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Frants Fanon e Amilcar Cabral, respectivamente. (FOTO | Reprodução | Montagem | blog Negro Nicolau). |
Paulo
Freire (1921-1997) é original e inovador e sua obra é amplamente reconhecida
pelo mundo. Seu livro “Pedagogia do
Oprimido” é considerado uma referência global e o terceiro texto mais
citado nas Ciências Humanas. A intelectual e ativista norte-americana bell
hooks, inclusive, atribui à obra a fagulha inicial de sua longa e frutífera
carreira, como conta em “Ensinando a
Transgredir”. Mas, como todos os grandes pensadores e pensadoras, o Patrono
da Educação Brasileira não construiu suas teorias e práticas sozinho. Entre os
que sustentam os pilares da obra freiriana, os pensadores Amílcar Cabral e
Frantz Fanon ocupam um lugar central.
“É difícil classificar Paulo Freire em uma
corrente teórica porque ele usa muitas referências, quase sempre buscando a
teoria para explicar a prática. Amílcar Cabral e Frantz Fanon, por exemplo,
ofereceram a ele um método de interpretação da realidade para compreender a
questão do colonialismo e o pensamento anticolonial”, explica Sérgio
Haddad, doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São
Paulo (USP), um dos fundadores da Ação Educativa e autor da obra O Educador: um
perfil de Paulo Freire.
Amílcar
Cabral, o pedagogo da revolução
Amílcar
Cabral (1924-1973) nasceu em Guiné-Bissau, uma das colônias africanas de
Portugal, e foi o líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde. Para ele, a libertação das colônias dependia mais da educação e de
uma revolução cultural do que de uma luta armada, porque pouco adiantaria uma
independência política se a cultura do dominador continuasse a ser reproduzida
e admirada no lugar da valorização da cultura própria.
“Toda a educação portuguesa deprecia a
cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas
escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano
como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e
heróis. As crianças adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola
primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos”,
diz Cabral em “Unidade e Luta, a Arma da
Teoria” (1978).
Poucos
meses antes da libertação pela qual dedicou sua vida, Cabral foi assassinado por
fascistas portugueses. Pela importância que Cabral dava à Educação e à formação
humana, a Comissão de Educação da Guiné-Bissau recém-libertada decidiu convidar
especialistas em abordagens decoloniais da Educação – entre eles, Paulo Freire
– para desenvolver seu sistema educacional.
Você sabe a diferença entre descolonial e decolonial? O primeiro termo refere-se à libertação de nações que ainda estão sob domínio de outras, enquanto o segundo diz respeito aos países que já foram colônia um dia, mas não são mais, como é o caso do Brasil.
A
missão do educador brasileiro era ajudar a criar um novo currículo que
re-africanizasse a população. Uma escola com sentido para aquelas pessoas e que
valorizasse a identidade local, retomando sua história, cultura e línguas, a
partir do ponto de vista próprio, não mais do colonizador. Para Freire, isso
tornaria as pessoas mais críticas e protagonistas, algo crucial após serem
sujeitadas à passividade e subjugação de uma doutrinação colonial.
No
Brasil, as pesquisadoras Ana Paula Cavalcanti e Slaine Senra Mattos do Amaral
se debruçaram sobre a interlocução entre Freire e Cabral, que nunca chegaram a
se conhecer pessoalmente. Freire entrevistou várias pessoas próximas a Cabral
para compreender melhor seu pensamento e expressou em todas essas conversas
enorme pesar por não tê-lo conhecido em vida. A análise dessas entrevistas,
feita pelas pesquisadoras, foi publicada no artigo A prática educativa de
Amílcar Cabral no processo de descolonização: diálogos de Freire em África, na
Revista de Educação Popular (2021).
“Freire chamava Cabral de Pedagogo da
Revolução por ele ter começado a revolução por meio da pedagogia, ao montar
centros de estudos e crer que a cultura, enquanto um ato político, liberta”,
conta Slaine.
Vale a pena ouvir! As pesquisadoras Ana Paula Cavalcanti e Slaine Senra Mattos do Amaral produzem um podcast dedicado a explorar a vida e obra de Paulo Freire.
Durante
seu trabalho em Guiné-Bissau, Freire personalizou todo o processo de
alfabetização ao contexto sociocultural do país, inclusive linguístico, e
trazia não apenas conteúdos técnicos e científicos, mas também debates e
reflexões sobre a sociopolítica do país.
“Freire insistia que as línguas nativas eram
as que representavam ideologicamente ou simbolicamente as culturas daqueles
países, o que contribuiria para a valorização da cultura que foi oprimida e
para a construção de um pensamento próprio das comunidades negras”, afirma
Sérgio.
A
influência do revolucionário africano também é bastante evidente em obras de
Paulo Freire como “Pedagogia da Esperança”,
“Pedagogia da Tolerância”, “África Ensinando a Gente” e “Cartas a Guiné-Bissau”, e no pensamento
comum a ambos de que “ninguém liberta
ninguém”.
“Cabral se utilizou do conhecimento
científico do colonizador – formou-se em engenharia em Lisboa – e voltou para a
colônia a fim de lutar pela libertação de seu povo. Ele chamou a isso de
suicídio de classe, algo que também aparece em Frantz Fanon quando ele fala
sobre a inveja do colonizador, e que significa abrir mão de uma posição de
intelectualidade supostamente superior para atuar em conjunto e a serviço do
povo. Em Freire, é a noção de que o professor não está acima dos estudantes e
que tanto a educação quanto a libertação acontecem em comunhão”, explica Ana
Paula Cavalcanti.
Frantz Fanon e o ponto de vista dos
excluídos
Frantz
Fanon (1925-1961), outra grande influência para Paulo Freire, foi um
psiquiatra, filósofo e militante político da Frente de Libertação Nacional da
Argélia, que analisou a colonização francesa em terras martinicanas, seu país
de origem, a violência em processos de colonização e descolonização, bem como o
lugar do negro frente aos brancos e aos embates coloniais.
Fanon foi pioneiro em analisar as deformações psicológicas que decorrem da opressão colonial. Durante a Guerra de Independência da França na Argélia, em que o filósofo teve um papel ativo, destacou a importância da “consciência de si” e de “seu lugar no mundo” para os argelinos.
Embora
Freire também não o tenha conhecido pessoalmente, há estreito diálogo com suas
produções, tanto que antes de publicar “Pedagogia do Oprimido”, lê “Os
Condenados da Terra”, de Fanon, e decide revisar todo seu livro.
“Ambos estavam atentos aos impactos
coloniais, que de acordo com Freire afetam a substantividade do ser humano.
Ambos criaram condições para transformar a sociedade, cada um com uma
estratégia, mas ambos por meio de uma transformação revolucionária”, pontua
Vivian Valério Dias, pesquisadora e membro do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros
da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Sintetizando
seu pensamento e a influência de Fanon, em “Pedagogia
da Autonomia” Freire enuncia: “o meu
ponto de vista é o dos “Condenados da Terra”, o dos excluídos […] A prática
preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser
humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando
vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus
direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres […].
A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de
sociedades em que se faz isso, em que se queimam igrejas de negros, se
apresenta ao mundo como pedagoga da democracia”.
A atualidade da Freire, Cabral e Fanon
para o Brasil
A
pedagogia de Paulo Freire nunca chegou a ser amplamente implementada no Brasil.
Após a experiência do educador de alfabetizar jovens e adultos em menos de 40
horas, em Angicos (RN), Freire deixou o país em 1964 para fugir de perseguições
do período de ditadura militar no país e só retornou em 1979. Até hoje, são
algumas escolas, educadores e educadoras que seguem reverberando o pensamento
freiriano em todas as suas práticas, e ainda há espaço para avançar em sua
implementação efetiva nas redes escolares, sobretudo a perspectiva decolonial.
“São séculos de submissão a uma cultura
branca, europeia, que tem um modo de pensar o currículo que acaba reproduzindo
as relações entre as pessoas, também de gênero e de raça, até hoje. Um
pensamento decolonial traz outra perspectiva, um outro lugar de fala em que os
ancestrais, sua cultura e seus símbolos, são trazidos à tona e valorizados”,
diz Sérgio.
Retomando
Darcy Ribeiro, antropólogo, sociólogo e ex-ministro da Educação do Brasil, Ana
Paula destaca que uma educação libertadora não interessa à elite brasileira,
composta majoritariamente por descendentes de colonizadores que atualizam os
mecanismos da colonialidade para o presente, mantendo-se em espaços de
privilégio.
“Ainda prevalece no Brasil uma mentalidade altamente
colonizada, presa ao desejo de servir e de ter o que o colonizador tem, porque
seria supostamente melhor do que o que há no Brasil. Essa postura se estende da
Europa aos Estados Unidos, reproduzindo a cultura, o mito da meritocracia e
amor pelo opressor, que nesse caso não aparece na figura do colonizador, mas do
empresário. Precisamos de uma educação libertadora não só por essas questões,
mas porque quando uma educação não é libertadora, o desejo do oprimido é se
tornar opressor”, sintetiza Ana Paula citando Paulo Freire.
___________
Texto de Ingrid Matuoka, originalmente em Educação Integral.
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