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Luther King e Dallagnol: a única semelhança é a fé batista. (Foto: Reprodução e ABr). |
Dois
acontecimentos relacionadas à fé evangélica apareceram no noticiário: o jejum
do procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, pela prisão do
ex-presidente Lula e a memória dos 50 anos do assassinato do pastor evangélico
norte-americano Martin Luther King.
Curioso
que dois fiéis de tradição batista ocupem o noticiário e as mídias digitais
quase ao mesmo tempo. E mais: que estejam colocados em posições tão diferentes
no que diz respeito à forma como tornam pública a sua fé.
Luther
King era um pastor batista. Vivia no contexto de segregação da população negra
no país, com a negação do direito de votar e a instituição de espaços públicos
separados dos brancos.
Ele
vivia na carne esta segregação. Sua fé no amor de Deus o instigou não à
vingança, mas à compreensão de que este amor incondicional é dirigido a todos,
sem distinção, de sorte que todos têm direito a ser tratados com dignidade.
Por
isto, o pastor foi compelido a denunciar o racismo em seu país e conclamar a
reconciliação e a paz entre negros e brancos.
Luther
King tornou-se um grande líder do movimento de superação do racismo nos EUA e
por direitos civis, com atos, protestos e manifestações públicas não-violentas.
Recebeu
o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e no mesmo ano viu o alcance dos direitos
concedidos por lei. Ele prosseguiu: liderou a Campanha pelos Pobres, contra a
desigualdade econômica, e pregou ardentemente contra a Guerra do Vietnã.
Recebeu
também muitas ameaças de morte, mas se manteve firme no compromisso de sua fé
no Deus da vida e da dignidade para todos. Em 4 de abril de 1968, foi
assassinado com um tiro.
Nesta
semana recordamos que, depois de 50 anos, o legado deste evangélico se faz
ecoar tanto nas ações contra o racismo quanto na teologia do Evangelho Social,
que até hoje inspira cristãos e cristãs a ter uma fé viva, comprometida com
atos concretos pela igualdade, justiça, paz e reconciliação.
O
jovem procurador, da Igreja Batista de Curitiba, igualmente esteve em
evidência. Ganhou notoriedade a partir de 2014, por conta da Lava Jato. Entre
suas intervenções políticas, destacam-se as “10 medidas de combate à
corrupção”, com assinaturas colhidas em peregrinação em igrejas evangélicas.
A
atuação de Dallagnol é divulgada em eventos de igrejas e pelas mídias como
vocação cristã. A repercussão acabou por impregnar de um caráter messiânico sua
atuação, por conta do punitivismo da força-tarefa. Ela responde a anseios de
vingança de parte da população contra alvos da operação, em especial o
ex-presidente Lula, vítima de um processo internacionalmente questionado.
Há
ainda outras controvérsias em torno do procurador evangélico que comprometem a
imagem construída de paladino na luta contra a corrupção. Elas incluem certa
ilegalidade de ações, como a prática de escutas telefônicas sem autorização, a
apresentação pública de acusações sem provas, que gera a destruição prematura
de reputações, a aquisição de apartamentos do Programa Minha Casa Minha Vida
como investimento, e o recebimento mensal de verbas públicas para auxílio-moradia
(4.377,73 reais), apesar de possuir um imóvel próprio em Curitiba.
Dallagnol
voltou às mídias ao tuitar: “4ª feira é o
dia D da luta contra a corrupção na #LavaJato. Uma derrota significará que a
maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão
responsabilizados, na Lava Jato e além. O cenário não é bom. Estarei em jejum,
oração e torcendo pelo país”.
Sem
considerarmos as premissas de que um procurador não deve tomar partido
publicamente sobre esta ou aquela situação em julgamento, e de que o Estado é
laico e seus servidores não podem ser guiados nas ações de interesse público
por preceitos religiosos, importa avaliar suas palavras com base na própria fé
cristã que professa.
Na
tradição judaico-cristã, o jejum representa uma prática de devoção, seja em
arrependimento por atos praticados incoerentes com a fé, seja em busca do favor
de Deus em uma situação pessoal ou em causa coletiva.
Segundo
a orientação de Jesus de Nazaré, registrada na Bíblia, não se deve fazer do
jejum algo banal ou fonte de autopromoção. A prática deve ser realizada com
discrição, na intimidade fiel-Deus, sem demonstrações públicas, classificadas
nesse ensino como hipocrisia.
Antes
de Jesus, os profetas ensinavam que Deus condena e rejeita o jejum hipócrita e
espera mesmo é que seus fiéis realizem a justiça plena, como diz Isaías (cap.
58):
“De
que serve jejuar, se com isso não vos importais? E mortificar-nos, se nisso não
prestais atenção? É que no dia de vosso jejum, só cuidais de vossos negócios, e
oprimis todos os vossos operários. Passais vosso jejum em disputas e
altercações, ferindo com o punho o pobre. Não é jejuando assim que fareis
chegar lá em cima vossa voz...”
Prossegue
o texto: “O jejum que me agrada porventura consiste em o homem mortificar-se
por um dia? Curvar a cabeça como um junco, deitar sobre o saco e a cinza?
Podeis chamar isso um jejum, um dia agradável ao Senhor? Sabeis qual é o jejum
que eu aprecio?, diz o Senhor Deus: É romper as cadeias injustas, desatar as
cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, e quebrar toda espécie de
jugo. É repartir seu alimento com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes sem
asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu semelhante”.
Dallagnol
não só praticou o contrário da orientação cristã como relacionou o jejum a uma
causa individual (sua insaciável busca de condenação do ex-presidente Lula)
transformando-a em causa coletiva, desconsideradas as internacionalmente
notórias incongruências em torno do processo.
Busquei
mensagens do procurador sobre jejum e oração relacionadas a outras situações de
destaque ou causas coletivas em que se espera a aplicação da justiça no País e
não encontrei. O jejum acabou instrumentalizado politicamente e Deus usado em
um projeto pessoal.
Luther
King e Dallagnol: duas formas diferentes de praticar a fé. Uma fé viva e
comprometida até a morte, em nome da luta por justiça e paz para que todos
sejam tratados com dignidade, face concreta do amor de Deus. A outra, uma fé
demonstrada para uma população vingativa e punitivista, por meio de uma
religião seletiva de trocas com Deus. Um tem uma herança viva 50 anos depois, o
outro... (Por Magali do Nascimento Cunha, em CartaCapital).