![]() |
Karla Alves. (FOTO/ Reprodução/ YouTube). |
Por Nicolau Neto, editor-chefe
O Projeto “As Simoas” foi lançado na plataforma digital YouTube com o propósito de divulgar quatro vídeos com depoimentos de mulheres pretas contando suas trajetórias e a relação que enxerga com a Preta Tia Simoa. Fomentado com recursos advindos da Lei Aldir Blanc através da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, o Canal Preta Tia Simoa recebeu nesta segunda-feira, 15, o último da série.
Com
direção e roteiro de Lucas Vidal, direção de fotografia de Rodrigo Ferreira e Paolla
Martins na responsabilidade do som direto, os três primeiros episódios tiveram
a participação da professora, ativista, cientista social e educadora social
Dayze Vidal, de Pérola de Oyá e da educadora social Carla Alves, conforme foi
publicado neste Blog no sábado, 13. (Releia clicando aqui).
O
último episódio intitulado “Ancestralidade
é o hoje” teve a participação de Karla Alves, membro fundadora do grupo de
mulheres pretas do cariri com o nome de Pretas Simoa, historiadora e colunista
deste blog. Karla, inicialmente, destaca que esse grupo foi fundado em 2013 por
13 mulheres pretas, algumas já com uma vivências de ativismos em movimentos
negros, feministas “e outras que não
participavam de nenhum grupo específico, mas que vinham de terreiro e que já
tinham essa mobilização mais introspectiva, de como a nossa ancestralidade nos
movimenta”.
Segundo
Karla, para falar de si é preciso contar sobre o seu lugar de origem, Juazeiro
do Norte. “....Uma cidade que fica na
região conhecida como lago encantado, lugar encantado, que é a região do cariri”,
descreve. Ela fala que Juazeiro sempre se manteve fértil, mesmo com ciclos
constantes de seca que são comuns a essa região. A historiadora destaca que “essa fertilidade não se dá apenas com as
plantas, com a natureza vegetal, ela se dá com a natureza de ideias, de gente”.
“De onde eu brotei é cheio de mestre
negros que repassam aprendizados para nós através da oralidade que é um
princípio cosmológico de quase todo o povo africano. Então eles são veículos de
toda essa cultura”, destaca e cita um desses mestres que lhe ensinaram a
pedagogia da vida:
“A minha poesia não brota em folha de papel, em folha de caderno, em folha de livro. A minha poesia brota como uma pranta e ela precisa apenas dos elementos que já estão ao nosso redor pra se manifestar”. (Mestre Bigode).
Segundo
ela, esse foi um ensinamento muito poderoso porque são várias coisa que estão
acontecendo ao mesmo tempo e que há muitas coisas se relacionando para
proporcionar o que o mestre falou e o que ela escutou e absorveu. “São mestres que captam tudo que há ao nosso
redor”, pontua.
O encontro com a Preta Tia Simoa
Karla
relata que seu encontro com a Preta Tia Simoa, a revolucionária que contribuiu
para a libertação de escravizados e escravizadas no Ceará, se deu durante a
disciplina de projeto de pesquisa no Curso de História da Universidade Regional
do Cariri (URCA). “A minha ideia era
escrever sobre a representação da população negra nas revistas do Instituto Histórico
e Geográfico do Ceará” e de repente começou a ler Raimundo Girão,
historiador cearense. “Lendo o Raimundo
Girão meu olhar se fixou em um parágrafo específico do livro ‘A Abolição no
Ceará’. Eu li não sei quantas vezes. Foi quando a palavra Preta Tia Simoa
encontrou meus olhos”, lembrou.
Karla
frisa que se indagou. “Quem foi essa mulher”? Ele menciona que na época
pertencia ao Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), até então único
grupo institucionalizado do movimento negro na região. “Eu me sentia bastante aprisionada, embora estivesse em um lugar que na minha cabeça pudesse
me proporcionar respirar um pouco mais livre”, disse.
Segundo
ela, foi nesse momento que se deu o encontro com a Preta Tia Simoa. “E ai Simoa foi se apresentando pra mim com
outras revelações, com um brilho próprio. Com um princípio de autonomeação, com
um princípio de autodeterminação, com um princípio de autocondução da próprio
história”, revelou. “Ela se revelou
pra mim como criadora da própria história e criatura da história que ela mesmo
criou e que ela mesmo conduziu”.
Mas de que forma?
"Em
janeiro de 1881 aconteceu um episódio que ficou conhecido na história através
dos jornais como a primeira greve dos jangadeiros. Foi uma paralisação
promovida e executada pelos jangadeiros. Tinha um grupo que era conduzido por
José Luís Napoleão, chefe da capatazia Boris Preres. Uma capatazia de um francês.
Esses homens eram responsáveis por transportarem os negros que seriam
escravizados. Eles eram transportados em suas jangadas da praia, onde os pretos
e pretas eram acorrentadas até os navios ancorados no mar, de onde seriam
vendidos para outras províncias para serem escravizados.
A
gente está falando de 1881, décadas após ser proibido o tráfico transatlântico
de pessoas negras que seriam escravizadas. Em 1850 se inicia o tráfico
intraprovincial. Dentro desse mercado humano no território do Brasil, o Ceará
era a província que mais fornecia mão de obra para ser escravizada nos grandes
polos econômicos que eram o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Esse chefe
da capatazia era um ex-escravizado, era um preto liberto. Ele havia comprado
sua própria alforria como escravo de ganho. Ele sai do norte do estado e vai
para a capital da província trabalhar como jangadeiro para juntar dinheiro,
comprar sua alforria, a alforria de suas irmãs e de outras companheiras de
cativeiro. Não sei ao certo como ele e a preta Tia Simoa se conhecem. Se foi no
norte do estado e eles vão juntos para capital da província ou se já foi na
capital. Esse são pontos que ainda vão se encontrar comigo nesta história que
está em andamento.
O
fato é que eles se casam e juntos com outros companheiros arquitetam essa ideia
de liberdade que é bem diferente da ideia de abolição. José Napoleão decreta a
greve dos jangadeiros a partir da frase ‘a partir de hoje não se embarcam mais
pretos para serem escravizados no porto do Ceará. Ou seja, em 27 de janeiro de
1881 não se embarcam mais escravos no Ceará. Acabou o tráfico de pretos para
serem escravizados do Ceará. Juntos com outros jangadeiros se negam a
transportar os pretos que estavam ali na praia para serem transportados no
navio espírito santo que estava ancorado. Eles se negam a transportar seus
iguais para servirem ao sistema escravista.
Eles
se antecipam ao tempo. Eles sabiam que os praças (os policiais) seriam chamados
para impedirem aquele posicionamento. Enquanto os praças chegam para prenderem José
Luís Napoleão e os seus companheiros de jangadas, a Preta Tia Simoa já vinha se
organizando e mobilizando a população da capital da província para apoiar a
greve dos jangadeiros que já sabiam que seria impedida. Quando os policiais
estavam lá prestes a prenderem o José Napoleão e os demais jangadeiros, a Preta
Tia Simoa vem da até o porto se encontrar com o seu esposo e apoiar para que
aquele movimento de liberdade ganhasse brilho maior. Quando as pessoas negra se
somam, se unem para causarem essa grande explosão e mudarem o curso da história.
Quando eles estavam prestes a serem presos vem a frente de uma multidão a Preta
Tia Simoa gritando o nome da liberdade e quando os policiais viram aquela multidão
e a frente dela uma mulher preta, eles não tem mais argumentos suficientes para
poder prender as pessoas negras.
Essa
paralisação durou quatro dias. Os escravocratas e os mercadores de escravos
estavam querendo se articularem para que mesmo que os jangadeiros se negassem a
transportarem, eles conseguissem pegar as pessoas que já tinham sido acorrentadas
para levar por outros meios. A luta por liberdade após a primeira paralisação
continuou por mais três dias. Então eles se articularam e de madrugada
conseguiram resgatar aqueles pessoas que tinham sido acorrentadas e tocaram
fogo no lugar e levaram as pessoa para esconderem de forma distribuída. Quando eles voltaram pela manhã para pegarem as pessoas acorrentadas viram que o
lugar tinham pegado fogo.
Foi
uma dimensão tão grande que quatro anos depois a abolição foi decretada no
Ceará. Durante aqueles quatro dias as lideranças dos homens brancos que
pertenciam a Sociedade Cearense Libertadora procuraram José Luís Napoleão na
zona praieira pedindo para que ele liderasse a campanha abolicionista. Ele se
nega. E diz eu não vou servir para isso que vocês querem, mas eu posso
apresentar uma pessoa. Eu acho que serve para isso dai. Foi quando José Luís
Napoleão apresenta Chico da Matilde para a Sociedade Cearense Libertadora.
Chico da Matilde que hoje nós conhecemos como Dragão do Mar e que acabou
entrando para a história como herói negro da escravidão, mas que a partir dai
ninguém conhece.
Dragão do Mar quando faleceu não foi rico como os pertencentes da Sociedade Cearense Libertadora que escreveram o nome dele como herói. Por isso que nós do grupo Pretas Simoa sempre tivemos o cuidado de não tratarmos Tia Simoa como heroína negra porque o herói, a heroína não é algo que sirva pra nós, pessoas pretas. É uma cilada, é uma areia movediça. Quando a gente mitifica uma pessoa negra, a gente está destituindo dela a vida. A gente está resumindo toda aquela grandiosidade pra um só fundamento que é o herói, o mito". (Relato de Karla Alves, Historiadora).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!