Desde
1994, o português António da Nóvoa, 62, visita o Brasil pelo menos uma vez ao
ano. Requisitado para palestras e aulas, este educador e ex-reitor da
Universidade de Lisboa é, assim, um espectador privilegiado dos avanços e
descompassos do sistema educacional brasileiro. Vê, por aqui, mudanças
significativas, como a ampliação do orçamento dedicado à educação. "Mas a escola pública brasileira ainda é, de
forma geral, um escândalo", diz. "E é na escola pública que se ganha ou se perde um país". Em
2006, Nóvoa liderou o processo de fusão da Universidade de Lisboa e da Escola
Técnica de Portugal, abrindo a universidade ao país. A popularidade que
alcançou na defesa pelo direito ao ensino público de qualidade fez dele o
representante da esquerda portuguesa nas eleições presidenciais do início deste
ano. Derrotado pelo candidato conservador, Nóvoa segue sua agenda de
"ativista da educação", como já foi batizado pela imprensa
portuguesa. Dos exemplos bem-sucedidos de ensino que já conheceu pelo mundo,
destaca os da Suécia e Finlândia. "São modelos fortes porque estamos
falando de três ou quatro séculos de responsabilidade e compromisso com a
escola. Não três ou quatro décadas". Nesta entrevista à Muito, Nóvoa fala
sobre inovação no ensino, elite brasileira e escola com partido.
Publicado
originalmente no A Tarde
O senhor costuma dizer que o problema
da educação brasileira não está na escola. Onde está?
Há
dois problemas centrais. O primeiro é uma falta de compromisso social e
político com a educação de qualidade para todos. Os brasileiros já incorporaram
a ideia de que a escola é importante e de que é preciso que as crianças a
frequentem. Mas ainda não há um verdadeiro compromisso com essa ideia. Não falo
apenas numa escola onde todas as crianças estejam, mas onde todas as crianças
aprendam. Esse ainda é um compromisso frágil por parte das famílias, da
sociedade e dos políticos. E há o segundo problema, a formação dos professores.
No Brasil, os professores são formados com muita coisa teórica, muita coisa
desconectada, e pouquíssimo foco no trabalho docente, na formação do professor
como um profissional que terá uma atuação diária dentro de uma escola. Isso tem
levado a professores com muitos compromissos - políticos, sociais, com o
bem-estar social da criança -, mas com pouco compromisso com a aprendizagem,
que deveria ser o foco.
Nossos resultados médios são ruins,
mas há muitos municípios com resultados bárbaros. Por que não conseguimos
replicar essas estratégias?
Em
regra geral, quando uma escola funciona é a existência de um grupo de
professores que conseguiu mobilizar o município em torno de um projeto.
Portanto, é chave ter professores empenhados e mobilizados. Deveria ser bem
mais fácil, a partir de exemplos que funcionam, criar um contágio positivo para
outras escolas. Mas isso não acontece porque a mobilização dos professores é
escassa. Há um descompromisso, que tem raiz na formação, nos salários fracos.
Há uma coisa no Brasil, por exemplo, que é terrível e que não tem precedentes
em outros países: professores que
trabalham em várias escolas. Isso torna o dia a dia do professor um
inferno. Como ele pode se concentrar numa escola, num projeto, se ele só passa
metade do dia ali?
Essa fragmentação não acontece em
outros países?
Nunca
encontrei um exemplo semelhante. Na Europa não existe, nos Estados Unidos
também não. E em todos os países que visitei na África e Ásia essa não é uma
prática. Essa fragmentação do tempo do professor é uma particularidade do
Brasil.
Inovação, na educação, parece sempre
atrelada a inserção da tecnologia na sala de aula. Por que a escola tem tanta
dificuldade em repensar a forma com que os conteúdos são trabalhados?
Os
profissionais da educação têm, de forma geral, uma atitude defensiva. O
cientista está sempre trabalhando no desequilíbrio, no risco, no desconhecido.
O professor está sempre numa fronteira conservadora, do 'não risco'. Isso
sempre foi assim. E é dramático. Os professores precisam perceber o que está
acontecendo no mundo e, mais precisamente, perceber o que está acontecendo com
as crianças. As crianças, hoje, pensam e ascendem ao conhecimento de forma
diferente de nós. Pela primeira vez na história do mundo, as mudanças na escola
não vão aparecer por conta de teorias pedagógicas, programas educativos ou
leis. As mudanças vão aparecer porque as crianças estão exigindo dos
professores que eles se adaptem a um mundo novo. Isso é totalmente
revolucionário. A primeira revolução foi a invenção da escrita. A segunda, a
invenção do livro. A terceira grande revolução está em curso. Em todas elas, o
que mudou foi a forma de ascendermos ao conhecimento, de usarmos o cérebro e de
aprendermos. Nós estamos num momento de virada na forma como se aprende. As
novas gerações utilizam outras partes do cérebro, não fazem uma aprendizagem
linear - às vezes, partem do mais complexo para depois alcançar o mais
simples.
Como promover essa inovação no
Brasil, onde, segundo dados do Ministério da Educação, 22% dos alunos de 8 anos
não sabem ler adequadamente e 35% não sabem escrever?
A
questão da aprendizagem é, antes de qualquer coisa, um problema de sentido. Ou
seja, quando estamos aprendendo algo nos perguntamos se aquilo tem algum sentido
para a vida. Se eu pedir a uma criança para fazer, durante cinco horas por dia,
uma atividade em que ela não encontre nenhum sentido, ela não fará essa
atividade - se fizer, fará de forma mecânica e não apreenderá. Quando falamos
em escola do futuro falamos de uma escola que se baseia no sentido do
aprendizado. Há, hoje, no Brasil, muitas crianças de 8 anos que não sabem ler
nem escrever, mas essas mesmas crianças são utilizadoras do WhatsApp e muitas
delas escrevem e leem no WhatsApp. Claro, podem escrever e ler mal, mas ainda
assim o fazem. No momento em que elas têm uma necessidade de se comunicar, elas
vão querer aprender a escrever. Como transformar essa escrita em algo que
atenda ao cânone da língua é um desafio. Mas a educação brasileira pode dar um
salto e sair de uma situação complicada para uma situação favorável. Isso
passa, necessariamente, por resolver o problema do sentido da aprendizagem.
Quais competências o professor deve
ter para trazer esse sentido?
No
lugar de competências, gosto de falar em disposições. A primeira é uma
disposição para trabalhar coletivamente. É preciso que o professor perceba que
o seu trabalho não é individual e aquela ideia do 'eu professor, com meus
meninos, na minha sala de aula' já não existe mais. A ideia, agora, é 'nós
professores, com todas as crianças da escola, vamos organizar o trabalho
pedagógico'. Além dessa disposição ao coletivo, há uma disposição em trabalhar
no espaço social. O conceito de que a escola é uma espécie de 'bunker', no meio
de um bairro, de uma cidade, está ruindo. A escola vai andar pela cidade. Quem
educa uma criança é toda a cidade. A ideia de que a escola vai educar a criança
é uma ideia do século passado. Os educadores foram colando tudo dentro da
escola - a matemática, a história, a educação ambiental, a educação sexual, a
luta contra a violência e contra as drogas - e a escola está inchada, prestes a
ver suas estruturas arrebentadas.
Segundo a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico, as instituições públicas brasileiras
gastam quatro vezes mais com alunos no ensino superior do que com alunos na
educação básica. Há uma inversão de prioridade?
Sim.
O Brasil tem uma elite muito forte. Talvez seja um dos países com a elite mais
forte e dotada de grande poder. E, quando falo em elite, falo da econômica, mas
também das elites intelectuais e de esquerda. Por isso, inclusive, há um abismo
entre os professores da educação básica e do ensino superior. Abismo salarial e
de condições de trabalho. A elite brasileira conseguiu criar uma série de
direitos que são muito diferentes dos direitos de quem está embaixo. E isso se
traduz na ideia de um financiamento canalizado para as próprias elites. É
natural que o ensino superior custe mais caro do que o ensino básico. Mas que
seja 20% mais caro, não quatro vezes mais.
Numa entrevista recente, o professor
e ex-ministro da educação Renato Janine Ribeiro disse que há muita resistência
no Brasil em apoiar a educação básica. Uma resistência, inclusive, dentro do
corpo de professores universitários...
Há
uma resistência grande a certas mudanças e uma incapacidade de perceber que as
mudanças têm que acontecer a favor de quem está na educação básica. Quem está
na universidade arranja todos os argumentos para que isso não aconteça. Para
mim, é muito doloroso ver que o Brasil tem, hoje, uma educação universitária
pública de qualidade, mas essa qualidade se faz à custa de uma coisa: 20% dos
alunos estão na universidade pública e 80% estão nas universidades privadas.
Isso quer dizer que a qualidade desses 20% se faz à custa de que 80% dos alunos
foram mandados para as instituições privadas, para pagar taxas elevadas e,
muitas vezes, com ensino de péssima qualidade. Quando o Brasil reserva apenas
20% das vagas para a educação pública e empurra os outros para fora, consegue
uma qualidade nos 20%.
Qual é sua opinião sobre o programa
de financiamento estudantil, Fies, que teve seu orçamento expandido e, agora,
enfrenta desgaste?
Esse
programa tem uma grande vantagem e uma grande desvantagem. A vantagem é permitir
que alunos que não tenham acesso a uma universidade pública possam continuar
seus estudos. Nesse sentido, é um programa de democratização das oportunidades.
Agora, há uma imensa desvantagem, que é o Estado financiar instituições de
péssima qualidade. Não é o caso de todas as instituições, mas é o caso de
muitas. Seria preferível que esses recursos fossem canalizados para expandir a
universidade pública, alargando sua capacidade de acolhimento e oferta de
vagas.
O senhor é a favor de que famílias
mais ricas paguem mensalidade nas universidades públicas?
Este
não é o melhor caminho. Embora seja um pensamento que vem sendo questionado em
muitos lugares do mundo, ainda acredito no direito universal à saúde, educação
e justiça. E se todos têm direito, isso vale tanto para o rico quanto para o
pobre. Essa é minha concepção de justiça social. Então, onde é que se faz o
equilíbrio social para que tanto o rico quanto o pobre, quando cheguem ao
hospital, sejam bem atendidos? Nos impostos. O rico deveria pagar muito mais
impostos do que o pobre. O equilíbrio social não deve ser feito na prestação do
serviço. A universidade pública deve ser capaz de atender o conjunto da
sociedade. Mas a gravidade dessa questão, no caso do Brasil, é que a
universidade pública está disponível para apenas 20% dos estudantes. Está claro
que precisa haver uma maior equidade. E, se para alcançar essa equidade for
necessário, em algum momento histórico, introduzir algum tipo de pagamento, não
vejo mal nisso. Mas esse pagamento deveria ser, também, pensando de forma
universal, com todos os alunos pagando pequenas taxas mensais ou anuais - e
aqueles que não pudessem pagar comprovariam essa incapacidade e ficariam
isentos dessas taxas. Esse pagamento iria permitir que o Estado expandisse a
rede pública e não permanecesse custeando quase a totalidade do orçamento de
universidades que não conseguem atender à demanda de alunos.
Hoje, no Brasil, há diversos projetos
nas casas legislativas estaduais e no Congresso que reivindicam uma
"escola sem partido", na qual não haveria espaço para
"doutrinação ideológica". O que pensa sobre isso?
Esse
debate é um absurdo, porque, obviamente, não há nenhum conhecimento que não
seja fruto de um debate ideológico. Uma escola sem partido é, portanto, uma
escola que não existe. Esses movimentos são, normalmente, autoritários. A
escola sem partido, então, pode ser encarada como a escola de um único partido,
em que o diálogo e a discussão não proliferam e não há compreensão das
diferenças. Já assisti a muitos movimentos parecidos e nenhum deles vingou. Por
outro lado, é preciso recusar a ideia de uma escola doutrinária. A escola não
serve para a apresentação de uma versão, mas para expor o mundo. Serve para
dizer à criança que há muitas maneiras de pensar e de viver. Que há pretos e
brancos, católicos e pagãos. A escola, na verdade, é o lugar para muitos
partidos.
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Para o educador português António da Nóvoa, 62, o debate em torno da escola sem partido é "absurdo". |