A
religião deveria ser ensinada em casa, pelos pais, e praticada no seio das
comunidades confessionais. Nas escolas públicas, deveria prevalecer a discussão
de princípios éticos.
A
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar o ensino religioso
vinculado a uma crença específica em escolas públicas é mais um indício de que
caminhamos velozmente para trás. O Brasil é um Estado laico e, portanto,
deveria incentivar o diálogo entre as mais diferentes confissões, no intuito de
formar cidadãos tolerantes com as opiniões divergentes. Optando pelo ensino
doutrinário de uma religião exclusivista, afundamos ainda mais no pântano do
sectarismo em que estamos estacionados.
O
que a sociedade deveria exigir do Estado é a implantação de um sistema público
de ensino de qualidade que privilegiasse a educação para a cidadania. E isso se
obtém com discussões sobre ética, que encontra-se no domínio da filosofia, e
não sobre moral, submetida a preceitos religiosos. Embora alicerce as
religiões, a ética as suplanta, pois seus princípios são universais, ou seja,
valem em qualquer tempo e em qualquer lugar – enquanto a moral muda conforme os
hábitos e costumes e interesses característicos do tempo e do lugar.
Um
exemplo: a inviolabilidade da vida humana, “não matar”, é um conceito ético,
que independente da época e do país em que se vive e que está presente,
acredito, na base de todas as religiões do mundo. No entanto, como as religiões
defendem princípios morais e não éticos, em nome de Deus cristãos matam judeus,
muçulmanos matam cristãos, budistas matam muçulmanos... Deveríamos lutar para
que nas escolas públicas se ensinasse o princípio ético “não matar” em geral,
ou seja, o respeito à vida de todos igualmente, e não sua derivação moral, de
que a ideia de “não matar” não serve para aqueles que pensam ou agem diferente
de nós.
Recente
pesquisa do departamento de Psicologia da Universidade de Chicago (EUA)
concluiu que crianças educadas em lares não religiosos são mais tolerantes e
generosas que as criadas segundo princípios religiosos. Os investigadores
recrutaram 1.170 crianças de diferentes crenças em seis países (Canadá, China
Jordânia, Turquia, EUA e África do Sul) e demonstraram que há maior coesão
entre os membros de grupos religiosos e maior nível de intolerância com quem
está de fora. As pessoas que não têm religião tendem a ser mais solidárias,
exatamente por não fazerem distinção entre as diversas crenças religiosas.
Nos
últimos tempos, a sociedade brasileira, imersa em denúncias de corrupção e
acuada pela incompetência generalizada da gestão do Poder Público, vem
ancorando seu desencanto na falsa segurança do moralismo. Falsa segurança
porque o moralismo – diferente da ética – funda-se em interesses momentâneos de
alianças espúrias. Em geral, o moralismo é uma cortina que esconde a hipocrisia
e o cinismo. O moralismo censura obras de arte, persegue confissões
divergentes, reprime opiniões contrárias, e, pior, mata homens e mulheres.
Em
nome de moralismo, quatro mulheres morrem por dia devido a complicações
provocadas por abortos clandestinos – mulheres pobres, diga-se de passagem. Em
nome do moralismo, todo dia uma pessoa LGBT é assassinada. Em nome do
moralismo, as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé) são cada vez
mais hostilizadas, principalmente pela militância fundamentalista evangélica, a
ponto de praticamente desaparecerem em alguns nichos tradicionais, como as
comunidades do Rio de Janeiro. Em nome do moralismo, julgam-se e proíbem-se
obras de arte...
A
religião deveria ser ensinada em casa, pelos pais, e praticada no seio das
comunidades confessionais. Nas escolas públicas, deveria prevalecer a discussão
de princípios éticos, comuns a todas as pessoas, sejam elas ligadas ou não a
crenças religiosas. Só assim poderíamos pleitear uma sociedade mais justa e
tolerante. Infelizmente, parece que estamos optando por trilhar o caminho
contrário, de repressão, do obscurantismo, da intransigência. (Por Luiz Ruffato, no El País).
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Fiel segura uma vela em uma cerimônia religiosa pela paz. (Foto: Ye Aung Thu/ AFP). |