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Brasil irá ganhar o seu Museu da Memória e da Verdade após seis décadas. (FOTO| Divulgação) |
Num cenário ainda embaralhado na relação com os militares, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva inseriu na sua agenda um tema que nunca foi bem digerido pelas Forças Armadas. Nos 60 anos do golpe militar, a serem completados em março de 2024, o governo irá inaugurar um espaço de lembrança daquele período, expondo as violações perpetradas pelos militares da época, as perseguições a opositores ao regime, as mortes, os desaparecimentos, os atos de exceção, censura e exílio.
Somente
seis décadas depois, o Brasil irá ganhar o seu Museu da Memória e da Verdade,
uma parceria dos ministérios da Justiça com o dos Direitos Humanos e da
Cidadania. O governo chega atrasado nessa dívida com o país. Outras nações que
passaram também por ditaduras no continente já viraram esta página e expõem
tais mazelas em museus e memoriais, casos de Argentina e Chile, que até
julgaram e condenaram seus militares ditatoriais.
Ainda
incipiente, o projeto começou a ganhar corpo agora. O Correio ouviu ex-presos
políticos, parentes de desaparecidos e integrantes de comissões da Anistia e
dos Mortos e Desaparecidos. E perguntou o que eles acham que o museu deve
exibir, diante de tanta história de violações e da luta pela volta da democracia
em 25 anos de uma ditadura.
O
ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, reconhece haver essa
dívida com o país. Ele anunciou a um pequeno grupo de brasileiros, no Chile, há
duas semanas, a construção do museu brasileiro.
"O exercício da memória é um exercício de
coerência com a luta democrática e popular. É um exercício de coerência com a
luta contra o fascismo. Nós devemos ao Brasil e vamos pagar essa dívida. Um
museu da memória, da verdade e dos direitos humanos no nosso país",
afirmou.
Dívida
O
médico e professor Gilney Viana atuou na luta armada contra a ditadura. Ficou
preso 13 anos. Vítima direta do regime dos generais, ele acha "louvável" a iniciativa do governo
em criar esse museu. Mas a considera "um
pouco tardia". Ele lembra que, em governos petistas passados, se
tentou criar um museu da anistia, que não foi concluído.
"O governo segue em débito com a gente. A
primeira tentativa fracassou. Louvo essa ideia do museu e esperamos que saia de
fato. E que não fique restrito aos anistiados políticos e às vítimas conhecidas
da ditadura. O número de atingidos é bem maior. O número de mortos e
desaparecidos não são apenas os 434 oficialmente reconhecidos pela Comissão da
Verdade. Na minha conta, chegam a 1.650. Nesse museu, será preciso incluir os
excluídos, como os indígenas e os camponeses perseguidos pelos
militares", cobrou Gilney.
A
construção do museu estará sob a incumbência do ministro Silvio Almeida
(Direitos Humanos) e de Nilmário Miranda, assessor Especial de Defesa da
Democracia, Memória e Verdade do ministério — também ex-perseguido político e
ex-deputado federal pelo PT.
A
professora Vera Paiva, da USP, é filha do ex-deputado Rubens Paiva, perseguido
e morto pela ditadura e cujo corpo jamais foi localizado. Seu pai ganhou um
busto num local central na Câmara dos Deputados. Durante o ato, em 2014, o
então deputado Jair Bolsonaro passou pelo local e fez provocações.
Para
o historiador e professor Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e especialista nesse período da história, a ação do governo em
criar um museu é positiva e propõe outras iniciativas, como apoio federal a
eventos acadêmicos programados para lembrar a data.
"Acho importante quando essas demandas da
sociedade sobre memória - já tão antigas - são atendidas. Quanto mais
iniciativas como essa tivermos, tanto melhor. Eu também gostaria que, no marco
dos 60 anos do golpe de 64, possamos contar com o apoio do governo, via Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), para os eventos
acadêmicos que estão sendo planejados", apontou Carlos Fico.
Militante
e atuante do Grupo Tortura Nunca Mais, no Rio, Victória Grabois tem uma
história de dor com a Guerrilha do Araguaia, violento movimento de repressão da
ditadura militar contra integrantes do PCdoB, na década de 1970. Naquele
episódio, ela perdeu o pai (Maurício Grabois), o irmão (André Grabois) e o
marido (Gilberto Olímpio Maria). Seus corpos nunca foram encontrados. Estão na
lista dos 25 desaparecidos da guerrilha.
Victória
resume em uma palavra o que espera do Estado nos 60 anos da ditadura. "O que espero é justiça", disse,
numa referência à punição aos militares que torturaram, desapareceram e mataram
opositores de esquerda da ditadura.
Marielle, Bruno e Dom
Vera
integrou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos durante anos. Ela
comentou sobre o museu. "Como
familiar de alguém perseguido e morto pela ditadura, acho que esse museu
precisa dedicar uma seção com os nomes dos mortos e desaparecidos. Mas
imprescindível também que constem as identidades dos inúmeros indígenas e
moradores do campo que não estão listados hoje. E entendo que é preciso
expandir mais ainda e inserir pessoas que foram alvos de práticas daquele
passado, casos do pedreiro Amarildo de Souza (desaparecido e morto pela PM em
2013, no Rio), de Marielle Franco e de Bruno Araújo e Dom Phillips, mortos
recentemente na Amazônia, com requintes de tortura que lembram a ditadura",
disse Vera.
Atual
presidente da Comissão de Anistia, a advogada e professora Eneá de Stutz e
Almeida, que coordena um trabalho de justiça e transição na UnB, celebra a
iniciativa. Lembra que, no Brasil, há poucos lugares de memória desse período
"tão violento e tão sombrio da nossa
história". Para Eneá, é preciso ir além das comissões de estados, que
existem e que já existiram antes.
"É absolutamente fundamental um museu ou um
memorial de memória e da verdade, que exista essa referência para contar a
história desses heróis e heroínas, que foram perseguidos pelo Estado e, ainda
assim, seguiram lutando por democracia. É uma história que precisa ser contada
e recontada sempre. Esses, sim, são verdadeiros patriotas", afirma Eneá.
Ex-presidente
da Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta no último dia do governo
Bolsonaro, a procuradora Eugênia Gonzaga, como Gilney, lamenta a não conclusão
do memorial da anistia. Ela entende que um museu, ou memorial, tem que ir além
de homenagear as vítimas do regime e considerar, também, as circunstâncias que
levaram a um golpe há 60 anos.
"Passamos por tanta coisa recentemente. Acho
que precisa ser ressaltado o que levou ao golpe de 1964, o que foi, como se
deu. Não ficar, o museu, restrito às vítimas, como os militares quiseram. Eles
restringiram até mesmo esses números de mortos. Claro que essas vítimas têm que
ser homenageadas, mas é preciso sair, também, dessa narrativa e trazer uma
visão do processo que levou à ditadura e suas agruras", salienta
Eugênia.
Diva
Santana é uma histórica militante dos direitos humanos e precursora em ações
que cobram do Estado esclarecimentos sobre as vítimas da ditadura, como sua
irmã Dinaelza Santana Coqueira, que atuou no PCdoB e desapareceu na Guerrilha
do Araguaia. Diva participou de várias expedições àquela região de busca dos
restos mortais desses guerrilheiros.
O
museu, para ela, é de grande importância para preservação da memória e cobre
uma lacuna de informações sobre o que foi a ditadura e suas consequências.
"Os brasileiros desconhecem esse
recorte como história de um povo guerreiro, que luta desde a colonização
defendendo a vida e seus direitos. Ocorre que os colonizadores, juntamente com
a Igreja Católica, promoveram politica e socialmente esse esquecimento, haja
vista o período da escravidão e de todos os levantes populares. Os livros de
história apenas pontuam algumas dessas lutas. Outros países onde as
civilizações se organizaram de formas diferentes, constroem e preservam a
história de luta de seus povos com memoriais e museus", entende Diva.
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Com informações do Correio Braziliense.
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