeira elétrica na qual a pessoa senta nu, com os pulsos amarrados
aos braços da cadeira, e as pernas presas por uma trava), afogamento,
“telefone” (aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois ouvidos ao
mesmo tempo), “soro da verdade” (uso de pentotal sódico ou barbiturato para
produzir efeito de depressão gradativa dos centros bulbares), “tamponamento com
éter” (aplicação de compressa embebida em éter na boca, nariz, ouvidos, pênis,
vagina, provocando queimaduras), sufocamento, “crucificação”, e “injeção de
éter” (que pode levar ao necrosamento dos tecidos atingidos).
Na
análise do documento feita pelo SNI a Geisel, os militares revelam preocupação.
“A cada denúncia de ‘torturadores’ ou de ‘desaparecidos’, e que traz como
consequência a necessidade de processamento de dados para a elaboração das
respostas esclarecedoras, ocorre, por outro lado, um surgimento de clima de
desestímulo e de certa apreensão entre os componentes dos órgãos de segurança”,
diz um dos informes. No mesmo texto, no qual confirmam as ordens para se
torturar, como no trecho “cabe considerar que os elementos componentes dos
Destacamentos de Operações Internas sempre atuaram no cumprimento das ordens
emanadas dos escalões superiores”, lembram que “as providências para elaborar a
informação sobre a denúncia formulada pela OAB concorreram para estimular o
clima de apreensão”. Uma atmosfera que antevia o debate sobre a necessidade de
punição dos repressores: “O objetivo imediato visado é o de dar continuidade à
campanha no sentido de pressionar os órgãos de segurança, criando um clima
para, no futuro, e, se possível, levar ao banco dos réus os integrantes
mencionados”.
Via Carta
Capital