![]() |
(FOTO/ Mídia Ninja). |
Desde
o começo de janeiro, mais de mil indígenas da etnia Yanomami precisaram ser
deslocados às pressas para postos médicos em Roraima, para receber cuidados de
saúde. Os indígenas sofrem de casos graves de malária e de desnutrição. Segundo
o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Malária
(Sivep-Malária), o povo Yanomami concentrou 10% dos casos da doença registrados
ao longo do ano de 2022, quantidade desproporcional dado que os indígenas da
etnia representam 0,013% da população brasileira. Em 2023, pelo menos seis
mortes de indígenas já foram registradas.
A
tragédia ganhou destaque no noticiário internacional. Era uma crise já há muito
antecipada. Os problemas de saúde dos Yanomami estão diretamente relacionados à
expansão do garimpo ilegal em suas terras. Predatória, essa prática polui rios,
e contamina peixes — usados na alimentação dos indígenas — com metais pesados.
A atividade também cria poços de água parada, onde proliferam mosquitos
transmissores de doenças. “A presença de garimpeiros na terra indígena
Yanomami, em Roraima, é antiga. Desde 2015, observamos o número de garimpeiros
aumentar”, disse Dario Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami
(HAY), à Brasil de Direitos em 2021. “De início, eram 7 mil pessoas, subindo e descendo o rio.
Alertamos as autoridades, pedimos ajuda. Nada foi feito”.
Dados
da Hutukara e do Instituto Socioambiental (ISA) sugerem que o problema se
agravou durante o governo Bolsonaro. Um estudo conduzido pelas duas
organizações mostra que a área afetada pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami
cresceu 309% entre 2018 e 2022. Hoje, chega a 5 mil ha: algo equivalente a 6
mil campos de futebol.
O
presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Junior Hekurari,
relatou à Globonews que enviou mais de sessenta pedidos de auxílio ao longo dos
quatro anos de governo Bolsonaro e nunca obteve resposta. Durante esse período,
570 crianças com menos de cinco anos morreram. Dados do jornal Sumaúma mostram
que o número de mortes de crianças Yanomamis aumentou 29% durante esse mesmo
espaço de tempo
![]() |
Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil. |
Essa
não é a primeira vez que os Yanomami sofrem com o avanço de garimpeiros. No
início da década de 1990, um ataque de garimpeiros resultou na morte de 16
indígenas, incluindo crianças. O episódio ficou conhecido como o massacre do
Haximu, e foi o primeiro crime ocorrido no Brasil a ser julgado como genocídio.
Habitantes
da porção norte da floresta amazônica, os Yanomami se distribuem em aldeias
espalhadas entre o Brasil e a Venezuela. São regiões de difícil acesso e, em
parte por causa disso, o contato dos Yanomami com não-indígenas é relativamente
recente. No Brasil, esse povo ocupa um território de mais de 96 mil quilômetros
quadrados. Trata-se da maior terra inígena do país, cujo processo de demarcação
foi concluído em 1992.
Diante
do avanço da crise humanitária, Brasil de Direitos reuniu informações sobre a
cultura e a história desse povo.
Quem são os Yanomami
Espalhados
entre Brasil e Venezuela, os Yanomami somam cerca de 33 mil pessoas. Trata-se
de uma sociedade que fala diversos dialetos, e que está dividida em mais de 600
comunidades distribuídas pelos dois países.
Isso “faz deles um dos maiores grupos ameríndios da Amazônia que
conservam em larga medida seu modo de vida tradicional”, conta o antropólogo
Bruce Albert em “A queda do Céu”, livro escrito em parceria com o xamã Davi
Kopenawa Yanomami.
No
idioma desse povo, “Yanomami” significa “ser-humano”. É um termo que eles usam
para se referir a si mesmos, em oposição aos napë — os “brancos” ou os “inimigos”. Na sua
cosmologia, os Yanomami foram criados por um demiurgo chamado Omama, que dotou
a sociedade de regras. “Omama tinha muita sabedoria”, explica Kopenawa em A Queda do Céu. “ Ele soube criar a floresta,
as montanhas e os rios, o céu e o sol, a noite, a lua e as estrelas. Foi ele
que, no primeiro tempo, nos deu a existência e estabeleceu nossos costumes”.
Os
Yanomamis são caçadores e agricultores que vivem em sociedades onde a vida é
comunitária e onde a divisão das tarefas é feita de acordo com o gênero. Todos
moram em grandes casas circulares chamadas “yanos” ou “shabonos”.
Costumeiramente, as mulheres cultivam a terra, produzindo vegetais que,
estima-se, respondem por 80% da alimentação das comunidades. Já os homens ficam
responsáveis pela caça. De acordo com os hábitos dos yanomami, um caçador não pode
comer o animal que abateu. A carne é compartilhada pelo grupo, e os homens
somente consomem a carne obtida por outro caçador.
Para
esse povo, tudo tem um espírito, sejam pessoas ou montanhas. Segundo suas
crenças, depois de morta, uma pessoa só vai para o céu (ou para “ a
terra-de-cima”) depois de todos os seus pertences serem destruído. Por isso, os
Yanomami cremam seus mortos.
À
morte de um Yanomami, segue-se um longo
ritual para que, tanto a comunidade, quanto aquele que a deixou, possam se
desprender. Por se entenderem como parte não só do mundo material, mas de todas
as dimensões existentes, visíveis ou invisíveis, os rituais podem durar
anos. Esses momentos de luto são
mediados pelos xamãs e imprescindíveis para o estilo de vida dos Yanomamis, uma
vez que é a partir das cerimônias ocorridas depois da cremação que o morto
morre como memória e permite que os vivos sigam suas existências.
![]() |
O xamã Davi Kopenawa (Foto: Reprodução / Instituto Socioambiental). |
Essa
existência é ameaçada pelos brancos, cujas atividades predatórias ameaçam fazer
“o céu cair”. Em um trabalho publicado
em 1995, o antropólogo Albert explica que, de acordo com as crenças Yanomami, a
terra atual surgiu depois que os xamãs ancestrais morreram. Enraivecidos, os
antigos espíritos cortaram o “céu dos primeiros tempos”, que cedeu sob o
próprio peso e caiu. O avanço do garimpo, que ameaça esse povo desde os anos
1980, provocou uma espécie de atualização desse mito. Hoje, os Yanomami
acreditam que, se o garimpo continuar a avançar, seus xamãs morrerão, e o céu
tornará a cair.
Quando todos nós tivermos desaparecido, quando todos nós, xamãs, tivermos morrido, acho que o céu vai cair. É o que dizem nossos grandes xamãs. A floresta será destruída e o tempo ficará escuro. Se não houver mais xamãs para segurar o céu, ele não ficará no lugar. Os brancos são apenas engenhosos, eles ignoram o xamanismo, não são eles que poderão segurar o céu (...) Não são só os Yanomami que morrerão, mas todos os brancos também. Ninguém escapará à queda do céu. Se morrerem os xamãs que o mantêm no lugar, ele cairá mesmo. É o que dizem nossos anciãos. Nossos grandes xamãs e nossos anciãos estão morrendo um após outro, isso me desespera. Os brancos destroem nossa floresta e nossos anciãos morrem todos, pouco a pouco, de epidemia. Isso me dá raiva.
Depoimento de Davi Kopenawa a Bruce
Albert, disponível em O ouro canibal: a queda do céu e uma crítica xamânica da
economia política.
A história de ataque aos Yanomami
Os
Yanomami viveram em relativo isolamento até o final do século XIX. No Brasil,
seu contato com não-indígenas se tornaria mais intensos por volta dos anos
1940. Foi quando o governo brasileiro criou postos do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI), o órgão indigenista que antecedeu a Funai, na região. Por essa
época, também se tornaram mais comuns as missões religiosas, católicas e
evangélicas, que se estabeleceram no território.
O
quadro se agravaria na década de 1970. Sob o regime militar, o governo federal
criou projetos destinados a ocupar a Amazônia brasileira. Em 1973, o exército
iniciou a construção de uma rodovia que tinha como propósito ligar toda a
região. O projeto fazia parte do chamado Plano de Integração Nacional (PIN).
Para os indígenas, o resultado foi trágico: com a estrada, chegaram epidemias
de sarampo, malária, coqueluche e ISTs que levaram a morte aos povos da região.
Em 1976, o planejamento foi paralisado.
Em
1975, o governo detectou a presença de ouro no território Yanomami. A descoberta
levou a uma corrida para a região: calcula-se que, nos anos 1980, cerca de
40.000 garimpeiros brasileiros invadiram o território Yanomami. Mais de mil
indígenas morreram.
Nos
anos seguintes, a Survival International, ONG britânica ainda sem mobilização
no Brasil, fez denúncias sobre a situação na OEA (Organização dos Estados
Americanos) e na ONU (Organização das Nações Unidas). É nesse período que ganha
destaque o xamã Davi Kopenawa. Porta-voz de seu povo, Kopenawa se tornou um
ferrenho defensor da demarcação da Terra Indígena Yanomami.
Kopenawa
nasceu por volta de 1956, no extremo norte do estado do Amazonas. Em A Queda do
Céu, Albert conta que, na infância, Kopenawa viu todo o seu grupo de origem ser
dizimado por epidemias. Por um tempo, o xamã conviveu com missionários de
organizações religiosas: foram eles que lhe deram o nome “Davi”. Rompeu com os
religiosos no final dos anos 1960, quando uma epidemia de varíola, levada pela
filha de um dos missionários, matou os membros que restaram de sua família. A
invasão garimpeira da década 1980, e a morte de Yanomamis que se seguiu a ela,
trouxeram a ele memórias dolorosas de sua infância. Nos anos 1980 e 1990,
Kopenawa visitou diversos países, denunciando os males do garimpo e o avanço da
destruição no território Yanomami. Em 1989, foi convidado pela ong Survival
International a aceitar, em nome da organização, o prêmio Right Livelihood,
considerado o “Nobel alternativo”.
![]() |
Áreas de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami vistas em sobrevoo ao longo do rio Mucajaí. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil. |
Em
1992, após uma longa campanha, a Terra Indígena Yanomami foi demarcada. O
território homologado possui 9,6 milhões de hectares, sendo atualmente a maior
Terra Indígena do Brasil.
Um
ano após a vitória, no entanto, um grupo composto por quinze garimpeiros entrou
na aldeia de Haximu e assassinou 16 indígenas Yanomami, que eram majoritariamente
crianças, adolescentes, idosos e até um bebê. Em 1996, cinco homens foram
identificados e condenados por genocídio, o primeiro caso tipificado nesse
crime no Brasil.
Um novo genocídio
A
crise humanitária que os Yanomami vivem atualmente já é, por muitos,
considerada um novo genocídio. Foi assim que o jurista Luciano Mariz Maia,
professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), classificou o quadro em
entrevista à Agência Brasil. Em 1992, Maia foi um dos três procuradores da
república responsáveis por denunciar os garimpeiros que praticaram o massacre
de Haximu. No dia 30 de janeiro, o
Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a abertura de um inquérito que deve
investigar se autoridades brasileiras negligenciaram a crise entre os Yanomami,
e se houve tentativa deliberada de exterminar esse grupo étnico.
As
doenças causadas pelo acesso restrito à comida ou sua contaminação devido ao
garimpo na região já tinham sido pauta da UNICEF, em 2019, quando divulgaram
dados preocupantes a respeito do tema no “Seminário
Nacional sobre os Determinantes Sociais da Desnutrição de Crianças Yanomami”.
Nele,
foi apontado que oito em cada dez crianças menores de 5 anos pesquisadas
apresentavam desnutrição crônica e 67,8% estavam anêmicas. Um relatório mais
recente, lançado em 2022 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), apontou outro
problema: dos 37 Polos Base (unidades básicas de saúde indígena) existentes na
Terra Yanomami, 18 tinham registro de desmatamento causado pela mineração
ilegal.
______
Com informações do Brasil de Direitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!