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Decreto de 1941 determinava que 'às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza'. (FOTO/Ney Montes/Acervo Pessoal). |
Quando
a seleção brasileira feminina de futebol estrear nos próximos dias pelo mundial
da categoria, entrará em campo com ela a sombra das pioneiras do esporte no
país, que enfrentaram pobreza, descrença, machismo, ofensas e altas doses de
amadorismo para pavimentar a estrada que Formiga e Marta podem trilhar hoje em
terras francesas.
Mulheres
que foram tachadas de criminosas a atrações circenses exclusivamente pelo
desejo de algo tão simples quanto jogar bola.
"Memória é o que você escolhe esquecer, não
necessariamente o que você enaltece e quer guardar. Por isso, desde 2015, com a
explosão do feminismo no mundo, a gente passou a olhar para essa história de
outra forma", diz Daniela Alfonsi, antropóloga e diretora do Museu do
Futebol, em São Paulo, que inaugurou em maio a exposição CONTRA-ATAQUE! As
Mulheres do Futebol, que reúne material precioso dos primeiros anos e da
evolução do esporte no país.
Há
registros da prática do esporte entre mulheres desde o começo do século
passado, mas foi na década de 1940 que a prática começou a se popularizar entre
elas. Tanto que começou a incomodar.
"E, neste crescendo, dentro de um ano é
provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de
futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores de 2.200 futuras mães",
escreveu o senhor José Fuzeira em carta endereçada ao então presidente Getúlio
Vargas e publicada no jornal Diário da Noite em 7 de maio de 1940.
Num
tempo de eugenia e preconceito, ninguém estranhou, em abril do ano seguinte, o
Artigo 54 do Decreto-Lei 3.199, que determinava que "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com
as condições de sua natureza". Da mesma forma como também não pareceu
estranho a ninguém o fato de ele nunca ter sido efetivamente cumprido.
As senhoras boleiras de Araguari
Parte
fundamental dessa resistência teve como sede uma cidade mineira quase na
fronteira com Goiás. Foi em Araguari que as mulheres futebolistas brilharam em
1958.
Com
a intenção de ajudar financeiramente o Grupo Escolar Visconde de Ouro Preto,
que passava por dificuldades, o fundador do Araguari Futebol Clube, Ney Montes,
convocou pelo rádio meninas interessadas em montar um time de futebol local.
Entre
as aprovadas estava Nádima Nascimento, então com 18 anos. "A mulher era
educada para ser dona de casa e criar filhos, não tinha outra opção",
lembra a hoje costureira, aos 78 anos.
O
objetivo original de Ney Montes foi atingido logo no primeiro jogo.
"Já
na estreia, a renda foi espetacular, encheu de gente para nos ver, e começaram
a aparecer convites para jogar em cidades vizinhas", lembra a capitã Zalfa
Nader, hoje com 73 anos. Nádima nunca esqueceu dois momentos tensos da
trajetória. "Em Goiânia, as pessoas ameaçaram invadir o campo e, em
Varginha, o avião, daqueles pequenos, deu uma pane."
Zalfa
prefere lembrar do jogo em Belo Horizonte, quando as equipes se apresentaram
com as camisas do Atlético e do América da capital. "Quando o Atlético fez
gol, as pessoas jogaram chapéus e paletós no campo, de alegria."
O
grupo das subversivas senhoras boleiras de Araguari durou cerca de um ano: no
fim de 1959, tiveram convite para exibir seus talentos no México mas, por
pressões afins, a lei foi cumprida e os times, proibidos.
A
proibição acabou oficialmente em 1979, mas a regulamentação do futebol feminino
no Brasil só chegou em março de 1983. Entre as regras, jogos de 70 minutos, sem
cobrança de ingressos e a inacreditável determinação de que as jogadoras não
poderiam trocar de camisa com as adversárias depois da partida.
Essa
regra nasceu no ano anterior, quando, em uma uma preliminar feminina no Morumbi
antes de São Paulo e Corinthians, a atriz e produtora Ruth Escobar trocou de
camisa com outra jogadora.
Também
em 1982 entrou em campo o que seria o maior escrete da primeira fase da
história do futebol feminino brasileiro. Das areias de Copacabana, a fundação
do time do Esporte Clube Radar, fundado em 1981, trazia uma figura fundamental
para a primeira década do esporte, o advogado Eurico Lyra Filho.
Apaixonado
pelo futebol feminino, Lyra ajudou a regulamentá-lo e, ao mesmo tempo, formou
um time imbatível.
O
Radar ganhou todas as seis edições da Taça Brasil, primeiro campeonato nacional
da categoria, e outros seis campeonatos cariocas.
Mas
Eurico era um reflexo do amadorismo da época. Todos os feitos do Radar foram
conquistados sem que o dinheiro dos patrocinadores chegasse às jogadoras. Ele
tinha fama de dar assistência, se preocupar, ajudar as famílias. Dinheiro, que
era bom, nada.
"Ele ajudava muito as meninas, mas, ao mesmo
tempo, era uma prática comum na época elas jogarem por uma caixa de cerveja",
lembra Suzana Cavalheiro, ex-lateral-direita.
"Não existia para nós a perspectiva de ganhar
um salário para jogar futebol naquela época", resume a ex-jogadora do
Juventus, que recusou o convite do Radar para terminar a faculdade de Educação
Física em São Paulo.
"Às jogadoras sempre foi atribuído um
discurso de 'paixão pelo futebol', que contribuiu para manter a falta de
profissionalização e de uma devida valorização monetária", pontua Cláudia
Kessler, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutora em
Antropologia Social.
"Quando elas recebiam algo, eram lanches,
passagens ou alguma quantia mínima, chamada de 'ajuda de custo'",
completa.
Pela paz nos estádios
O
Radar entrou para a história pela bola e pelas confusões. Só em 1983, primeiro
ano da regulamentação, foram duas.
Em
julho, na decisão da Taça Brasil, ganhava de cinco a zero no time do Goiás. A
três minutos do fim do jogo, um grupo expressivo de jogadoras do time goiano
não concordou com uma marcação e agrediu o árbitro, que expulsou o time
inteiro.
Três
meses mais tarde, a equipe de Copacabana decidiu o primeiro Campeonato Carioca
feminino contra o Bangu. Depois de uma vitória pela contagem mínima para cada
lado, a decisão foi para um terceiro jogo no estádio Moça Bonita, casa do Bangu.
O
Radar abriu a contagem logo no começo, mas, aos 35 minutos do segundo tempo, só
o juiz Ricardo Durães não viu a bola bater na mão da zagueira do time de
Copacabana dentro da área.
As
jogadoras do Bangu partiram para cima dele. Alguns torcedores invadiram o campo
e fizeram o mesmo. O falecido patrono do time (e banqueiro do jogo do bicho)
Castor de Andrade também correu para cima do árbitro. Sem função originalmente
na briga, as jogadoras do Radar partiram para cima das adversárias.
"O Castor de Andrade liberou os seguranças
para espancarem o árbitro. Tinha tanto leão-de-chácara naquele dia que os
jornais da época brincaram que o estádio do Bangu ia passar a se chamar Coliseu
ou Simba Safári", conta Carlos Molinari, jornalista e historiador do
Bangu.
"No fim, o Radar venceu por um a zero, o jogo
não terminou, todas as jogadoras do Bangu, que ajudaram a surrar o árbitro,
foram suspensas e o time se desfez", conclui.
Logo,
aquele que foi o primeiro escrete feminino do suburbano carioca a disputar um
campeonato oficial foi também seu último. Se não durou muito, o time do Bangu
rendeu um mito do esporte: Maria Lucia Lima, a Fia.
Queridinha
de Castor de Andrade, que dizem ter ficado impressionado ao vê-la jogar, só não
conseguiu uma coisa dele, como revelou em entrevista para o jornal O Globo este
ano: jogar descalça, já que não havia chuteira feminina e ela não se adaptava
ao calçado tipo Kichute usado pelo time feminino. Com o fim do time do Bangu,
Fia foi para o Vasco e esteve nos grupos da seleção em 1988 e 1991.
A primeira seleção do Brasil
Muito
por pressão de Eurico Lyra, a primeira seleção brasileira de futebol feminino
foi formada para disputar um torneio experimental na China, em 1988, que serviu
de teste para a organização do primeiro mundial da categoria, três anos mais
tarde, no mesmo país.
Com
doze países na disputa, o Brasil voltou com um honroso terceiro lugar e a
certeza de que o amadorismo, no futebol feminino, era mesmo regra.
A
campeã foi a Noruega, de quem o nosso selecionado ganhou na fase de grupos e
para quem perdeu na semifinal. Se, dentro de campo, o futebol era algo
equivalente, fora as coisas não poderiam ser mais diferentes.
"As norueguesas tinham um kit de primeiros
socorros que era fantástico, a gente não tinha nem um comprimido para cuidar do
fígado", lembra Suzana Cavalheiro.
As
dificuldades apareceram na preparação, no Rio. "A gente comia numa
instalação militar, e a comida era insuficiente em termos de nutrientes para
atletas", recorda Suzana, que fez parte do grupo.
"A gente treinava em dois períodos
e ainda lavava a própria roupa, porque cada uma só tinha dois jogos de uniforme."
O
uniforme, por sinal era (e foi durante décadas) o que sobrava do material
masculino. Quando foi marcada uma apresentação da seleção feminina no Maracanã
antes de um Fla-Flu, em 1988, a vaidade falou mais alto.
"Eles deram um agasalho com uma boca de sino
deste tamanho, horrível, a gente não queria entrar com aquilo. Aí a Cebola
ensinou um pontinho simples e todo mundo fez", conta Suzana.
Não
à toa, uma das peças em exposição no Museu do Futebol é a camisa da seleção que
Marcia Honório usou em 1988, ao lado de outros três uniformes, entre eles o do
Mundial de 2019 - o primeiro a ser vendido no varejo e a ser feito sob medida
para elas, por incrível que pareça.
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Artigo
de Jardel Sebba, para a BBC News Brasil. Clique aqui e confira íntegra do
texto.
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