![]() |
Joana
Guimarães Luz / Foto: Sirc - Divulgação - Reprodução.
|
Das
memórias mais vivas da infância, Joana Guimarães Luz gosta especialmente de se
lembrar de uma: a fome da mãe pela leitura. “Na minha cabeça ficou a imagem
dela devorando Monteiro Lobato em uma tarde quente na nossa primeira casa, no
interior da Bahia.” Joana, que hoje, aos 61 anos, é reitora na Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Itabuna, é a primogênita de uma família de
seis filhos que se mantinha com o plantio e a colheita de cacau em fazendas no
interior do estado. Mais precisamente em Itajuípe, cidadezinha de 21 mil
habitantes. “Vivíamos na roça, mas um dia minha mãe decidiu nos levar para
Salvador, onde teríamos uma educação melhor e chances de sair da miséria. Eu
tinha uns 9 anos. No fundo, ela sabia que só a educação nos salvaria. Foi
justamente o que aconteceu. Todos os meus irmãos seguem profissões sólidas
originadas na faculdade”, conta ela.
É de
Joana o título de primeira reitora negra eleita em uma universidade federal no
Brasil. O cargo, que ocupa desde o final de 2017, se transformou em uma espécie
de “vitrine positiva” para outras mulheres negras que sonham em seguir seu
feito. “Sei da força da representatividade que exerço estando onde estou. A
maioria dos reitores no país são homens brancos. Temos 63 universidades
federais e somente 19 mulheres no comando delas. Quando falamos de negras, o
cenário é pior. Eu sou a única em atividade”, diz.
Nesta
entrevista, Joana conta de suas origens, da influência dos pais, trabalhadores
rurais apaixonados pelos livros, e do desafio que tomou para si: o de construir
uma universidade mais diversa e aberta para todos.
“Sei da força da representatividade que exerço. A maioria dos reitores no país são homens brancos”
MARIE
CLAIRE Sobre sua família: os seus pais, assim como você, puderam estudar?
JOANA
GUIMARÃES Até um certo ponto. Meu pai estudou até a quarta série e, por isso,
sabia ler e escrever. Minha mãe estudou até a segunda, e sabia ler. Inclusive,
era o que ela fazia quando tinha tempo livre. Cresci numa casa em que a leitura
era um hábito e um prazer. Ensinaram isso para todos os filhos. Mais tarde, meu
pai conseguiu um emprego em Salvador, e às vezes chegava a pensar em voltar
para a roça com a justificativa de que lá, pelo menos, nunca nos faltaria
comida. Mas minha mãe dizia: “Morro de fome, mas meus filhos não saem da
escola”.
MC
Parece que a obstinação da sua mãe de fato transformou o futuro de vocês. Todos
os seis filhos conseguiram terminar os estudos?
JG
Todos. Tem até uma outra história minha que vale contar. Assim que entrei em
minha primeira faculdade, de filosofia, fui aprovada em um concurso da Caixa
Econômica e foi um dilema, aceitar o trabalho, que pagava bem e podia melhorar
a situação da minha família, ou seguir com o curso, que era de período
integral. Meu pais me disseram para estudar e negar o emprego. Se a gente tinha
vivido até ali naquelas condições, podia segurar mais uns anos. Foi o que fiz.
MC
Quando diz “naquelas condições”, quer dizer que eram difíceis? Vocês chegaram a
passar fome, por exemplo?
JG
Sim. Teve um tempo, quando a gente ainda era criança e morava no interior, que,
se não fosse minha tia-avó, não teríamos o que comer. Ela também não tinha
dinheiro, mas havia um quintal nos fundos de sua casa onde plantava feijão,
ervas e tomate. Ela colhia e nos levava tudo isso. Durante um época da vida,
era o que comíamos. Meu pai nunca deixou de trabalhar, mas para uma família de
seis filhos o dinheiro era pouco. Eu e meus irmãos sempre fizemos bicos,
conciliando com o estudo. Mas também não era muito dinheiro o que conseguíamos.
De qualquer forma, existia um sentimento de cooperação. Todo mundo se ajudava e
por isso consegui cursar a faculdade.
MC
Mas não terminou filosofia, certo? Você trocou de curso e chegou a estudar nos
Estados Unidos.
JG
Sim, eu fiz até o terceiro ano de filosofia e depois cursei geologia, que é a
área na qual me especializei. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado. Os dois
últimos, nos Estados Unidos, junto do meu marido na época e da minha filha
pequena. A princípio, eu tinha ido acompanhá-lo, pois ele já tinha uma bolsa de
doutorado. Para conseguir a minha, bati de porta em porta por um professor que me
aceitasse como doutoranda. Até que consegui, e com bolsa integral.
MC
Desde que você assumiu a reitoria da UFSB, implantou medidas para deixar a
universidade mais diversa. Quais são elas?
JG
Na Universidade Federal do Sul da Bahia temos 75% de cotas revertidas para
alunos de escolas públicas. Nesse montante, há cotas para alunos negros também,
50%. Outra medida foram as cotas para alunos transgêneros, ciganos e indígenas,
por exemplo. Essas são cotas que não entram nos 75%, porque são como vagas
extras destinadas a essas populações. A universidade precisa refletir a
sociedade. E a sociedade não é feita apenas de pessoas brancas vindas de
escolas privadas. Ela é muito mais complexa e diversa que isso. Quando há
negros no ambiente universitário, assim como pessoas com deficiência e LGBTs,
um leque de oportunidades se abre, porque essas pessoas chegam com uma nova
cultura e diferentes formas de ver o mundo. Isso abre portas para inovação e
ajuda a mudar o mundo.
MC
Em algum momento o racismo foi um entrave em seu caminho profissional?
JG
Não diria entrave, porque não deixei de chegar a nenhum lugar por causa dele.
Mas até hoje, mesmo como reitora, o racismo e o machismo me alcançam, sim. É
comum eu estar em uma reunião ou em um evento, fazer minha fala e logo depois
alguém dizer exatamente o que eu disse, como se o que eu disse não tivesse sido
escutado. Me silenciam na minha própria presença. Sei que fazem isso porque
estão acostumados a tratar os negros, e especialmente as mulheres negras,
assim. Por isso é uma atitude tão frequente. Quanto a mim nessas situações, já
me calei, já doeu, já me indignei. Hoje me faço ser ouvida.
_________________________________________________________
Com
informações da Revista Marie Claire.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!