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Ronald de Figueiredo em diálogo com Valéria e Verônica no Terreiro das Pretas, núcleo de GRUNEC. (FOTO | Reprodução | WhatsApp). |
Por Ronald de Figueiredo e Albuquerque
Faz poucos dias que estava lembrando de Jackson, grande amigo e pessoa comprometido com todas as lutas nas quais as questões ambientais, dos direitos e da educação eram focos prioritários. Lembro com pesar sua militância ambiental, são poucos os que hoje ainda colocam esta questão tão importante como fundamental para a existência de todos nós.
Lembrando, me chamava a atenção parar o carro quando estava em atividade para repreender meninos com baladeiras ou com gaiolas. Parava o carro e ia explicar a importância dos pássaros, a beleza de tê-los soltos, de ouvir seus cantos e da sua importância no processo de reprodução das plantas.
Nesse ponto recordo de outra figura exemplar, Dona Zefinha, moradora e professora em Jardim, na zona rural. Falo dela porque de maneira concreta, mostrava aos seus alunos pequenos, com um palito a mexer nas fezes de um pássaro, como estes ao defecarem põem, com suas fezes, sementes de plantas que fecundariam alimentadas que estavam com o coco do pássaro. Era disso que falava Jackson ao repreender os garotos, ali estava a importância dos pássaros no processo de preservar as matas.
Jackson estava presente na reforma do museu de paleontologia, na construção do projeto do Fórum da Mesorregião da Chapada do Araripe, na sua presença em vários espaços a falar e a refletir sobre o meio ambiente, a paleontologia, sobre a necessidade de se criar associações para organizar as pessoas em defesa de seus pleitos políticos, sociais e econômicos.
Desse modo, como tantos outros, participou da fundação e organização do Partido dos Trabalhadores, bandeira que permaneceu desfraldando mesmo quando o PT se reformula e passa a comportar-se como uma agremiação igual a todas as outras: com líderes, com chefes, com uma oligarquia interna que determinava suas ações e suas composições. Suas propostas foram amenizadas para se tornar palatáveis.
Como petista me insurgi contra essa mudança de rumo, deixei de frequentar reuniões e encontros, de participar de passeatas. Continuei apenas a votar nos candidatos petistas, afinal ainda ficaram algumas bandeiras, não com a mesma força, mas continuavam. Diante dessa minha indiferença em relação ao PT, Jackson, já de cadeira de rodas, não cansava de ir me procurar e me levar para as reuniões, não aceitava que apenas calasse diante do que estava posto. Ele dizia sempre: “É isso que eles querem, vamos lutar, vamos confrontar, não podemos ficar calados.”
Era ele esse tipo de pessoa, não recuava, não se entregava, não baixava a cabeça. Desse jeito seguia sempre adiante, desbravando novos caminhos, seguindo os já abertos, abraçando militantes e causas. Foi assim com o GRUNEC, abraçou a causa, militou, compôs com aqueles que já vinham na luta em defesa das maiorias, já que o movimento levantava a questão dos negros, colocava a sua história e a sua importância para o Brasil e para os brasileiros, em sua maioria negros e afrodescendentes (por isso digo que somos uma maioria e não minoria como nos querem definir).
No Grunec, desde os primeiros momentos. Quando organizamos o encontro em que essa entidade dos direitos dos negros e dos afro-descentes, se consolidou, fruto da militância forte, corajosa e destemida de duas mulheres negras (pretas?): Valéria e Verônica. Não foram as únicas, mas sem elas, não naquele momento, o GRUNEC não se tornaria essa entidade que hoje é. Esse encontro foi um marco, reuniu mulheres e homens negros, mulheres e homens afrodescendentes e, inclusive, homens e mulheres brancos que assumiam a luta por direitos e reconhecimento. Luta, confronto, imposição, em posição de afronta para não serem nunca mais negados.
Jackson estava lá, como estava também na viagem feita a Jardim, município do Cariri, que eu lembro também por sua importância original. Para Jardim fomos levados por João do Crato, Junior, militante político do PT, e sua irmã. Estavam na comitiva além deles Mota, Adriano, Verônica, Valéria e eu, Ronald. Lá conhecemos algumas comunidades que foram para nós um instante educativo e, por isso mesmo, reflexivo. Refletimos, com as conversas nas comunidades, sobre a caminhada já feita e por fazer, creio que foi ali que percebemos a importância do movimento que se iniciava.
Na conversa com os mulatos, a primeira comunidade que visitamos próxima a cidade de Jardim, pudemos escutar a fala dos seus moradores que faziam questão de dizer que não eram libertos, mas que foram sempre livres. Havia orgulho neste fato, mas havia também uma certa distinção, um certo destaque. Os escravos eram negados como pessoas, eram diminuídos como homens e mulheres, eles no caso não! Eram negros e negras, mas ao serem livres eram diferentes, não diria melhores, não se reconheciam assim, mas reconheciam que essa condição dava a todos eles autonomia, mesmo que pelo fato de serem negros eram vistos como menores.
Essa percepção deles fazia com que enxergássemos as diferenças de visão que eles, ou os negros de modo geral, tinham ao olharem para si mesmos. Era necessário que víssemos essas diferenças. Ao serem negados como pessoas, ao serem rebaixados a condição de servis ou, pior, de propriedade de outros homens, sem vontade, sem autonomia, mas apenas como mercadorias em si mesmos. Isso era o está no piso, no chão fora da condição de seres humanos.
Ao perceberem isso, os mulatos se viam não como coisas, mas como pessoas, distintos. Sua distinção, no entanto, se fazia por serem livres, como eram livres? Por terem fugidos? Por terem comprado suas cartas de alforria? Por desejo dos seus antigos proprietários? Para eles que eram escravos negros ou ex-escravizados, já que o ser negro, da sua cor, era o indicativo de que mesmo livres não escapavam de sua condição de inferiores porque negros e, portanto, antigas mercadorias, coisas. Sendo assim, tentavam diferenciar-se e escondiam sua condição de ex-escravizados.
Foi uma aula provocativa. Para mim, foi um choque, não existia ali uma “solidariedade”, eles eram diferentes, estavam acima na escala de humanidade posta pelos brancos. Queriam ser aceitos? É difícil se aceitar como o que eram, já que o contexto em que viviam, econômico, social, político e religioso, principalmente este na medida em que os brancos se vinculavam ao Deus, que era seu igual, pintado inclusive de branco. Os negros estavam ao azar. Como rezar para um Deus branco? Como pedir para um Deus branco? Nós nascemos livres, pelo menos essa condição não pode ser negada.
Depois fomos a uma outra comunidade. Essa tinha como centro uma casa de farinha, local de produção, local de manufatura onde a mandioca se transforma em farinha ou goma. Centro econômico, social e cultural. Aqui, senão a propriedade da terra, mas o produto da terra lhe pertencia, pois, não sendo proprietário, era parceiro, rendeiro ou morador que pagando o uso da terra tinha a propriedade do que produzia.
Todos que viviam ali eram iguais, igualmente produtores livres, igualmente produtores de mandioca, que continuavam como produtores da farinha e da goma e, como tal, o proprietário da goma e da farinha. Produtores de mercadorias e comerciantes, desse modo reconhecidos: pela propriedade iguais.
Depois, alguma coisa a mais os faziam iguais entre si: a cultura. A cultura da mandioca é interessante pois junta os vizinhos que plantam e colhem juntos. Que juntos limpam a mandioca ou a macaxeira (raspam seria o termo, tirar dela a casca), levam para a prensa, lavam, prensam e, no forno, torram e transformam em farinha. O trabalho é conjunto, se ajudam mutuamente, todos participam do trabalho e com isso estreitam os laços. Enquanto trabalham conversam e cantam, fazem a comida que é distribuída entre todos.
O trabalho na produção da mandioca, o fabrico da farinha e da goma, a maneira como fazem essas atividades, os instrumentos que usam na produção dessas mercadorias, as funções das mulheres e dos homens, a aprendizagem técnica do trabalho, tudo é cultura e como tal é passada por todos e para todos. Essa atividade é centenária, desde os índigenas passadas aos brancos e aos negros. Nos quilombos era produzida a mandioca e a macaxeira, era feita a farinha e a goma, lá os laços de solidariedade estreitavam e nessas atividades se educava para a comunidade.
Nesse mesmo dia fomos a uma terceira comunidade negra. Ela era constituída basicamente de uma única família que mantinha algumas tradições de gerações passadas, pode-se dizer que remontavam ao século XIX. Essa comunidade era isolada, ao contrário das outras, suponho que esse isolamento fazia com que se preservasse uma religiosidade mais íntegra, a matriarca mantinha as tradições religiosas, vestes mais adequadas aos rituais, não sou nenhum conhecedor das religiões afro mas o colorido das roupas que nos foram mostradas, depois de muita insistência, eram diferentes.
Duas coisas me chamaram a atenção. A primeira delas a resistência em falar para nós, em tocar nas questões próprias de sua comunidade, aos vínculos com o passado, se resguardavam. Depois, ao serem questionados quanto a religião que praticavam, sabíamos por antecedência (quem nos falou foi João do Crato que os tinha visitado no passado) que a matriarca era a praticante do culto que preservavam, não quiseram se mostrar ou mostrar suas práticas. Quando insistimos, nos contaram de uma visita de jornalistas de uma emissora de televisão que solicitaram que a senhora se mostrasse vestida com os trajes próprios e a filmaram coisa que ela não havia permitido e muito menos que pudessem exibir. Não sei se era medo de retaliações de se mostrarem guardiões de uma cultura até pouco tempo proibida ou, no mínimo, diminuída e execrada pelo catolicismo e pelos senhores católicos escravagistas.
Talvez o receio da folclorização que acaba por esvaziar o significado religioso e tornar as religiões afro como mitológicas, assentadas em não-verdades, em mitos contrapondo-as a verdade “revelada” do cristianismo de vários matizes. Ao diminuir as religiões afro diminuíam seus praticantes comparando-os a seres menores, incapazes de perceber a transcendência do mundo, a “verdade absoluta”. Conversamos com eles e mostramos os vínculos do GRUNEC e de seus membros, o que resultou em marcar um retorno para uma conversa mais alongada.
Essa visita a Jardim, como disse antes, foi uma construção, construção de uma compreensão mais aprofundada do significado do ser negro, das diferenças que o ser negro resguarda, preserva, mas que se revelam e ao se revelarem aproxima mais nas diferenças. A África não é uma só, são várias como várias são as nações que lá existiram e existem e que foram maculadas pelos brancos, suas armas e sua religião. O que nessa viagem aprendemos, todos nós, foi que a luta do negro e da negra é maior e mais complexa do que havíamos compreendido antes, são culturas diferentes que devem ser respeitadas, apreendidas e preservadas levando-nos a superação do mando e do mundo unicamente branco.
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Ronald de Figueiredo e Albuquerque é professor aposentado da Universidade Regional do Cariri no Curso de Ciências Econômicas, graduado em Filosofia (UECE), especialista em História do Brasil, Mestre em Sociologia e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Muito bom o texto. Um ótimo registro e reflexão sobre a militância e questões raciais no Ceará...
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