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Sueli Carneiro. (FOTO | Reprodução). |
Vários
veículos de imprensa publicaram com destaque fotos dos candidatos selecionados
que vão concorrer às vagas para negros da Universidade de Brasília (UnB).
Veículos que vêm se posicionando contra essa política percebem, no largo
espectro cromático desses alunos, mais uma oportunidade para desqualificar o
critério racial que a orienta.
Uma
das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em
imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente
hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade. Assim, para
os publicitários, por exemplo, basta enfiar um negro no meio de uma multidão de
brancos em um comercial para assegurar suposto respeito e valorização da
diversidade étnica e racial e livrar-se de possíveis acusações de exclusão
racial das minorias. Um negro ou japonês solitários em uma propaganda povoada
de brancos representam o conjunto de suas coletividades. Afinal, negro e japonês
são todos iguais, não é?
Brancos
não. São individualidades, são múltiplos, complexos e assim devem ser
representados. Isso é demarcado também no nível fenotípico em que é valorizada
a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos ou pretos, loiros,
ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão perfeitamente incluídos
no interior da racialidade branca, mesmo quando apresentam alto grau de
morenice, como ocorre com alguns descendentes de espanhóis, italianos ou
portugueses que, nem por isso, deixam de ser considerados ou de se sentirem
brancos. A branquitude é, portanto, diversa e multicromática. No entanto, a
negritude padece de toda sorte de indagações.
Insisto
em contar a forma pela qual foi assegurada, no registro de nascimento de minha
filha Luanda, a sua identidade negra. O pai, branco, vai ao cartório, o
escrivão preenche o registro e, no campo destinado à cor, escreve: branca. O
pai diz ao escrivão que a cor está errada, porque a mãe da criança é negra. O
escrivão, resistente, corrige o erro e planta a nova cor: parda. O pai
novamente reage e diz que sua filha não é parda. O escrivão irritado pergunta,
“Então qual a cor de sua filha”. O pai responde, “Negra”. O escrivão retruca,
“Mas ela não puxou nem um pouquinho ao senhor? É assim que se vão clareando as
pessoas no Brasil e o Brasil. Esse pai, brasileiro naturalizado e de fenótipo
ariano, não tem, como branco que de fato é, as dúvidas metafísicas que
assombram a racialidade no Brasil, um país percebido por ele e pela maioria de
estrangeiros brancos como de maioria negra. Não fosse a providência e
insistência paterna, minha filha pagaria eternamente o mico de, com sua vasta
carapinha, ter o registro de branca, como ocorre com filhos de um famoso
jogador de futebol negro.
Porém,
independentemente da miscigenação de primeiro grau decorrente de casamentos
inter-raciais, as famílias negras apresentam grande variedade cromática em seu
interior, herança de miscigenações passadas que têm sido historicamente
utilizadas para enfraquecer a identidade racial dos negros. Faz-se isso pelo
deslocamento da negritude, que oferece aos negros de pele clara as múltiplas
classificações de cor que por aqui circulam e que, neste momento, prestam-se à
desqualificação da política de cotas.
Segundo
essa lógica, devemos instituir divisões raciais no interior da maioria das
famílias negras com todas as implicações conflituosas que decorrem dessa
partição do pertencimento racial. Assim teríamos, por exemplo, em uma situação
esdrúxula, a família Pitanga, em que Camila Pitanga (negra de pele clara como
sua mãe), e Rocco Pitanga (um dos atores da novela “Da cor do pecado”), embora
irmãos e filhos dos mesmos pais seriam, ela e a mãe brancas, e ele e o pai
negros. Não é gratuito, pois, que a consciência racial da família Pitanga
sempre fez com que Camila recusasse as constantes tentativas de expropriá-la de
sua identidade racial e familiar negra.
De
igual maneira, importantes lideranças do Movimento Negro Brasileiro, negros de
pele clara, através do franco engajamento na questão racial, vêm demarcando a
resistência que historicamente tem sido empreendida por parcela desse segmento
de nossa gente aos acenos de traição à negritude, que são sempre oferecidos aos
mais claros.
Há
quase duas décadas, parcela significativa de jovens negros inseridos no
Movimento Hip Hop politicamente cunhou para si a autodefinição de pretos e o
slogan PPP (Poder para o Povo Preto) em oposição a essas classificações
cromáticas que instituem diferenças no interior da negritude, sendo esses
jovens, em sua maioria, negros de pele clara como um dos seus principais ídolos
e líderes, Mano Brown, dos Racionais MCs. O que esses jovens sabem pela
experiência cotidiana é que o policial nunca se engana, sejam eles mais claros
ou escuros.
No
entanto, as redefinições da identidade racial, que vêm sendo empreendidas pelo
avanço da consciência negra e que já são perceptíveis em levantamentos
estatísticos, tendem a ser atribuídas apenas a um suposto ou real oportunismo
promovido pelas políticas de cotas, fenômeno recente que não explica a totalidade
do processo em curso.
A
fuga da negritude tem sido a medida da consciência de sua rejeição social e o
desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pelo conjunto da
sociedade. Cada negro claro ou escuro que celebra sua mestiçagem ou suposta
morenidade contra a sua identidade negra tem aceitação garantida. O mesmo
ocorre com aquele que afirma que o problema é somente de classe e não de raça.
Esses são os discursos politicamente corretos de nossa sociedade. São os
discursos que o branco brasileiro nos ensinou, gosta de ouvir e que o negro que
tem juízo obedece e repete. Mas as coisas estão mudando…
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Texto de Sueli Carneiro, originalmente no Jornal Correio Braziliense.
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