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Autores celebram 60 anos de ‘Quarto de Despejo’, de Carolina Maria de Jesus

Literatura: a escritora Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo". (São Paulo (SP), 17.06.1960. Imagem: Acervo UH/ Folhapress.


Em abril de 1958, o jornalista Audálio Dantas (1929-2018) foi escalado para fazer uma reportagem na favela do Canindé, zona norte de São Paulo. O objetivo da pauta era mostrar o dia a dia da comunidade às margens do rio Tietê. Durante a apuração da matéria, ouviu alguém berrar: “Deixa estar que eu ‘boto’ vocês no meu livro!”. A dona do berro era a moradora do barraco 9 da rua A, que defendia um garoto das agressões de dois homens que queriam expulsá-lo dos brinquedos de um parque infantil recém-inaugurado. “Que livro é esse?”, quis saber o repórter. “O que estou escrevendo sobre as coisas da favela”, respondeu a mulher.

Nascia ali a amizade entre Audálio Dantas, o repórter, e Carolina de Jesus (1914-1977), a escritora. O tal livro a que ela se referia, escrito em mais de 20 cadernos encontrados nos lixões da cidade, era “Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada”, que completa 60 anos no próximo dia 30.

Quando Audálio se deparou com Carolina, ela já tinha um histórico de militância nos jornais: desde o início de 1940, já concedia entrevistas para divulgar textos de sua autoria”, explica o jornalista e biógrafo Tom Farias, autor de “Carolina – Uma Biografia (2017)”. “Não foi necessariamente uma descoberta, foi um encontro da casualidade. Audálio e Carolina estavam no lugar certo, na hora certa. Um ajudou o outro: ela conseguiu publicar seu livro e ele se tornou um dos jornalistas mais conhecidos do Brasil”.

De volta à redação, Audálio passou a contar a história da mineira de Sacramento que tentava ganhar a vida em São Paulo como catadora de papel para criar, sozinha, os três filhos pequenos — João, José e Vera.

Em pouco tempo, reportagens, como “O drama da favela escrito por uma favelada”, publicada na edição do dia 9 de maio de 1958 do jornal Folha da Noite, chamaram a atenção da Editora Francisco Alves — que ofereceu dois mil cruzeiros pelos direitos de “Quarto de Despejo”. Com a venda de material reciclável, Carolina não ganhava mais do que vinte cruzeiros por dia. O título da obra, aliás, foi sugestão da própria autora. Para Carolina, a favela era o “quarto de despejo” da sociedade brasileira. “Estou no quarto de despejo. E o que está lá, queima-se ou joga-se no lixo”, escreveu.

A tiragem inicial, de 10 mil exemplares, se esgotou na primeira semana. Estima-se que, ao todo, “Quarto de Despejo” tenha vendido 80 mil exemplares. Em meses, entrou para a lista dos mais vendidos, desbancando, entre outros, “Gabriela” (1958), de Jorge Amado, e merecendo elogios de Ferreira Gullar (1930-2016), Manuel Bandeira (1886-1968) e Clarice Lispector (1925-1977). “Você é a única que conta a realidade”, disse a autora de “A hora da estrela” (1977). Não parou por aí.

Traduzido para 14 idiomas e publicado em 46 países, “Quarto de Despejo” virou matéria em jornais e revistas do mundo inteiro, como Times, Life e Le Monde. Na Itália, ganhou prefácio do escritor Alberto Moravia (1907-1990); em Portugal, sofreu censura do ditador Antônio Salazar (1889-1970).

Quarto de despejo se configura como documento histórico ao trazer a fome para o centro da narrativa. É a primeira vez que o processo de modernização excludente posto em prática no Brasil é narrado em detalhes por uma de suas vítimas. Quem faz a crítica não é o pesquisador, nem o estudioso, é uma mulher do povo, que tem que catar no lixo a própria sobrevivência. E isto no momento em que se inaugura Brasília, como símbolo do que seria o ‘novo’ Brasil”, analisa o professor Eduardo de Assis Duarte, coordenador do portal Literafro, de Literatura Afro-Brasileira, da Faculdade de Letras da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Com o dinheiro do livro, Carolina comprou uma casa em Santana, bairro de classe média na zona norte de São Paulo. Pouco depois, vendeu a casa e comprou um sítio na região de Parelheiros. Lançou mais três livros: “Casa de Alvenaria” (1961), “Pedaços de Fome” (1963) e “Provérbios” (1963). Nenhum deles repetiu o sucesso do livro de estreia e, a certa altura, a escritora voltou a vender papelão para sobreviver.

Vítima de bronquite asmática, Carolina Maria de Jesus morreu no anonimato e na pobreza, em 13 de fevereiro de 1977, aos 64 anos. “Sua obra foi sequestrada pelo ‘memoricídio’ que sempre se abate sobre tudo o que vai além do mainstream acadêmico e editorial, sobretudo no que diz respeito à literatura negra e/ou feminina. Digo sempre: nenhum país passa impunemente por mais de 300 anos de escravidão e, talvez, essa herança maldita ainda perdure por um bom tempo”, lamenta Eduardo de Assis Duarte, da UFMG. Na semana em que “Quarto de Despejo” completa 60 anos, o TAB convida três escritores para falar sobre o impacto da obra e da autora em suas vidas. Ana Paula Lisboa, Eliana Alves Cruz e Tom Farias falam do impacto da obra de Carolina de Jesus em suas vidas.

“A historiadora dos leões”

Ana Paula Lisboa. (IMAGEM / Divulgação).

Favelada de nascimento. Carioca de nacionalidade. Luandense por opção”. É assim que a poetisa e escritora Ana Paula Lisboa, de 32 anos, define a si mesma em seu perfil numa rede social. Vivendo na capital angolana há quatro anos, a ex-moradora da Maré, zona norte do Rio, busca inspiração em um provérbio africano, popularizado pelo escritor nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), para explicar o sucesso de Carolina de Jesus: “Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador”. “Carolina é a historiadora dos leões. E a publicação desses historiadores é tão rara que, quando aparecem, todos querem ouvir suas histórias. As histórias dos leões”.

Este ano, na edição virtual da FLUP (Festa Literária das Periferias), que homenageia a escritora mineira e os 60 anos de lançamento de “Quarto de Despejo”, Ana Paula Lisboa foi convidada pelos organizadores da festa a ser a orientadora da turma Quilombo Dona Carolina, formado por 29 mulheres negras. Escritora desde os 14 anos, quando ingressou em um curso de contação de histórias em um projeto social, e com contos e poesias publicados em antologias nacionais e internacionais, Ana Paula destaca o autoconhecimento de Carolina de Jesus. Contar sua história em primeira pessoa enfatiza sua autoestima e determinação. “Carolina sabia quem era, mesmo que, nas ruas, fosse invisível; mesmo que, na favela, tivesse fama de metida; mesmo que, desde criança, fosse considerada rebelde. Ela sabia que a vida dela era importante. E que a história que ela estava contando era importante. Uma coragem que todas e todos nós precisamos”.

“Um Brasil que fazem de tudo para silenciar”

Eliana Alves Cruz. (IMAGEM/ Divulgação).

A jornalista e escritora Eliana Alves Cruz ainda estava na adolescência quando ouviu falar, pela primeira vez, do “Quarto de Despejo”. Na época, admite, não tinha muita maturidade para alcançar toda a sua importância. Isso só veio a acontecer na faculdade de Comunicação. O que sentiu? “Uma mistura de sensações”, descreve. “Ela falava coisas que não vivi, mas que me calavam fundo, pois foram vividas por antepassadas. Entendi que aquele relato também falava de mim, pois, acima de toda a situação de miserabilidade, estava a imensa, a incomensurável solidão daquela mulher que queria emergir do lixo literal em que a submergiram”.

Hoje, aos 54 anos, Eliana Alves Cruz saúda Carolina como a “nossa maior best-seller”. Autora dos romances “Água de barrela” (2016), “O crime do cais do Valongo” (2018) e do recém-lançado “Nada digo de ti, que em ti não veja” (2020), Eliana atribui o sucesso de Carolina de Jesus e seu “Quarto de Despejo” ao “relato atual, corajoso e contundente de um Brasil que fazem de tudo para apagar a silenciar”.

Não por acaso, a vida e obra da ex-catadora de papel da favela do Canindé já virou espetáculo teatral, deu origem a mais de uma biografia – uma delas finalista do prêmio Jabuti – e inspirou o nome da uma escola pública na série “Segunda Chamada”, da TV Globo. “Carolina teve um declínio, mas voltou com força porque ‘Quarto de Despejo’ é um clássico. Um dos mais importantes da literatura mundial. A força e a qualidade de sua obra se impuseram ao preconceito e ao racismo sistêmicos. Carolina de Jesus é uma vitoriosa. E nós, com ela e por causa dela”, orgulha-se.

Era uma mulher resiliente e uma escritora extraordinária

Tom Farias.  (IMAGEM/ Reprodução/ YouTube)

Nascido Uelinton Farias Alves, o jornalista e escritor Tom Farias, de 59 anos, se especializou em pesquisar e escrever sobre a vida e a obra de grandes personalidades negras da nossa História, como o abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) ou o poeta Cruz e Sousa (1861-1898). Quando resolveu se dedicar à biografia da escritora Carolina Maria de Jesus, não imaginava que sua biografada ia muito além da favela do Canindé e de seu livro mais famoso.

Deparei-me com um universo muito rico. Carolina de Jesus era uma mulher resiliente e uma escritora extraordinária, mas o que mais me surpreendeu foi sua consciência racial e sua militância política — não digo partidária —, voltada para a denúncia das mazelas sociais do povo pobre, preto e favelado do Brasil”, descreve.

Ao longo das 402 páginas da biografia da escritora, Tom aborda outras curiosidades — como os dois anos, entre 1940 e 1942, em que Carolina morou em Nilópolis, cidade a 37 quilômetros do Rio de Janeiro, onde tentou a sorte como “poetisa preta”, como ela gostava de se autointitular. Nessa época, chegou a ter alguns de seus textos publicados em jornais populares da capital, como O Dia e A Noite.

Para quem pensa que Carolina de Jesus é autora de uma obra só, ela deixou um vasto material inédito, que inclui mais de 60 textos curtos, entre cartas, contos e crônicas, e cerca de 100 poemas. Boa parte deste material será publicada pela Companhia das Letras. “São, completos, cinco romances, dois ainda sem títulos, num total de sete narrativas. Além disso, Carolina deixou centenas de páginas de apontamentos pessoais, letras de músicas, e até cinco peças teatrais. O universo narrativo de Carolina ainda é bastante amplo e desconhecido”, avalia Tom.
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