![]() |
Justiça Estadual determina Urca a corrigir Edital de Concurso por burla ao sistema de cota para PCD'S e negros. (FOTO | Reprodução |WhatsApp). |
No
último dia 05 de agosto de 2022, a Justiça Estadual do Ceará, por meio de
sentença de mérito proferida pelo Magistrado José Flávio Bezerra Morais, da 2ª
Vara Cível do Crato determinou à Universidade Regional do Cariri a correção, em
72 horas, a correção do Edital do Concurso Público para Professores daquela
Instituição de Ensino Superior para que a Lei de Cotas para Pessoas com
Deficiência (PCD’s) e Negros seja integralmente respeitada.
Conforme
teor da Sentença, o Judiciário verificou a ocorrência de burla ao referido
sistema de distribuição de vagas que prejudicaria frontalmente os direitos
consolidadas em lei das referidas minorias (Lei Estadual n. 17.432/2021).
Ao
lançar o concurso, a URCA no edital do certamente previu uma sistemática em que
somente 06 vagas de professor das 184 previstas seriam destinadas para cotistas
com deficiência e negros.
Agora
com a determinação judicial a URCA terá que garantir sobre o total de vagas
destinadas ao concurso o percentual de 5% para PCD’s (07 vagas) e 20% para
negros (37 vagas).
A
sentença judicial se deu no âmbito de Ação Civil Pública nº:
0201613-44.2022.8.06.0071, ajuizada pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri –
GRUNEC e Sindicato dos Docentes da URCA – SINDURCA, cujo teor da sentença,
parecer do Ministério Público Estadual favoráveis ao pleito seguem em anexo. Ainda
cabe recurso da sentença.
Detalhamento
do caso segue em nota da assessoria jurídica do GRUNEC, a seguir.
Crato, 10/08/2022
ASCOM GRUNEC
Email: ggrunec@gmail.com
NOTA DO GRUNEC
TIRA A MÃO DAS NOSSAS COTAS!
Após
mais de três décadas de existência, a Universidade Regional do Cariri lançou
seu primeiro edital para provimento no cargo de magistério superior prevendo a
reserva de vagas para cotistas negros e pessoas com deficiência (PCD’s) pelo
sistema de cotas.
Contudo,
para nossa insatisfação –mas não surpresa- a forma com que o edital fracionava
as vagas por cursos e setores de estudo inviabilizava a correta aplicação da legislação
sobre cotas, já que acabava prevendo apenas 1 vaga na maioria dos setores para
ampla concorrência. Sabemos que não tem como reservar 20% de vagas para negros
e 5% para PCD’s com esse quantitativo. Por isso, das 184 vagas previstas,
apenas 3 eram para cotistas negros e 3 para PCD’s.
A
não surpresa com o ocorrido vem da nossa experiência de resistência de mais de
duas décadas que nos ensinou na luta que as instituições no Brasil ainda
possuem um posicionamento rígido diante das necessidades de mudanças
necessárias para romper com o pacto narcísico da branquitude que fundamenta o
racismo institucional e estrutural.
Segundo
Cida Bento (o pacto da branquitude, 2022, p.12), "(...) as instituições
constroem narrativas sobre si próprias sem considerar a pluralidade da
população com a qual se relacionam, que utiliza seus serviços e consome seus
produtos. Muitas dizem prezar a diversidade e a equidade, inclusive colocando
esses objetivos como parte de seus valores, de sua missão e de seu código de
conduta. Mas como essa diversidade e essa equidade se aplicam se a maioria de
suas lideranças e de seu quadro de funcionários é composta quase que
exclusivamente de pessoas brancas? Assim vem sendo construída a história de
instituições e da sociedade onde a presença e a contribuição negras se tornam
invizibilizadas. (...) Essa transmissão atravessa gerações e altera pouco a
hierarquia das relações de dominação ali incrustada. Esse fenômeno tem um nome,
branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não
verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios.
(...)".
Conforme
Silvio Almeida (O que é racismo estrutural?, 2018, p.29) racismo institucional
é “(...) o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em
uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a
partir da raça”. O autor explica que racimo deve compreendido como exercício de
poder e dominação. “Assim, detêm o poder os grupos que exercem o domínio sobre
a organização política e econômica da sociedade. Entretanto, a manutenção deste
poder adquirido depende da capacidade do grupo dominante de institucionalizar
seus interesses (...)”. “Assim, o domínio de homens brancos em instituições
públicas –por exemplo (...) reitorias de universidades públicas etc.- (...)
depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou
indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo
lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de
gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos”
(ALMEIDA, 2018, p.31).
Do
edital da URCA, assim como da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) que publicaram seus editais da mesma
forma no que diz respeito as cotas, o que chega para nós dos movimentos negros
é que não se pode confundir a conquista possibilitada pela legislação sobre
cotas com o que vem ocorrendo na prática.
As
instituições de ensino, utilizando-se maliciosamente do discurso de autonomia
universitária conferida pela Constituição Federal, vêm reproduzindo uma lógica
de “cotas para inglês ver”, pois a metodologia usada para aplicar o percentual
das cotas não consegue alcançar o mínimo previsto na lei. Por conseguinte, as
cotas, que são ações afirmativas que buscam efetivar o direito humano e
constitucional à igualdade material, enquanto medida de reparação social
histórica, não estão surtindo os efeitos esperados. Os espaços de poder e saber
continuam sendo ocupados majoritariamente por homens, brancos e ricos.
Os
editais desses concursos, e de tantos outros, são, antes de tudo, a
concretização de um intrincado sistema de manutenção de privilégios. O
branquíssimo novo quadro almejado de professoras/es da educação superior é,
apenas, mais uma evidência da tentativa de manutenção do pacto narrado acima
pela Professora Cida Bento. Porém, especialmente de universidades públicas,
instituições de educação que, em tese, são plurais, diversas e democráticas,
espera-se muito mais.
Nesse
sentido, visando garantir a efetividade da lei de cotas, em 22/05/2022
ajuizamos em coautoria com o SINDURCA a Ação Civil Pública n°
0201613-44.2022.8.06.0071 que tramita na 2ª Vara Cível da Comarca de Crato. O
magistrado, dr. José Flávio Bezerra Morais, deferiu a medida liminar para
obrigar a URCA a corrigir o edital em 72h, visando garantir a aplicação correta
da lei de cotas no certame.
O
fundamento principal da referida ação toma como base o entendimento consolidado
do Supremo Tribunal Federal quando julgou a Ação Declaratória de
Constitucionalidade n.º 41, tendo por objeto a Lei n.º 12.990/2014, a fim de
refirmar a sua constitucionalidade e os procedimentos que são feitos em relação
à autodeclaração, entendimento este que tem eficácia vinculante contra todos.
No voto do ministro relator constam alguns pontos que achamos válidos
enfatizar: i) a importância da ação afirmativa para assegurar a igualdade
material e igualdade como reconhecimento, com vistas à superação do racismo
estrutural presente no país; ii) inviolabilidade dos princípios do concurso
público e da eficiência, considerando que a reserva de vagas para negros não os
isenta da aprovação no concurso público à vista de que eles precisam alcançar
notas e serem avaliados da mesma forma que as pessoas que concorrem em ampla
concorrência; iii) observância do princípio da proporcionalidade e constatação
de que a existência de política de cotas para o acesso de negras/os à educação
superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública
desnecessária.
Ainda
no seu voto o ministro Luís Roberto Barroso refirma os temores da nota técnica
do Ipea na medida em que ressalta que a divisão das vagas em áreas de
conhecimento, campus ou editais com uma única vaga, podem contribuir para que a
lei não surta efeito e por isso os pontos que definiram os parâmetros que devem
ser observados pelas instituições públicas para aplicar a lei de cotas merecem
destaque. Quais sejam: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para
todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as
vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii)
os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização
exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em
concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a
partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na
nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira
funcional do beneficiário da reserva de vagas. (ADC 41, Tribunal Pleno, julgado
em 08/06/2017).
É um
precedente de suma relevância para entender o porquê não há justificativa legal
para as instituições continuarem lançando editais que preveem o fracionamento
das vagas por áreas de especialidade, de forma a obstacularizar a aplicação do
percentual total das cotas previsto em lei.
A
mobilização refletiu na articulação de reinvindicações também na UECE e UEVA.
Tamanha repercussão certamente foi o que fez o Poder Executivo estadual
publicar o Decreto n° 34.821 de 27 de junho de 2022, que dispõe sobre a reserva
de vagas para candidatos negros e PCD’s em concursos públicos. Em resumo, o
referido decreto autoriza que quando houver menos de 5 vagas (já que a lei
estadual de cotas para negros permite a reserva de 20% de vagas apenas quando
houver 5 ou mais vagas no total) a segunda vaga, quando houver, automaticamente
será do candidato cotista negro, e a terceira da PCD.
Diante
do decreto, a URCA pediu extinção do feito sem resolução do mérito por perda
superveniente do objeto da ação em razão da publicação do decreto.
Ocorre
que na prática, embora tenha aumentado o quadro de vagas reservadas para negros
e PCD, o decreto continuava não contemplando o mínimo previsto em lei. Basta
ver o edital da UECE republicado após o decreto, que passou a reservar 67 vagas
cotistas negros, quando deveriam ser 73 para atingir o mínimo de 20%. Ora,
somos maioria da população cearense, o mínimo de 20% já nos parece tão pouco,
menos que isso a quantidade é irrisória. Jamais aceitaríamos.
Nesse
contexto, em trocas de experiências com profissionais de universidades em que a
política de cotas estão há mais tempo sendo aplicadas de forma positiva,
apresentamos como proposta de acordo extrajudicial uma metodologia semelhante à
adotada pela Universidade Federal da Bahia em seu último concurso público para
que a URCA pudesse sanar a irregularidade. Contudo, a URCA continuou insistindo
que a aplicação conforme o decreto era melhor, pois a instituição acredita,
conforme expôs na sua peça recursal de agravo de instrumento nos autos do
processo, que de outra forma não seria justo, pois a definição de critérios
para distribuir as vagas a partir do novo decreto era mais clara e objetiva.
Nos
parece muito clara mesmo, bem branca para ser mais enfático, essa lógica
utilizada para interpretar como seria “justo” distribuir vagas entre ampla
concorrência e cotistas, sendo que de uma forma ou de outra a maioria das vagas
sempre foi e vai continuar sendo da ampla concorrência. A racionalidade dita
moderna, ao nosso ver, de fato não consegue, ainda, promover o descentramento
cognitivo da colonialidade racializada para compreender que o mínimo previsto
em lei já é o mínimo e que os diversos concursos públicos realizados dessa
forma –com metodologia de fracionamento das vagas por áreas de especialidade-
não atingem sua função social.
Na
audiência de conciliação insistiram na argumentação do tipo “nós temos
autonomia universitária e por isso não aceitaremos sugestões de terceiros com
base em experiências de outras universidades para interferir nas nossas decisões
institucionais”. Ou seja, de nada vale a expertise de diversas/os
pesquisadoras/es doutoras/es pós-doutoras/es que já conseguiram implantar há
anos uma política de cotas eficiente porque instituição tem autonomia... sem
reduzir essa garantia constitucional de extrema relevância para nossas
universidades, mas foi terrível ouvir esse fundamento tão valoroso como
argumento para legitimar sua autonomia para ser eficaz em ser perversa mantendo
a instituição fechada para dialogar com a comunidade acadêmica, movimentos
negros e sociedade em geral. Fechada para o ingresso da pluralidade e diversidade
em seu quadro de docentes.
O
resultado desta ação ao nosso ver é primoroso ao julgar procedente este
processo que envolve interesses e direitos coletivos e difusos. E nos mostra
que, embora historicamente o Direito tenha servido de alicerce ao racismo
institucional/estrutural ao legitimar por meio de leis ou julgamentos injustos
casos que envolvem direta ou indiretamente a temática étnico-racial, é preciso
insistir em mostrar uma face do Direito que o coloque como instrumento da
justiça racial.
Nas
palavras do nobre Ministério Público, por meio do seu membro promotor Dr. David
Moraes da Costa “O que não se pode permitir – e o STF já sobre isso se
manifestou – é que a Instituição formate um concurso que, de princípio, já se
configure fraude à reserva de vagas, o que não será o caso sempre que se
evidenciar no certame que o respectivo edital destinou o percentual de vagas
exigido na lei para negros e pessoas com deficiência.” [...] Ao ressaltar que o
sistema de justiça não pode determinar um método específico para aplicação da
lei de cotas em razão da autonomia universitária enfatiza “Isso, por evidente,
não afasta a Universidade da exigência do dever de legalidade, o que implica em
adequar o edital do Concurso Público, com regras claras e precisas, aos
comandos legais, especialmente os insertos no Decreto n.° 34.821 e na Lei
Estadual17.432/2021.”
Considerando
todos os argumentos, consideramos um precedente judicial histórico vitorioso a
sentença proferida pelo magistrado Dr. José Flávio Bezerra Morais ao apontar
mais de uma forma da universidade efetivar corretamente a política de cotas sem
cair no “erro” de burlar as cotas.
Agora
nos resta acompanhar o cumprimento da sentença, bem como continuar averiguando
se as demais universidades vão tomar este caso como exemplo para adequarem
corretamente seus editais. Senão, lá vamos nós de novo...
Importa
lembrar que a sentença ainda não transitou em julgado, pois é necessário
decorrer o prazo para recursos. Sabemos que recorrer é direito de qualquer
parte do processo, mas achamos que ficou evidente o porquê da interpretação da
lei de cotas para criação de metodologias para aplicá-las nos concursos deve
primar pela maximização de seus efeitos para que não estejamos diante de texto
morto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!