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(FOTO/ The Badger Heald) |
Este texto é o prefácio de Ensinando
comunidade: uma pedagogia da esperança, de Bell Hooks, recém-lançado pela
Elefante, parceira editorial de Outras Palavras. Título original: “Reaprendendo a esperançar.”
Começar
por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma
de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma
responsabilidade e comprometimento.
Bell Hooks, Tudo sobre o amor
A
obra de bell hooks ocupa especialíssimo espaço na formação ativista de muitas
brasileiras, sobretudo as pretas, que, como eu, afetuosamente acessaram seus
textos a partir das traduções e da circulação entre pares, décadas antes de sua
aguardada publicação no país. Suas reflexões e seus estudos sobre raça, gênero
e educação sacudiram ambientes acadêmicos e de militância negra e feminista,
incitando diálogos potentes com o pensamento de intelectuais ativistas, como
Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, entre tantas
outras que, em suas trajetórias, confrontaram a especificidade das experiências
de racismo e sexismo vivenciadas pelas mulheres negras brasileiras com o
alcance do ideal de justiça social tão central na face pública dos movimentos
feminista e negro.
Em
Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, bell hooks narra seu processo
de formação acadêmica e identifica como epicentro de sua brilhante carreira a
vivência como estudante de escola segregada onde professoras e professores
alicerçaram o processo de ensino no fortalecimento da autoestima e na crença
absoluta na capacidade de estudantes negros e negras construírem trajetórias
acadêmicas com a excelência necessária para sustentá-los no confronto com o
poder e com os efeitos do pensamento supremacista branco que enfrentariam ao longo
de suas carreiras futuras.
Diante
disso, a transformação da sala de aula em ambiente de afirmação da autoestima
de jovens e crianças negras é central em sua experiência como educadora do
ensino básico e superior e no desenvolvimento dos pilares de sua pedagogia
engajada.
O
exercício de transposição desse ponto de partida defendido por bell hooks para
a realidade do Brasil encontra desafios similares e outros bastante específicos
das relações raciais por aqui: de similar, destaco a necessária atenção à
autoestima, à saúde mental e emocional de estudantes e profissionais da
educação, em especial negras e negros cotidianamente submetidos à descrença de
suas capacidades e ao descrédito em relação a seus conhecimentos e sua cultura
ancestral. De específico, destaco a disseminação do mito da democracia racial
que atua direta e fortemente no silenciamento dos efeitos do racismo
institucional no estabelecimento de processos educativos qualificados em todos
os níveis e para a totalidade dos estudantes.
Para
nós, o reconhecimento das desigualdades raciais implica, sobretudo, a
necessidade de ampliação de ações afirmativas que explicitem o comprometimento
dos sistemas de ensino com a aprendizagem e o sucesso escolar e acadêmico de
todos os estudantes. Esse processo de ampliação das políticas de Estado em prol
das reparações históricas conta com um ator imprescindível, o Movimento Negro
brasileiro.
É
Nilma Lino Gomes quem define o Movimento Negro como “importante ator político,
que constrói, sistematiza, articula saberes emancipatórios produzidos pela
população negra ao longo da história social, política, cultural e educacional
brasileira em prol da superação do racismo” 1.
Apropriar-se
da interpretação histórica das relações raciais desenvolvida pelo Movimento
Negro brasileiro é essencial para a construção de uma proposta
político-pedagógica comprometida com o direito de alunos e alunas vivenciarem
trajetórias escolares ou acadêmicas de excelência.
Esse
fundamento indica a educadores, educadoras e sistemas de ensino a urgência da
disseminação de uma narrativa crítica da história do país que situe, na
resistência negra e indígena às opressões, a concretização do ideal de nação
cidadã e equitativa.
Em
obras anteriores2, bell hooks orienta a construção de um ambiente educacional
onde estudantes e professores, por meio da alegria, do amor, da cumplicidade e
da autorrealização, articulam conhecimentos de diferentes procedências e nesse
processo constroem aprendizagens significativas e transformadoras com
repercussões ao longo de toda a vida. Essa defesa do ambiente escolar como
espaço de inovação, descolonização de mentes e zelo pela integridade emocional
de estudantes e professores se aprofunda nos dezesseis ensinamentos presentes
em Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, no qual bell hooks confronta
duas visões de qualidade nas relações estabelecidas na sala de aula.
Por
um lado, a autora apresenta a perspectiva que situa positivamente a
representação das regras de dominação características do pensamento
supremacista branco, capitalista e patriarcal. Essa sala de aula que se
apresenta como um “microcosmo da cultura do dominador” concede ao professor ou
à professora o poder autocrático de decisão quanto à relevância ou à
insignificância de experiências de um conhecimento ou outro.
Diametralmente
oposta a essa proposição, bell hooks situa e defende a educação como prática da
liberdade e a sala de aula como ambiente de intensos questionamentos
direcionados à formação do pensamento crítico e ao enfrentamento direto da
naturalização da subordinação e da humilhação em relações baseadas na
manutenção do poder. Essa sala de aula que se configura em espaço de pertença,
cuidado mútuo e valorização das diferenças também possibilita a conexão da
educação com um território que extrapola a formação acadêmica para encontrar na
humanização e no amor a Pedagogia da esperança de Paulo Freire e nela assentar
os fundamentos das comunidades educativas e de resistência: “A luta pela
esperança significa a denúncia franca, sem meias-palavras, dos desmandos, das
falcatruas, das omissões.Denunciando-os, despertamos nos outros e em nós a
necessidade, mas o gosto também, da esperança” 3.
Esperançar,
para bell e Freire, é condição para o estabelecimento de comunidades educativas
dispostas a reagir à violência das opressões vigentes em ambientes
estruturalmente hostis à liberdade de expressão e a questionamentos das
relações verticalizadas que as sustentam. É justamente nesse ponto que os
ensinamentos encontram o desejo de ser feliz em sala de aula vivenciando a
troca e o afeto mútuo: bell hooks não romantiza sua trajetória de professora
progressista e intelectual negra; muito pelo contrário, apresenta os desafios
contidos na experiência de desenvolver uma prática de ensino fundada no diálogo
crítico, no antirracismo e feminismo, concebida em ambientes historicamente
favorecidos pelos sistemas de opressão que ela denuncia e combate de maneira sistemática.
No
oitavo ensinamento deste Ensinando comunidade, “Superando a vergonha”, bell
hooks alerta para os sentimentos e as percepções potencialmente destrutivas da
continuidade do sucesso acadêmico de estudantes que apresentavam qualidades
evidentes em suas comunidades no ensino médio, mas que se viram invisibilizados
ou humilhados no ensino superior:
Tomamos
conhecimento de estudantes negros que apresentam desempenho aquém de suas
habilidades. Ouvimos dizer que eles são indiferentes, preguiçosos, vítimas que
querem usar o sistema para ganhar algo sem precisar retribuir. Mas não tomamos
conhecimento das políticas de vergonha e de humilhação. (p. 157)
Nos
ensinamentos da autora, o estabelecimento de comunidades de resistência, que
por meio do exercício do mutualismo praticam acolhimento e proporcionam
pertencimento, é essencial para a sustentação da capacidade de cultivar
esperança, afeto e reconhecimento de um sentido comum na experiência de
formação acadêmica de estudantes negras, negros e lgbtqia+. Na falta delas, o
aumento dos casos de suicídio de estudantes negros nas universidades públicas
brasileiras demonstra que o enfrentamento ao racismo, quando solitariamente
vivido, configura-se em campo minado para a saúde mental e porta aberta para o
risco de humilhação, desonra e finalmente interrupção das possibilidades de
autorrealização, desenvolvimento coletivo e sobrevivência.
É
possível construir essa comunidade de resistência que aproxima estudantes,
professores e gestores dos diferentes sistemas de ensino que constituem a
formação acadêmica; porém essa rede é insuficiente para a proteção social e
emocional que garante à totalidade de estudantes negras e negros vidas maiores
que sobrevidas no cotidiano das exigências da produção acadêmica. É preciso uma
comunidade mais conectada que promova a aproximação mais profunda entre
estudantes e professores com o mundo além da academia, pois é nesse mundo que
reside o sentido de coletividade que sustenta o engajamento como possibilidade
para o enfrentamento ao racismo e a disposição para “trocas dialéticas” nas
salas de aula.
A
rede de sustentação das microrresistências diárias ao racismo e ao sexismo
reafirmada em Ensinando comunidade é composta por pessoas e situações que
envolvem família, amor, sexualidade, espiritualidade, professoras dedicadas a
fortalecer a autoestima e estudantes que desafiam o status quo. Essa rede é
convocada também para o acolhimento dos que sucumbem à humilhação e o
enfrentamento daqueles e daquelas dedicados à desonra de estudantes negras e
negros.
Ainda
no oitavo ensinamento, bell hooks nos conta que, no ambiente segregado onde
iniciou sua escolarização, era considerada boa escritora, e isso era natural;
nos ambientes escolares brancos, conviveu, perplexa, com questionamentos acerca
da autoria de seus textos bem escritos. Em vários ensinamentos contidos nesta
publicação, me reconheci como educadora, e em muitos outros momentos o fio da
memória da estudante preta foi puxado. Nesse caso, especificamente, revivi a
surpresa e a irritação de minha primeira professora de literatura ao descobrir
que eu já havia lido todos os livros que ela tentara me indicar, logo eu, a
estudante preta, filha da servente escolar e do restaurador de livros. Meus
conhecimentos nunca foram reconhecidos ou valorizados nas aulas de literatura,
mas sorrateiramente participei da formação daquela primeira comunidade de
resistência leitora, forjada por meus amigos da quinta série, dialogando sobre
personagens e sugerindo novos desfechos para as histórias pouco animadoras
impostas e nunca discutidas em sala de aula.
Em
Letramentos de reexistência 4, a pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza alerta para
o necessário reconhecimento dos estudantes como portadores de conhecimentos
complexos e importantes para a qualificação dos processos de escolarização que
se estabelecem a partir da apropriação, por parte da escola, das práticas de
uso da linguagem em circulação nos territórios ativistas e no cotidiano de
resistência às várias camadas de exclusão, racismo e discriminação enfrentadas
por crianças e jovens pretos e pretas no Brasil.
Ensinando
comunidade reensina o esperançar de Paulo Freire e nos convoca a praticar a
pedagogia desassossegada que constrói aulas perfeitas, descritas por bell hooks
como um improviso de jazz, momentos únicos em que todos estão presentes por
inteiro e no agora.
1GOMES,
Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 24.
2Ensinando
a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª ed. Trad. Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017; Ensinando pensamento
crítico: sabedoria prática. Trad. Bhuvi Libanio. São Paulo: Elefante, 2020.
3FREIRE,
Paulo. À sombra desta mangueira. 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015,
p. 215.
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4SOUZA,
Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência — poesia, grafite, música:
hip-hop. São Paulo: Parábola, 2011.
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Por Ednéia Gonçalves, no Outras Palavras.