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Manolo Florentino |
O
historiador capixaba Manolo Florentino, docente do Instituto de História da
UFRJ, é hoje uma das maiores referências em escravidão no Brasil. Sua obra mais
famosa, “Arcaísmo como Projeto”, escrita em parceria com o historiador João
Fragoso (UFRJ), se tornou leitura obrigatória entre estudantes de história e
completa 20 anos em 2013. Na entrevista dada ao Café História, Florentino
comenta sobre o sucesso do livro, mas vai muito além: fala de sua trajetória
acadêmica, sobre suas mais recentes pesquisas e, claro, sobre o panorama dos
estudos sobre escravidão no Brasil. Revela, por exemplo, que a historiografia
brasileira sobre escravidão não gira apenas no que é produzido no “Eixo Rio-São
Paulo”. Segundo o professor da UFRJ, “a novidade dos anos recentes tem sido o
Norte e o centro Oeste”.
Manolo
Florentino é especialista em escravidão no Brasil e na entrevista fala sobre a
complexidade e a riqueza de interpretações que o tema oferece ao historiador.
Confira:
CAFÉ HISTÓRIA:
Professor, o senhor cursou a graduação, o mestrado e o doutorado em um momento
em que boa parte da intelectualidade, dos políticos e das pessoas em geral
buscava repensar a experiência histórica brasileira (1977-1991). Escolher a
escravidão como tema de especialização tem a ver com esse momento?
MANOLO FLORENTINO:
Escolher graduar-me em História, sim, foi uma opção que certamente guardou
alguma relação com a conjuntura política brasileira dos anos de chumbo. Naquela
época, mais do que hoje, muitos dos jovens que elegiam estudar História ou
outras ciências sociais faziam-no com a ingênua pretensão de adquirir
instrumentos para melhor compreender o mundo – em particular o nosso país – e
atuar. Eram tempos de maior engajamento, de maior “politização”, com enorme
peso acadêmico das diversas vertentes do marxismo. Estava-se contra ou a favor
e pronto, não precisava justificar. O ambiente era tão polarizado que, certa
vez, reagindo de modo evidentemente pueril às noções de representação social
dos então novos pós-modernistas, um de nossos mais famosos marxistas foi visto
nos corredores de sua universidade dando socos na parede a gritar – “o real
existe!, o real existe!”.
Mas
se estudar história de algum modo resultou do clima cultural e político da
época, eleger o escravismo como campo de especialização foi algo absolutamente
fortuito. Me explico. No início dos anos 80 tive a chance de fazer mestrado no
Colégio do México (Colmex), uma instituição de grande prestígio no âmbito
acadêmico latino-americano. Recém-graduado, eu andava doido para sair do Brasil,
não importando muito para onde nem para estudar o quê. Por então a Unesco
buscava criar uma pós-graduação em Estudos Africanos em algum país da América
Latina e o lugar óbvio deveria ser o Brasil. Creio que questões políticas
levaram o projeto para o Colégio do México, e eu fui junto. Comecei a estudar a
história social do tráfico atlântico de escravos de um ponto de vista africano,
suas consequências econômicas, sociais etc. Anos depois, ao regressar ao
Brasil, me dei conta de que a única maneira de utilizar o conhecimento
acumulado em África era embrenhar-me pela escravidão brasileira. Em suma,
adentrei a escravidão pela porta da África, uma África distante da cálida Mãe
Preta que os mitos de origem insistiam em veicular, da qual os anos de estudo
no exterior me ajudaram a esconjurar.
CAFÉ HISTÓRIA:
Por muitos anos, o escravo apareceu em trabalhos de história apenas como uma
peça no sistema colonial, alguém que se sujeitava a uma força muito maior que
ele. Hoje, no entanto, sabemos que a realidade era bem diferente. O escravo
fazia parte de uma rede bastante ampla, onde havia algum espaço para
negociações. Mas o que exatamente isso quer dizer? A escravidão deve ser
compreendida para além da violência e da coerção?
MANOLO
FLORENTINO: Creio que a escravidão nos espanta porque atenta contra uma
conquista muito recente da humanidade: os direitos do indivíduo. Talvez por
isto uma parte de nossa historiografia opere em um registro abolicionista, como
se ainda fosse necessário inventariar os horrores da escravidão para
denunciá-los. Com isso se perde aquilo que, em minha opinião, representa um de
seus aspectos mais intrigantes, que é o fato do escravismo se constituir uma
ordem cultural extremamente estável e rica. Se lermos com atenção a Gilberto
Freyre, observaremos que ser este um dos sentidos de sua observação segundo a
qual a África civilizou o Brasil.
É
claro que para a estabilidade do cativeiro colaboraram a violência e a coerção.
Entretanto, a escravidão não era apenas uma relação de trabalho, mas também e principalmente
uma relação de poder. Isso significa que sua reprodução se sustentava em grande
medida na esfera política. Daí parecer-me tão importante aprofundar o estudo de
instituições como a família escrava (um fator de ordem antropológica) e a incessante
busca por parte dos escravos em obter algum controle sobre seu tempo de
trabalho. Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação
de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a
acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria. Aliás, observe-se que não temos
ainda uma noção mais clara do peso demográfico das manumissões em nossa
história, razão pela qual não sabemos se a população escravizada e liberta
conhecia ou não índices positivos de reprodução natural, como ocorria em
algumas áreas do sul dos Estados Unidos e em Barbados. Parece que isto também
acontecia em Minas Gerais e no Espírito Santo. De todo modo, quanto mais
descobrirmos regiões onde a população escrava e liberta obtinha saldos
positivos de reprodução natural, mais nos afastaremos da demografia
plantacionista devoradora de homens inventada por Joaquim Nabuco.
CAFÉ HISTÓRIA:
A mobilidade social parece ser um dos temas mais interessantes e desafiadores
para os historiadores que se debruçam sobre ao tema da escravidão no Brasil. A
miscigenação foi a principal estratégia de mobilidade ou podemos citar outras?
MANOLO FLORENTINO:
Eu diria que a miscigenação racial, um dos traços característicos do Brasil
escravista, somente pode ser decifrada por meio da mobilidade social. Sabemos
terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo
predomínio de manumissões de mulheres escravizadas. Semelhante perfil pode ter
várias razões, mas para mim uma das principais era a clareza por parte dos
escravos de que os filhos herdavam o estatuto jurídico das mães. Ora, uma vez
na civitas, com quem se encontrava essa imensa quantidade de mulheres que
ascendiam socialmente por meio das alforrias? Com seus maridos escravizados,
que ajudavam a libertar, com alforriados com os quais se casavam, e com homens
brancos pobres provenientes de norte de Portugal e das ilhas atlânticas, cujo
número superava o de mulheres portuguesas em uma proporção que não raro
alcançava 9 por 1. O que nossos historiadores demógrafos têm demonstrado é que
se tratava de homens desvalidos cuja ilusão de enriquecer (“fazer o Brasil”) e
regressar a Portugal se esvaía em poucos anos. Acabavam, pois, por se
estabelecer definitivamente na colônia e exercitavam um critério de escolha
matrimonial que dista um pouco do que Gilberto Freyre chamava de “plasticidade”
sexual do homem lusitano: primeiro buscavam casar com as poucas portuguesas
existentes, depois com as mulheres brancas nascidas na colônia; esgotados estes
mercados matrimoniais, buscavam as mestiças e negras, inclusive as mulheres
forras. Logo, na base de nossa miscigenação estaria a pobreza pura e simples,
que promovia o encontro entre as cativas que alcançavam a civitas e os homens
pobres de origem lusitana. A miséria partejou o nosso famoso “pardo”.
CAFÉ HISTÓRIA:
O livro “O Arcaísmo como Projeto”, escrito pelo senhor e pelo professor João
Fragoso (UFRJ), tornou-se uma obra de referência na historiografia brasileira.
Uma de suas maiores contribuições foi compreender a economia colonial
brasileira a partir de sua própria elite, a partir de sua lógica e de suas
dinâmicas. Como a relação escravo-senhor se inscreve nesta perspectiva
historiográfica?
MANOLO FLORENTINO:
“O Arcaísmo como Projeto” ainda hoje me surpreende, especialmente por sua
vitalidade teórica. Um dos problemas que na época de seu lançamento eu e
Fragoso tentávamos compreender era a imensa capacidade de reprodução da
economia colonial, sobretudo em fases B (de retração) do mercado internacional.
A escravidão aparecia então como uma das variáveis centrais, na medida em que,
por reproduzir-se por meio do tráfico atlântico, permitia acesso a trabalho
barato. O cerne da questão radica na separação promovida pela produção social
do escravo na África entre o valor do cativo enquanto ser de cultura e seu
preço de mercado, baixo pois em geral tratava-se de um prisioneiro de guerra. O
baixo preço de mercado do escravo se transmitia em cadeia através do Atlântico
e chegava às fazendas e cidades da América portuguesa. Combinado ao ínfimo
valor social da terra e dos alimentos, o reduzido custo social do escravo
representava uma variável fundamental para o contínuo crescimento da economia
colonial, independentemente das fases de retração do mercado internacional.
CAFÉ HISTÓRIA:
Como foi a repercussão do lançamento deste livro no âmbito acadêmico, sobretudo
por parte dos historiadores que tiveram suas teses contrariadas?
MANOLO FLORENTINO:
Visávamos contrapor um modelo consistente à teoria da dependência, dominante na
historiografia brasileira desde os escritos de Caio Prado Júnior. A julgar pela
recepção do público, não nos saímos muito mal, e “O Arcaísmo como Projeto” é
até hoje estudado em nossas graduações e pós-graduações em história. Sei que
gerou algumas reações raivosas no plano estritamente paroquial, mas em geral
foi muito bem recebido entre os especialistas em história econômica.
CAFÉ HISTÓRIA:
“O Arcaísmo como Projeto” é um trabalho de fôlego produzido em dupla. O
trabalho de equipe, entretanto, não tem sido visto com tanta frequência entre
nós historiadores. Vemos muitos livros organizados por dois ou mais
pesquisadores, mas não são exatamente a mesma coisa. Na sua opinião, escrever
com outras pessoas é mais difícil? Como se deu essa dinâmica com o professor
João Fragoso?
MANOLO FLORENTINO:
Duas cabeças pensam melhor que uma, desde que haja sintonia. De minha parte,
sempre gostei de trabalhar em equipe, pois as discussões são bem mais ricas.
Reconheço entretanto não ser esta uma tradição intelectual brasileira, embora
seja algo bem comum em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, por
exemplo.
CAFÉ HISTÓRIA:
O senhor tem observado alguma tendência em trabalhos no campo da escravidão em
trabalhos de pós-graduação? Talvez novos objetos ou abordagens?
MANOLO FLORENTINO:
Se considerarmos, como já disse, que o caminho mais rico para se compreender a
escravidão brasileira é encará-la como uma ordem cultural caracterizada por um
enorme grau de estabilidade, é óbvio que a principal tarefa dos especialistas é
romper com a polarização entre o cativeiro e a liberdade. Entre ambos os polos
havia uma imensa gama de situações e combinações sociais possíveis. Por
exemplo, estudando o caso do Paraná, a professora Cacilda Machado demonstrou
que membros de uma linhagem de escravos podiam abandonar o cativeiro e duas ou
três gerações depois seus descendentes regressavam à escravidão pela via do
casamento com escravas. Eis uma perspectiva dinâmica de pesquisa, cujos
resultados mostram claramente que a pobreza unia e direcionava inúmeros
destinos pessoais. Outra linha de trabalho interessante tem sido desenvolvida
por João José Reis, na Bahia, que busca acompanhar trajetórias de indivíduos
alguma vez submetidos ao cativeiro. Seu livro sobre o liberto Domingos Sodré é
um exemplo dos mais ricos de como a mobilidade social ascendente ocorria – o
africano Domingos Sodré chegou ao Brasil escravo, conseguiu a alforria e morreu
proprietário e cristão.
CAFÉ HISTÓRIA:
Professor, Nos últimos anos, temos acompanhado um enorme debate público
envolvendo as chamadas “ações afirmativas” no Brasil. Como o senhor enxerga
esse tipo de política? Trata-se de um modelo importado? Alguns historiadores
alertam que esse discurso gera um tipo de instrumentalização da história,
sobretudo do tema da escravidão. O senhor concorda com essa crítica?
MANOLO FLORENTINO:
Sem dúvida trata-se de um modelo de política pública importado mecanicamente,
aspecto flagrante quando se compara a história das relações raciais nos Estados
Unidos e no Brasil, onde os níveis de mobilidade social ascendente eram
infinitamente maiores. Um exemplo de instrumentalização da história brasileira
por parte dos adeptos das chamadas “ações afirmativas” é a própria noção de
terras remanescentes de quilombos, cuja identificação está longe de ser fácil.
Outro é o fato de que parcela expressiva de nossos pardos tem sido alocada ao
grupo dos “negros”, quando na verdade derivam da mestiçagem entre brancos e
indígenas – um tremendo etnocídio historiográfico, por certo.
CAFÉ HISTÓRIA:
Em entrevista recente, o professor José Murilo de Carvalho (UFRJ) sublinhou que
os principais trabalhos historiográficos sobre o Brasil continuam sendo feito a
partir de um ponto de vista típico do “Eixo Rio-São Paulo”. E isso pode ser um
problema. Podemos dizer que isso também ocorre nos trabalhos sobre escravidão?
Se sim, por que isso acontece?
MANOLO FLORENTINO:
Pode ser que isto ocorra em outros campos da historiografia, mas no que se
refere à escravidão creio que a hegemonia do eixo Rio-São Paulo deva ser relativizada.
Com a crescente disseminação dos cursos de pós-graduação, temos visto
aparecerem excelentes trabalhos no sul do país, com destaque para o Rio Grande
do Sul; no sudeste, os estudiosos da escravidão mineira e do Espírito Santo têm
produzido teses e dissertações bem originais; o nordeste, em especial Bahia e
Pernambuco, sempre foi um celeiro de boas pesquisas sobre cativeiro. A novidade
dos anos recentes tem sido o Norte e o Centro Oeste, onde também aparecem
trabalhos originais. Mas eu gostaria de ressaltar uma importante distinção
teórica, estabelecida desde fins da década de 1960 pelo historiador Moses
Finley, que ainda pode ser útil para quem estuda escravidão fora do eixo
Rio-São Paulo e nordeste. De acordo a Finley, uma sociedade escravista é aquela
em que a reprodução sociológica do lugar social da elite se dá mediante a renda
acumulada com o trabalho escravo. Nos casos em que há escravos na população,
mas a reprodução do lugar social da elite se dá por outros meios, teríamos
apenas uma sociedade possuidora de escravos. Ou seja: escravista é toda
sociedade em que a utilização do trabalho escravo serve para estabelecer s
diferenciação entre os homens livres. Trata-se de uma perspectiva interessante,
pois a natureza escravocrata de uma sociedade deixa de ser resultado da
quantidade de cativos existentes ou, mesmo, da importância do setor da economia
que eles ocupam, e passa a derivar de um movimento sociológico. Desconfio que
entre os séculos XVI e XIX vastas áreas da América portuguesa configuravam
regionalmente apenas sociedades possuidoras de escravos.
CAFÉ HISTÓRIA:
Professor, muito obrigado por conversar com o Café História. Para finalizar
nosso papo, uma curiosidade: o senhor está se dedicando a quais trabalhos
atualmente?
MANOLO FLORENTINO:
Tenho batalhado para traçar algumas características da comunidade de islamitas
negros que se formou no Rio de Janeiro depois do levante Malê de 1835 na Bahia.
É uma reconstituição difícil porque eles tendiam a manter certo sigilo sobre a
sua identidade religiosa e, em 1904, de acordo a João do Rio, praticamente
haviam desaparecido. Tomara que eu tenha sorte.
Fonte: Café História
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