Capitalismo,
senador, capitão, "plata". Estas são algumas das poucas palavras
possíveis de decifrar nos primeiros minutos do longa-metragem Martírio, que
estreou na quinta-feira (13) nos cinemas, com distribuição pelo projeto Sessão
Vitrine Petrobras. Na melodiosa língua guarani, índios da etnia Kaiowa fazem
uma assembleia e discutem os perigos que ameaçam aquele povo. Estas cenas
registradas no final dos anos 1980 pelo cineasta e indigenista Vincent Carelli
são algumas das imagens que o diretor vem captando nas últimas três décadas e
que ajudam agora a narrar o percurso da insurgência pacífica e obstinada dos
Guarani e Kaiowá pela retomada de seus territórios sagrados.
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Os acampamentos e as ocupações indígenas em MS são símbolos de uma resistência pacífica e fundamental. Imagem capturado do youtube. |
CEERT -
Durante duas horas e 40 minutos, o que chega ao espectador é um sentimento de
extrema tristeza pelo massacre quase silencioso sofrido pelos povos originários
no Mato Grosso do Sul, mas também uma emocionante beleza, já que o filme nos
apresenta a profunda conexão que eles guardam com a terra, seus rituais e seus
mortos. Vincent Carelli, com a colaboração de Ernesto de Carvalho e da
montadora Tita, nos dá em primeira pessoa um denso testemunho sobre a questão
indígena no país.
O
documentário traz bem claras a memória afetiva e toda a militância de Carelli
na questão indígena e faz uma importante reflexão sobre problemáticas sociais e
políticas no que diz respeito aos direitos dos indígenas. A obra se vale de
arquivos históricos e imagens produzidas por Carelli junto aos Kaiowá ao longo
de 10 anos para resgatar as origens das políticas indígenas do Estado desde a
Guerra do Paraguai, dos sucessivos projetos de integração dos índios ao sistema
de trabalho, até o massacre forjado pelo agronegócio e a bancada ruralista nos
tempos atuais.
Trata-se
de um convite – talvez até uma convocação – para que a sociedade tome partido
do lado certo já que o poder do agronegócio junto à bancada ruralista e as
forças conservadoras no país mostram sempre o que lhes convêm: de vítimas que
tiveram suas terras roubadas, sua força de trabalho explorada e a morte como
companheira constante, os indígenas passaram a ser apontados como vilões e
ameaçadores invasores de terra que atrasam o desenvolvimento econômico do país.
O filme toma uma posição bem clara e acaba apresentando as duas faces de uma
pesada moeda – o de um povo historicamente estereotipado como submisso e
cordial contra uma máquina capitalista destruidora.
É
exatamente sobre isso que os índios falam na assembleia gravada por Carelli em
1988, nas imagens não legendadas que abrem o filme: "O que está pegando a gente é o capitalismo", diz um deles, em
uma das frases mais simbólicas do documentário.
Resistir para viver
Ao
mesmo tempo que causa revolta ver políticos defendendo o latifúndio e o
agronegócio em detrimento da vida de pessoas, dá esperança ver que ainda há
gente lutando contra todo esse poder. É claro que fica evidente a discrepância
entre as forças, mas os acampamentos nas beiras das estradas em Mato Grosso do
Sul e a persistência das ocupações indígenas se mantêm como símbolos de uma
resistência pacífica e fundamental. Resistir é a única forma de proteger suas
terras sagradas e os locais onde seus mortos são enterrados, mesmo que isso
continue lhes custando a vida.
É
o caso de um acampamento que existe há 12 anos na beira de uma estrada em
Apyka'i, a quatro quilômetros da cidade de Dourados. Lá, cacique Damiana viu
tombar muitos de seus companheiros. Apesar da dor e da penúria em que vivem,
ela reúne suas forças para cantar denúncias sobre as injustiças e violências
que seu povo sofre e para reclamar parte da propriedade arrendada pela Usina
São Fernando: "A gente canta pro dono da vida, pro dono do céu, pro dono
da terra, pro dono da água… Assim vivemos na luta pela nossa terra, pelo tekona
Apyka'i. Nós rezamos para os deuses do céu e da terra. Temos reza até para o
eclipse do sol, nós, os índios Kaiowá e Guarani. O brilho do sol e nossas
rezas, os brancos nunca poderão impedir".
Para
Carelli, a produção deste documentário não era possibilidade, mas sim uma
necessidade urgente: "Todo dia, bate
à porta das nossas consciências, através das redes sociais, a notícia de um
assassinato brutal, de um violento despejo. Do outro lado, na grande imprensa,
nas sentenças judiciais, nos discursos dos lobbistas do agronegócio, vemos a
ignorância ou omissão total da história, a inversão cínica de papéis se
apropriando da palavra ‘resistência’, frente ao suposto ‘terrorismo’ dos
índios. Fazer Martírio se tornou uma compulsão necessária para mim, que tenho a
vida atada à deles, para Ernesto e Tita, que me acompanharam nessa jornada. Um
compromisso moral, ético, político, e sobretudo afetivo, com os povos Guarani
Kaiowá", afirma o diretor que fundou em 1986 o projeto Vídeo nas
Aldeias, que apoia as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas
identidades e seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos
audiovisuais.
Martírio
é o segundo filme de uma trilogia, ao lado de Curumbiara, que conta a história
de um massacre de indígenas ocorrido em 1985 no sul de Rondônia, e de Adeus,
Capitão, que ainda está em andamento.
Vencedor
de prêmios em vários festivais, o longa estreia nesta quinta-feira nas
seguintes cidades e cinemas: em São Paulo, no Espaço Itaú de Cinema Augusta e
na Caixa Belas Artes; em Santos, no Cinespaço Miramar; no Rio de Janeiro, no
Espaço Itaú de Cinema Botafogo; em Niterói, no Cine Arte UFF; em Belo
Horizonte, no Cinema Belas Artes; em Brasília, no Cine Brasília e no Espaço
Itaú de Cinema Brasília; em Porto Alegre, no Cine Bancários e no Espaço Itaú de
Cinema Porto Alegre; em Salvador, no Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha; em
Recife, no Cine São Luíz e no FUNDAJ Cinema do Museu; em Curitiba, no Cineplex
Batel, na Cinemateca de Curitiba e no Espaço Itaú de Cinema Curitiba; em Rio
Branco, no Cine Teatro Recreio; em Maceió, no Cine Arte Pajuçara; em Fortaleza,
no Cinema do Dragão; em Vitória, no Cine Metrópolis; em Goiânia, no Cine
Cultura Goiânia; em São Luís, no Cine Praia Grande; em João Pessoa, no Cine
Banguê e no Cinespaço Mag Shopping; em Teresina, no Cine Teresina; em Aracaju,
no Cine Vitória; em Palmas, no Cine Cultura Palmas; e em Belém, no Cine Líbero
Luxardo.
Os
ingressos são vendidos a preço reduzido (R$ 12 e R$ 6 a meia-entrada) nas
bilheterias ou por meio do Cartão Fidelidade Sessão Vitrine Petrobras, que pode
ser adquirido no site do projeto.
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