A
lista de mulheres reais egípcias representadas por atrizes brancas é
praticamente infindável. Pensemos apenas nas cleópatras desde Helen Gardner,
Theda Bara e Claudette Colbert. Passando por Vivien Leigh e Sophia Loren, Lyz
Taylor e Monica Bellucci até Kate Perry e agora… Angelina Jolie, que já foi
mostrada como uma blackface sempre é bom lembrar. O produtor do filme declarou
que a atriz tem o ~visual perfeito~ insistindo na farsa de que Cleópatra era
branca. Bastante apropriado agora que foi comprovado que a rainha era de fato
~negra~. Sigamos.
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Gina Torres como Cleópatra. |
Há
quem diga com bastante cinismo que pensar num Antigo Egito Negro é ~tudo confusão com os núbios~, uma
civilização negra também próxima ao Nilo. ~Não
eram negros, mas brancos de pele morena~. Sim, nesses termos e com essas
palavras, pode pesquisar. Parece coisa do século 19 mas não é. Um erro dessa
natureza e magnitude não acontece por má fé ou ignorância, só a
irresponsabilidade intelectual e o racismo explicam. A proposta aqui é outra,
tomar como ponto de partida essencial A
origem dos antigos egípcios de Cheikh Anta Diop, texto que integra a
coleção História Geral da África (Unesco).
Ali
são reunidos relatos dos historiadores clássicos que descreveram um povo
negro.Também são mostradas evidências sobre a proximidade entre o antigo idioma
egípcio e o walaf, de origem senegalesa e ainda em uso. E o mais importante,
Diop explica que os antigos egípcios representaram a si mesmos imagética e
literalmente como um povo negro por meio da palavra <3 KMT<3 que significa
nada menos que preto como carvão, coisa mais que linda. Daí teria surgido a
personagem bíblica de Cam. Apesar de tantas evidências…
Um
Egito Negro incomoda muita gente porque a África é um continente de conquistas
e feitos, onde se produziu e se produz arte, ciência, tecnologia, filosofia.
Porque é fonte de orgulho, de deleite. A solução para esse incômodo foi
espalhar por aí que a Antiga Grécia é o berço de nossa civilização, esquecendo
que tudo aquilo que os gregos produziram não foi um milagre que aconteceu por
geração espontânea. Que é impossível deixar pra lá que a África e em especial o
Antigo Egito (que até mesmo para os antigos gregos era uma antiga civilização)
tem um papel mais que central nessa estória.
Uma
pista muito simples nos oferece a magnitude do problema. Foram os antigos
egípcios que inventaram uma das primeiras mídias portáteis do mundo, o papiro.
Não por caso Alexandria tinha uma das maiores bibliotecas do mundo antigo. Mas
teria sido um grego Calímaco durante uma viagem à cidade egípcia que ~inventou~
o primeiro sistema de catalogação de livros, muito similar ao que é usado pela
biblioteca do congresso norte-americano e que foi utilizado por Roma. Mais uma
vez, o Egito Antigo Negro e portanto a África tem seu conhecimento extirpado para
outro continente e se tornam apenas uma citação. O nome disso pra mim é roubo.
Usurpar
patrimônio africano não basta, também é necessário embranquecer seus sujeitos.
Tanto na série José do Egito
(atualmente em reprise pela Record) quanto em Êxodo: Deuses e Reis as personagens são majoritariamente brancas.
Os realizadores são incapazes de reconhecer que todo um complexo sistema de
crenças, filosofia, arte, arquitetura, astronomia e medicina são coisas de
preto. Qualquer movimento diferente disso, mesmo a simples hipótese de que os
antigos egípcios era negros, é vandalismo demais para aguentar.
O
que acontece em José do Egito não é
nenhuma novidade, o racismo não precisa inventar a roda. As personagens
masculinas retratando antigos egípcios quase sempre são blackfaces como é o caso do novo Ramsés de Ridley Scott em Êxodo: Deuses e Reis. O ator escalado
para o papel é ninguém menos que Joel Edgerton que até onde sei, tem olhos
azuis , é loiro. A solução foi reeditar a maquiagem usada pelo russo Yul Brynner em Os dez mandamentos, com muita cobertura de pele para sugerir o
bronzeado de quem passa muito tempo tomando sol, jamais um tom de pele
indiscutivelmente negro.
Também
é esperado que o faraó seja amargurado e invejoso, jamais um grande estadista e
estrategista. Contra o único deus possível, à imagem e semelhança de um homem
branco, um líder negro se torna herege, um perdedor. Por outro lado, também é
quase certeza que a educação egípcia de Moisés seja menosprezada, algo que está
em completa oposição ao deus verdadeiro. As entidades egípcias e sua influência
precisam ser destruídas, pelo menos em tese, para que apareça um novo deus em
quem se pode acreditar.
Para
Hollywood também é perfeitamente possível que a realeza egípcia seja branca,
enquanto assassinos, ladrões e populares são negros, vide Êxodo: Deuses e Reis. O que está por trás dessa manobra é a ideia
racista de que a nobreza egípcia não poderia ser africana mesmo que inexistam
evidências de que a origem desses indivíduos, nobres ou plebeus, esteja fora da
África. Aliás, ainda que se reconheça que nessa sociedade pessoas de diferentes
tons de pele conviveram, não há registros de que houvesse qualquer segregação
motivada pela cor da pele.
As
antigas mulheres egípcias são todo um caso a parte, tanto no cinema e na
televisão. Sempre muito brancas, de acordo com um padrão de beleza racista,
delicado como porcelana. No contexto de uma civilização do deserto, a sugestão
sexista é a de que o território da mulher não a cidade como acontece com muitas
personagens femininas de José do Egito.
Também é comum que seu papel político seja diminuído à intrigas motivadas pelo
amor e pela paixão ao exemplo de Nefertari em Os dez mandamentos. Uma das
maiores rainhas egípcias parece não ter nada mais a fazer do que sentir ciúmes
de Moisés.
Para
Ridley Scott, a rainha negra que adotou Moisés (Tuya) é a atriz Sigourney
Weaver. Antes que me digam que estou de implicância, até mesmo a Disney
Dreamworks a retratou como negra. O recado de Hollywood é cristalino – não há
espaço para todas as atrizes como Viola Davis cuja atuação provocaria lágrimas
e ranger de dentes mas seria fundamental para o empoderamento de mulheres
negras como eu e você que também somos deusas e rainhas. Na verdade não
precisamos pensar muito. Termino com a lembrança e a ótima sensação
proporcionada pela Cleópatra interpretada por Gina Torres em Xena.
A
análise é de Charô Nunes e foi publicado originalmente no Blogueiras Negras
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