Recentemente,
ao realizar pesquisa sobre desigualdades raciais na infância e adolescência,
deparei-me com a seguinte notícia, publicada em 2011, em um jornal de Minas
Gerais: “Menor é apreendido por assalto a
adolescente”.
A
notícia relatava a ocorrência, descrevendo o autor e a vítima. Entretanto, ao
descrevê-los, o texto afastava ainda mais dois universos de infância já
segregados, sendo que a um deles é negada, inclusive, a própria existência como
infância, já que menor é diferente de criança ou adolescente.
Publicado
originalmente no Ceert
Ao
longo das últimas décadas, os direitos relativos à infância e adolescência no
Brasil passaram por completa mudança de paradigmas. Esta transição integrou a
refundação da sociedade brasileira, a partir das aspirações democráticas que
levaram ao fim do regime militar. No lugar da doutrina da segurança nacional, o
princípio da dignidade humana; no lugar do autoritarismo, o respeito aos
direitos fundamentais; ao invés da doutrina da situação irregular, a doutrina
da proteção integral. Com isso, a noção de “menoridade” cedia lugar à infância
e adolescência.
Não
foram necessários muitos anos após a promulgação da Constituição para que os
desafios de uma sociedade complexa e desigual demonstrassem, no entanto, que
ainda há um longo percurso para a efetivação dos direitos conquistados no plano
normativo.
Mas
afinal, quem é o “menor” e quem é a criança/adolescente no Brasil?
As
desigualdades sociais que marcam o país fazem com que subsistam paradigmas
diferentes a um tempo só. Além da criança, ainda existe o “menor”, com os
estigmas e estereótipos da ultrapassada doutrina da situação irregular. E esta
dicotomia é ainda mais evidente quando analisamos as condições de vida de
crianças e adolescentes de acordo com seu pertencimento étnico-racial.
Constatamos a coexistência de uma infância branca e uma menoridade negra.
Segundo
o estudo “Acesso, permanência,
aprendizagem e conclusão da educação básica na idade certa – Direito de todas e
de cada uma das crianças e dos adolescentes”, publicado pelo UNICEF, em
2012, um dos principais entraves para a universalização do acesso e permanência
na escola no Brasil é a discriminação racial. O mesmo estudo afirma ainda que
“todos os indicadores de acesso à escola e conclusão nos estudos mostram que as
crianças e os adolescentes negros estão em desvantagem em relação aos mesmos
grupos etários da população branca”.
Na
seara da exploração e violência sexual o perfil das vítimas também aponta para
uma incidência maior entre crianças e adolescentes negros.
Estudo
dos pesquisadores Alexandre de Freitas Barbosa e Claudia Cirino de Oliveira,
publicada na revista “Na Mão Certa”, em 2008, demonstrou que, dentre as
crianças pesquisadas, 70% das que estão sujeitas a exploração sexual são
negras. Além disso, estas possuem taxa de pobreza cerca de duas vezes maior do
que as não-negras.
No
mesmo sentido, há décadas, o movimento negro vem denunciando à sociedade
brasileira os assassinatos sistemáticos de jovens negros no país, cujos números
chegam a superar os de países em conflitos armados ou nos quais minorias
étnicas sofreram genocídio.
Ademais,
constata-se a segregação racial à brasileira: segundo o Mapa da Violência de
2014, entre anos 2002 e 2012, o número de homicídios de jovens brancos caiu
32,3%. Entre os jovens negros, no mesmo período, o número de homicídios
aumentou 32,4%. Percentuais similares, mas em sentidos contrários.
O
cenário ajuda a compreender episódios recentes de violência contra crianças e
adolescentes publicados por diferentes meios de comunicação e sua banalização.
Por outro lado, propicia o aperfeiçoamento de políticas públicas que precisam
considerar as dimensões étnico-racial e de gênero para serem mais eficientes e,
verdadeiramente, universais. Este é um dos objetivos do projeto nacional
Direito da Criança e do Adolescente e a Promoção da Igualdade Racial, realizado
pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, com patrocínio
da Petrobras.
Perceber
que as crianças e adolescentes negras são as mais vulneráveis à exploração
sexual e que os jovens negros, por sua vez, são as vítimas preferenciais dos
homicídios (77%, dentre os jovens, segundo o Mapa da Violência) é enxergar e
apreender os detalhes do quadro das violações a direitos de crianças,
adolescentes e jovens no Brasil, quadro este carregado na cor e nos gêneros.
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Imagem capturado da vídeo do Ceert. |
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