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Fotomontagem de Lívia Magalhães com imagens de Patrick Raynaud/APIB e Eduardo Navarro/Arquivo. |
A
história é escrita pelos vencedores. No caso brasileiro, primeiro foram os
portugueses e, depois, os holandeses. Documentos que contam a história
brasileira pela perspectiva dos que foram vencidos – os povos originários – são
raros. O professor Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em tupi antigo e em literatura do
Brasil colonial, mostra uma dessas exceções. Navarro pesquisou seis cartas
trocadas entre indígenas em 1645, os únicos textos conhecidos que os próprios
indígenas escreveram em tupi nos tempos coloniais. Essas cartas estão guardadas
nos arquivos da Real Biblioteca de Haia, na Holanda, e detalham uma guerra
religiosa travada entre portugueses e holandeses, com a presença de indígenas em
cada lado, conhecida como Insurreição Pernambucana (1645-1654).
O
professor explica que essas seis cartas pertenciam ao arquivo da Companhia das
Índias Ocidentais, uma empresa de comércio com capitais privados e também
capitais do Estado holandês. Essa companhia organizou uma invasão do Nordeste
brasileiro em 1625, que não foi bem-sucedida. Os integrantes da companhia
voltaram para o país europeu com alguns indígenas a bordo, entre eles os
caciques Pedro Poti e Antônio Paraopeba. Na Holanda, os caciques foram
convertidos ao protestantismo calvinista. Cinco anos depois, houve outra
tentativa de invadir a costa do Nordeste. E dessa vez deu certo,
principalmente, em Pernambuco, onde os holandeses permaneceram por 24 anos,
desde 1630 até 1654.
“E
por que Portugal deixou a Holanda invadir o seu território?”, provoca Navarro. Ele
relata que, em 1645, fazia cinco anos que Portugal tinha saído do domínio
espanhol e, para firmar sua independência, era necessário obter apoio dos
holandeses. Essa aliança foi consolidada pelo padre Antônio Vieira, que também
era diplomata. Ele escreveu o plano Papel Forte, que consistia em entregar o
Nordeste brasileiro em troca de apoio político. Já os senhores de engenho não
queriam a presença dos holandeses, pois muitos estavam endividados com a
Companhia das Índias Ocidentais. Queriam que os holandeses fossem embora, para
não pagar suas dívidas. Nesse período, o conde Maurício de Nassau foi quem
administrou Pernambuco e conseguiu apaziguar os conflitos religiosos e dos
senhores de engenho. Ele criou um ambiente de tolerância religiosa, numa época
em que em território português era obrigatório o catolicismo e as outras
religiões eram consideradas heresia.
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Carta de de Felipe Camarão a Antônio Paraopeba, de 4 de outubro de 1645. (FOTO/ Arquivo de Eduardo Navarro). |
Quando
Nassau voltou para a Europa, em 1644, começaram a acontecer conflitos
religiosos. Jacob Rabbi, um alemão a serviço do governo holandês, provocou um
massacre em Cunhaú, no Rio Grande do Norte. As portas da Igreja de Nossa
Senhora das Candeias foram trancadas e dezenas de fiéis foram mortos. Esse foi
o estopim para a Insurreição Pernambucana.
Navarro
descreve que, do lado holandês, ficaram Pedro Poti e Antônio Paraopeba,
indígenas protestantes, e, do lado português, Felipe Camarão, indígena
católico, que pedia a seus parentes Poti e Paraopeba que voltassem para o lado
português. “Esses pedidos estão nas cartas, todas de 1645: a primeira é de agosto
e as últimas são de outubro. Foram preservadas seis cartas, mas imagino que
deve haver mais”, destaca o professor. Ele conta que a primeira carta de que há
registro é de Felipe Camarão, pedindo para que Pedro Poti deixasse os
holandeses, sob a alegação de que eram hereges e “estão no fogo do diabo”.
Camarão escrevia que os indígenas precisavam se unir, pois eram do mesmo sangue
e não podiam se matar daquela maneira. A resposta do Poti é conhecida através
de um resumo em holandês feito por um pastor holandês. “Poti respondeu que não
havia motivo para apoiar os portugueses, já que eles só fizeram mal para seu
povo: escravizaram e praticaram violência contra os potiguaras. Uma crítica bem
contundente”, ressalta Navarro. Diferentes dos holandeses, os portugueses não
preservaram as cartas dos indígenas, entre elas a resposta de Poti. “Por isso
só é possível ver as cartas que os holandeses receberam”, lamenta o professor.
O
conteúdo das cartas é constituído por textos sobre indígenas que desejam que
seus parentes se unam, que abandonem as suas posições na guerra e parem de
matar os seus parentes. Há comentários em que eles pedem que suas antigas
tradições sejam revigoradas. Por meio das cartas, obtêm-se também informações
mais específicas, como os nomes dos caciques que morreram na guerra e os
lugares em que eles lutaram.
Pelo
fato de as cartas serem escritas pelos próprios indígenas, pode-se observar
como era a língua efetivamente falada e usada por eles, de acordo com Navarro.
Assim, as cartas também são consideradas provas de que os missionários
descreveram a língua corretamente. Como conta o professor, há estudiosos que
dizem que os missionários jesuítas teriam adaptado a língua aos seus
interesses. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. “As cartas comprovam que
missionários escreveram exatamente aquilo que os indígenas falavam.”
Antes
de Navarro, houve algumas tentativas de traduções das cartas. Uma delas foi
feita pelo engenheiro Teodoro Sampaio, que recebeu as cartas pelo historiador
José Hygino Duarte Pereira, que foi quem as descobriu, em 1885. O engenheiro
confessa, em seu artigo Cartas tupis dos Camarões (1908), que até conseguia
reconhecer o assunto das cartas, mas não conseguia traduzi-las efetivamente.
Eram “verdadeiros mistérios”. Ninguém mais tentou traduzi-las até a década de
1990, quando o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Aryon
Rodrigues foi à Holanda buscar essas cartas. Não conseguiu traduzi-las e
mostrou-as a Navarro. “Eu pedi para a biblioteca na Holanda e elas chegaram em
microfilmes. E percebi que ninguém conseguia traduzi-las porque não havia
dicionário em tupi antigo. Eu tive que elaborar um dicionário para depois
traduzir as cartas”, explica Navarro. Após publicar Dicionário de Tupi Antigo:
a Língua Indígena Clássica do Brasil (2013), Navarro começou a analisar as seis
cartas de forma mais intensa.
“São
os primeiros e os únicos documentos escritos pelos próprios indígenas até a
Independência do Brasil. É muito raro ter algo escrito pelos indígenas que
tenha sido preservado. Esse é o verdadeiro valor dessas cartas”, destaca
Navarro. Com esses “documentos preciosos”, de acordo com Navarro, observa-se
também os rumos da guerra. As cartas mostram o movimento dos exércitos,
aspectos da cultura dos indígenas potiguaras e certa tristeza por terem perdido
sua cultura tradicional.
“Esse
trabalho me alegra muito”, comenta Navarro. Ele afirma que há duas razões para
essa alegria. A primeira é que a pesquisa é uma contribuição para a cultura
brasileira. A segunda é que as cartas auxiliam no ensino. O professor conta que
desde 2001 ensina tupi para um grupo de indígenas potiguaras, na Paraíba, que
tinham deixado de falar sua língua e hoje buscam uma afirmação da sua identidade
e querem aprender a língua.
A
pesquisa do professor Navarro será publicada no Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi, de Belém, no Pará.
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Com informações do Jornal da USP e do Portal Vermelho.