Caducou.
A Constituição brasileira de 1988 passou a acompanhar as outras sete no
melancólico balaio das curiosidades históricas.
Publicado originalmente no Carta Maior
Todo
estudante de primeiro ano de Direito sabe: a noção de constituição é
segmentada. Do ponto de vista das efetivas relações políticas e sociais,
refere-se à estrutura e organização dos aparelhos de controle estatal mais ou
menos centralizados. Da perspectiva jurídica abstrata, a um conjunto de normas
que refletem e instituem o Estado e a dinâmica dessas situações concretas. Isso
existe desde que o macaco virou gente ou, segundo os etólogos, antes disso. A
redução ingênua da ideia de constituição a um documento escrito é recente,
historicamente limitada aos dois últimos séculos e ideologicamente orientada
pelo individualismo proprietário e pelo medo do povo das revoluções liberais do
ocidente.
Ora,
a Constituição de 1988 se converteu em um documento escrito sem qualquer
relação efetiva com a sistemática e composição do povo e comunidade
brasileiros. Abandonou sua dimensão política pela grosseira perda de
efetividade, de respeito, até. Perdeu o potencial de limitar e orientar a
composição e dinâmica das relações políticas e sociais, desrespeitada a céu
aberto com fundamento em faits accomplis e de argumentos pseudojurídicos
proferidos por pseudojuristas. Ficou só a folha de papel, descolada dos fatores
reais de poder.
Guardiões
formalistas do rito simulam conservar sua utilidade como orientadora da
composição institucional do aparelho de Estado. Isso não é verdade. O
escandaloso descaso corporificado na farsa do impedimento contra a Presidente
escancara a afronta a princípios exageradamente fundamentais; tão fundamentais
que a Moribunda de 1988 deu seus últimos suspiros. Não se fala mais de
tecnicalidades bizantinas; discute-se o respeito à anterioridade da lei penal,
à generalidade da lei, à isonomia. Essa, porém, é apenas a proverbial gota
d’água.
O
copo não derrama só como consequência de configurações episódicas. Mesmo que,
contrariando todas as expectativas minimamente realistas, o STF cumpra seu
papel de defesa da Falecida de 1988 e decida se, in abstracto, pedalar é ou não
é crime de responsabilidade. Cozido o ovo, não se reverte o processo. Aquela
que já se denominou Cidadã foi perdendo força e resiliência; trama e urdidura
já não estão coesas, o tecido constitucional não rasgou, esgarçou-se. Os
projetos de país democrático, desenvolvido, livre e igual foram amarelando
pouco a pouco, em nome de conjunturas, da “governabilidade”, de soluções de
compromisso, daquela mancha indelével removida esfregando saponáceos
corrosivos. Foi se desgastando no uso indevido e pelas sucessivas emendas que,
destacadas as deliberadamente desfigurantes de 1995, a adaptavam à moda do
momento. No fim, virou andrajo. Os insistentes em os vestir são, hoje, objeto
de descrédito. Cassandras ou Jurássicos.
Um
dos resultados desse lento e doloroso processo é a impossibilidade de identificar,
hoje, elementos do instrumento formal capazes de orientar um projeto nacional e
articular uma agenda positiva reconstitutiva de um pacto social sensível às
transformações da composição de forças, interesses e compreensão de mecanismos
adequados de governo e administração. O processo político atual e o governo que
se avizinha geram visões nauseantes, quando não aterradoras: qual é o projeto
de país? Qual é a visão de futuro que se busca compartilhar ou, pelo menos,
compactuar? Desenvolvimento? Igualdade? Liderança regional? Com a vitória do
golpe de Estado de 2016 e a morte matada da Constituição de 1988, adentramos no
século XXI já vencidos, retrocedendo a passos largos rumo ao século XIX
A
Demodée de 1988 já não serve mais, qual a velha roupa colorida de Belchior.
Hoje se ocupa o aparelho de governo para realizar interesses desarticulados
daquilo que os brasileiros sonharam enquanto testemunhavam o fim da ditadura
militar. Curiosamente, até porque a História se repete como farsa, parece que a
democracia hoje dá passo não a um sistema absoluto ou totalitário, mas a um
ajuste feudal, cerzido em vínculos de suserania e vassalagem, estampado pela
submissão servil do trabalho e com reis parecidos a cartas de baralho e
inteiramente ao sabor dos interesses e vaidades dos grandes barões.
Raymundo
Faoro, presidente nacional de uma Ordem dos Advogados do Brasil heróica que
combatia os golpes de Estado, não de uma oportunista que os legitima, afirmava
que nunca, na história brasileira, o poder constituinte do povo teria
conseguido vencer o patrimonialismo e o aparelhamento de poder. No entanto,
foram justamente as investidas desse poder constituinte democrático aquelas que
conseguiram efetivamente desafiar o poder enraizado da oligarquia que nos
parasita.
Não
dá para esperar pela próxima liquidação de estoques, nem optar por algum
prêt-a-porter de carregação. É imperioso, desde já, gestar a nova Constituição;
fiar e tecer sua fazenda pelas mãos de nossa gente humilde, buscar os melhores
alfaiates para tomar as medidas e desenhar conforme as necessidades do Brasil e
coser cuidadosamente, sob o atento olhar do soberano. E ele não é o rei, é o
povo.
A
Constituição está morta? Viva o Poder Constituinte do Povo!
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Gilberto Bercovice e José Augusto Fontoura Costa - professores da Faculdade de Direito da USP. |
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