A
escravidão marcou profunda e irreversivelmente a memória e a história do
Brasil. Não é possível esquecer que, entre o final do século 16 e o meado do
século 19, milhares de seres humanos originários de diversas partes do
continente africano foram introduzidos à força na América portuguesa,
constituindo um dos negócios mais lucrativos da fase de implantação do
capitalismo. Nem que o tráfico negreiro nutriu um número considerável das
grandes fortunas da época.
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Mesmo se consentido o encarado como negócio lucrativo, o tráfico negreiro não orgulhava muito dos que o praticavam. (Imagem: "Mercado de escravos", tela de Jean Baptiste Debret) |
Grandes
comerciantes, homens públicos de destaque e até aqueles que, depois, se
disseram defensores da supressão do vil comércio – imposta pelos ingleses em
1850 – e da implantação do trabalho livre, que só se generalizaria após a
abolição, ocorrida em 1888, puseram dinheiro nas embarcações que comerciavam
africanos entre um e outro lado do Atlântico. Mesmo se consentido e encarado
como negócio lucrativo, o “trato dos viventes” – título do livro clássico do
historiador Luiz Felipe de Alencastro – não orgulhava muitos dos que o
praticavam, assombrando-lhes a consciência e levando-os, assim que possível, a
tentar apagar seu passado de negreiros.
Consciência
que pesa ainda e continuará a pesar, sob as mais diversas formas. Na defesa das
cotas encontra-se o sentimento de reparação ante as iniquidades do tráfico e da
exploração do trabalho escravo. Na crença de que todos os nossos males advêm da
escravidão também. A escravidão é tema recorrente em alguns dos principais
ensaios de compreensão do Brasil, como Casa grande & senzala, de Gilberto
Freyre, e a desqualificação do trabalho é um dos fios condutores de Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Boa parte da melhor historiografia
produzida hoje no Brasil versa sobre a escravidão e temas dela derivados.
Tema para historiadores
Conforme
ouvi há anos de uma conhecida historiadora norte-americana, o tema da
escravidão é, ao mesmo tempo, qualidade e defeito dos estudos historiográficos
brasileiros. Não se pode jamais esquecê-lo ou minorá-lo, mas é preciso, também,
ultrapassá-lo. Há quantidade de assuntos para se abordar nos trabalhos
acadêmicos, ainda mais em universidades tão jovens quanto as nossas – as mais
velhas não alcançam sequer um século.
O
Haiti, que na época da Revolução Francesa (1789) se chamava São Domingos e era
conhecido como a ‘pérola das Antilhas’, contava com uma população na qual 85%
eram escravos.
Conheceu a primeira grande revolta de escravos negros da
história, aboliu a escravidão em 1794 e proclamou a independência em 1804. O
processo teve início sob a Revolução Francesa e atingiu o ponto crítico – o da
supressão do vínculo colonial – já na época de Napoleão Bonaparte.
Talvez
essa triste história de longa duração ajude a compreender os motivos que fazem
pesar nossa consciência
Tanto
a maioria dos radicais revolucionários (os jacobinos) quanto a dos homens do
nascente império napoleônico eram contra a independência e a favor da
escravidão, evidenciando as contradições que sacudiam as relações entre as
metrópoles e suas colônias. Na França, pregava-se a igualdade entre os homens;
nas colônias, deixava-se que interesses mercantis – então obrigatoriamente
colonialistas e escravagistas – falassem mais alto.
Para
reconhecer a soberania do Haiti, o governo francês exigiu uma indenização de
150 milhões de francos-ouro: algo como 2% do produto interno bruto da França na
época (Le Monde, 3/5/2014). Abatida a soma, a ilha pagou 90 milhões e arrastou,
até a metade do século 20, uma dívida gigantesca para com o país europeu.
Uma
vez independente, o Brasil honrou pagamentos e contraiu dívidas, mas manteve a
escravidão por todo o Império, só a abolindo às vésperas da República. Talvez
essa triste história de longa duração ajude a compreender os motivos que fazem
pesar nossa consciência e que continuam a nortear as escolhas temáticas de
nossos historiadores.
Texto de Laura de Mello e Souza sob
o título original de “O Peso da Escravidão” e foi publicado originalmente na CH
315 (junho de 2014). Clique aqui para acessar uma versão resumida da revista.
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