![]() |
Tia Maria do Jongo, filha e neta de escravo que luta para manter viva a tradição musical das senzalas. (Foto: Reprodução/BBC Brasil). |
Quase
ninguém a conhece pelo nome de batismo, Maria de Lourdes Mendes. Ela atende
mesmo por Tia Maria do Jongo, o sobrenome artístico emprestado da manifestação
cultural que a rodeava desde que saiu da barriga da mãe, e que luta há quase um
século para manter viva, ao longo de seus 97 anos de jongueira.
Tia
Maria é a grande patrona do jongo no Rio, tradição de raiz africana que une
canto, dança e toque de tambor e que era praticada em senzalas do sudeste do
país.
Mas
o ano começou com obstáculos para Tia Maria e para o Jongo da Serrinha, grupo
que ajudou a formar há cerca de 50 anos, com o fechamento da Casa do Jongo,
onde a ONG trabalha para preservar a tradição. Tido como precursor do samba, o
jongo é reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro pelo Iphan (Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Inaugurada
no fim de 2015 para abrigar o Jongo da Serrinha e suas atividades, a
instituição fechou suas portas no início de janeiro por falta de recursos,
denunciando cortes na política de fomento cultural da prefeitura do Rio e a
ruptura de uma parceria de longa data.
A
casa foi criada com aporte de cerca de R$ 2,5 milhões da prefeitura na gestão
de Eduardo Paes, mas não recebe recursos de fomento direto do município desde
2016.
A
Secretaria Municipal de Cultura (SMC) do prefeito Marcelo Crivella, que assumiu
em 2017, diz que foi forçada a cortar recursos para fomento direto à cultura
devido "à crise pela qual passam o país, o Estado e o município" e ao
déficit herdado da gestão anterior.
O
fechamento da casa gerou protestos entre a classe artística e críticas à
política cultural do Rio, com insinuações de que a gestão de Crivella estaria
tirando recursos de manifestações de raiz africana. A prefeitura afirma que
incentivar tradições afro-brasileiras e patrimônio imaterial é "um de seus
eixos estratégicos" (leia mais sobre a disputa no fim da reportagem).
'Crianças têm que conhecer passado da
escravidão'
O
casarão fica no pé do morro da Serrinha, tradicional comunidade em Madureira,
na zona norte do Rio, onde Tia Maria nasceu e de onde "nunca mais"
saiu, diz bem-humorada, ao receber a reportagem da BBC Brasil.
Na
Serrinha, Tia Maria cresceu cercada por jongueiros e pelo forte movimento de
samba que florescia nos terreiros das casas. Ela foi uma das fundadoras do
Império Serrano, em 1947, e detém o título de "Número 1 do Império". A Casa do Jongo fica na rua Silas de
Oliveira, em homenagem ao sambista que se imortalizou com "Aquarela Brasileira", clássico
samba-enredo da agremiação. Ele era compadre da Tia Maria.
Um
cadeado mantém o portão trancado para visitantes na entrada, entre as palavras
"Rio 450" anos - alusão à
celebração do aniversário do Rio em 2015 e ao calendário de eventos
comemorativos promovidos pela prefeitura, do qual a inauguração da Casa do
Jongo fez parte.
"As crianças têm que conhecer o nosso
passado, porque isso elas não aprendem sobre a época da escravidão direito nas
escolas", afirma ela. "As crianças têm que saber o passado do país."
O
espaço é amplo e decorado, com piso de pedras portuguesas em padrões africanos,
paredes forradas de tecidos coloridos, um canto destinado à história do jongo,
com fotos e relíquias de seus precursores, e espaço para aulas de dança,
percussão, cavaquinho, capoeira, inglês, arte, costura, ginástica, além de
cineclube e estúdio musical.
O
centro costumava receber 2 mil visitantes e 400 crianças por mês. Gerações de
crianças nascidas na Serrinha aprenderam jongo neste imóvel e em sedes menores
que a ONG manteve anteriormente.
Tia
Maria chegou a ouvir boatos de que poderiam ser despejados da casa. A ONG tem
cessão até 2024 para uso do imóvel, que pertence à prefeitura.
"Fiquei chocada, mas não acredito que isso
possa acontecer. Eu sou muito religiosa, minha fé em Deus não acaba. Eu rezo
muito. Tenho esperança de que tudo vai dar certo."
Aniversário numa semana, portas
fechadas na outra
Os
últimos dias de 2017 tinham sido só festa para Tia Maria. Ela comemorou seus 97
anos com um show de jongo em uma casa de samba na região portuária do Rio,
arrancando aplausos boquiabertos do público quando resolveu ensaiar uma
dancinha até o chão, sem se apoiar em ninguém para subir.
No
dia 30 de dezembro, a festa continuou com almoço e pagode para dezenas de
pessoas na Casa do Jongo. "Minha
nora fez dois tachos de feijoada, daquela bem grossa e cheia de carne. Só o
pagode é que acabou cedo demais. Fiquei com uma pena, adoro um pagode!",
protesta com uma gargalhada.
A
voz firme e animada ainda sustenta bem os versos do jongo, que cantarola nas
pausas da conversa com a BBC Brasil, batucando na mesa de toalha estampada.
Tia Maria cresceu ouvindo relatos de
sua avó sobre o passado da escravidão.
"Ela sempre contava que o jongo veio da
África, que os escravos dançavam na senzala", lembra.
"E explicava que o jongo é um afro, não é
religião. Aqui pode dançar evangélico, católico, macumbeiro, quem quiser",
diz.
Dos velhos para as crianças
De
acordo o Iphan, o jongo consolidou-se entre escravos que trabalhavam nas
lavouras de café e cana-de-açúcar, sobretudo na região do vale do rio Paraíba.
Tem
origem em ritos e crenças de povos africanos, principalmente os de língua
bantu, e é praticado nos quintais das periferias e de algumas comunidades
rurais da região Sudeste. Há grupos tradicionais de jongo em cidades como
Valença, no Rio, e Piquete e Caxambu, em Minas Gerais.
Tia
Maria nasceu em 1920, dez anos depois de sua mãe ter migrado de Minas Gerais
para o Rio e se estabelecido na Serrinha, na periferia do Rio, que na época era
uma área rural. "A minha mãe já veio para o Rio dançando jongo, cantando
jongo. Eu digo que já nasci jongueira."
No
início, entretanto, havia uma restrição etária intransponível: o jongo era
coisa dos velhos. "Velho mesmo, não
é jovem adulto não", ressalta Tia Maria.
Ela
lembra da infância espiando por um buraco nas paredes de estuque da casa da mãe
enquanto os velhos dançavam no terreiro de noite. Adorava cantar e dançar as
músicas com a mãe dentro de casa - mas participar das rodas, nem pensar.
Isso
começou a mudar na década de 60, quando a morte de velhos jongueiros começou a
ameaçar as rodas de jongo. Quebrou-se assim o tabu que impedia as crianças de
participar.
"Hoje não acaba mais. Aqui na Serrinha, toda
criança gosta do jongo, bate o jongo, canta o jongo. Acho que o jongo vai ficar
aqui eternamente."
Rezar para antepassados
Tia
Maria não gosta das representações que vê dos tempos da escravidão. Diz que não
combinam com os relatos e a vivência de sua família. "Eles botam cada
negro feio nos livros. Mentira! Na escravidão tinha cada negro bonito."
"E também não tinha só negro", diz.
"O senhor levava as moças bonitas
para ficar na rede com ele, com os filhos. Quando elas vinham de lá (da casa
grande), vinham grávidas. Aquela criança não ia sair negra. Saía morena,
bonita, filha deles lá de dentro. Aí criava ali na senzala. Ou, quando viam que
a criança era bonita, se achavam que era cara, levavam para vender",
relata.
Ela
conta que a avó trabalhava na "casa
grande", e com isso falava um português mais correto que outros
membros da família - mas viu barbaridades dentro da casa dos senhores de
escravos, em uma fazenda em Minas Gerais.
"Ela falava que tinha criança que a sinhá
matava. Às vezes a mãe estava engomando as roupas da sinhá, e a criança
gritando dentro da mala, morrendo. A sinhá fechava a mala para a criança morrer
sufocada. E a mãe vendo aquilo e não podendo falar nada. Era escrava, né? Se
falasse ia para o tronco, ou ia morrer também. Uma maldade."
"Ela dizia que o senhor gostava, porque o
jongo tem aquela umbigada forte", diz, referindo-se ao "encontro
de umbigos" que é um dos movimentos típicos da dança. "O senhor achava que aquela umbigada ia
originar mais crianças para ele. Mais escravos."
A mãe de Tia Maria também foi
escrava, até os 8 anos.
"Minha mãe era garota quando eles foram
libertos, lembrava muito pouco. Mas ela sempre contava que um dia ela teve que
lavar a dentadura do sinhô no rio, e de repente a água levou. Ela disse que
nunca nadou tanto quanto naquele dia, desesperada para conseguir a ditadura do
sinhô!", conta Tia Maria, hoje podendo rir da história porque afinal
os dentes foram encontrados.
Para
Tia Maria, o jongo ensina às crianças o respeito pelos mais velhos e pela
história de seus ancestrais.
"O jongo era a dança dos escravos. Sempre que
dançamos, rezamos um Pai Nosso, uma Ave Maria, antes de começar. Quando você
bate um jongo, o espírito deles está ali. Rezamos para suas almas",
diz.
Recursos da prefeitura
Dyonne
Boy, uma das diretoras da Associação Cultural Grupo Jongo da Serrinha, diz que
a situação financeira da Casa do Jongo começou a apertar em 2016, quando
perderam o patrocínio da Petrobras.
Em
2017, sem conseguir captar mais recursos, pediram ajuda à prefeitura,
apresentando um projeto em março.
"Era a nossa única esperança de ter um
respiro. Quando tivemos essa resposta negativa, em outubro, vimos que íamos ter
que fechar", diz Dyonne. "Nós e muitos outros grupos de cultura
popular estamos sem ter como dar continuidade ao nosso trabalho."
De
acordo com a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), o programa de fomento
direto (ou seja, de investimento da prefeitura em projetos via editais) foi
reduzido por conta da crise financeira.
"A nova administração municipal encontrou
déficit de R$ 4 bilhões, herdado da gestão anterior. O orçamento de todas as
secretarias foi reduzido em 25% logo no início da gestão. E a arrecadação
permaneceu em queda ao longo de todo o ano", afirma a secretaria.
A
SMC afirma que nunca suspendeu qualquer financiamento à Casa do Jongo e que, no
ano passado, destinou R$ 140 mil à ONG, que seria o maior repasse financeiro já
feito pela prefeitura à instituição, em comparação com valores de R$ 80 mil a
R$ 100 mil repassados entre 2013 e 2016 pela gestão de Eduardo Paes por meio de
editais.
Os
valores, entretanto, se referem a mecanismos de incentivo diferentes. Os
recursos de 2017 foram pagos pela Rede Globo por meio de fomento indireto, ou
seja, pela lei de incentivo fiscal que abate parcelas do Imposto Sobre Serviços
(ISS) para que empresas repassem o valor a projetos culturais pré-aprovados
pela SMC.
Pela
mesma via, a casa conseguiu captar R$ 120 mil da Globo neste ano. Dyonne afirma
que o valor não é o suficiente para cobrir os cerca de R$ 50 mil de gastos
mensais. O último repasse de fomento direto feito pela prefeitura à Casa do
Jongo foi em 2016, no valor de R$ 90 mil.
A
SMC destaca que disponibilizou R$ 1,5 milhão em três editais lançados no ano
passado, um deles com o tema "Chamamento de Matriz Africana",
distribuindo o valor de R$ 500 mil por 33 projetos.
"Não é verdade que a SMC e a prefeitura não
possuam políticas culturais para as manifestações afro-brasileiras",
diz a SMC.
Desde
que a Casa do Jongo fechou, a diretora Dyonne Boy conta que o Jongo da Serrinha
tem sido procurado por grupos privados e pela Secretaria estadual de Cultura do
Rio para conversas sobre possíveis financiamentos. Ela diz que a ONG está
correndo atrás de acordos para voltar a funcionar "o mais rápido possível." (Com informações da BBC Brasil).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!