Por César Pereira, Colunista
No dia 10 de novembro de 2020 a população do município de Milagres cidade da região do Cariri no Estado do Ceará foi abalada por um crime bárbaro que vitimou perante centenas de testemunhas a jovem Cícera Samires dos Santos Souza.
O
crime ocorreu dentro de um estabelecimento comercial no centro da cidade e foi
perpetrado pelo ex-companheiro da jovem, uma morte anunciada pelo próprio
assassino, pois dias antes do crime este já vinha cometendo uma série de
violências contra a vítima. A própria Cícera Samires denunciara tais violências
que tinham se iniciado quando do término do relacionamento abusivo pelo qual
ela passara com o autor do delito.
As
violências que principiaram com perseguições, destruição de objetos pessoais de
Samires, ataques morais e psicológicos contra a jovem culminou com o seu
assassinato em local público e diante de inúmeras testemunhas.
O
fato de o criminoso praticar seu ato feminicida contra Cícera Samires dos
Santos Souza diante de testemunhas e numa casa comercial demonstra não somente
a ousadia do assassino, mas principalmente a sua convicção de que o crime
ficaria impune, pois ele acreditava-se dono do corpo e da vida de Samires e
como tal poderia dele dispor, violentando-o, possuindo-o e finalmente
tirando-lhe a vida.
Essa
mentalidade masculina que se crer na posse dos corpos e das vidas das mulheres
permeia a estrutura patriarcal da sociedade brasileira como um todo. Na ocasião
em que o assassinato público de Samires foi perpetrado o discurso misógino e de
potencialização máxima do domínio masculino sobre os corpos e vidas femininas
estava no poder da república. Homens brancos, filhos da elite latifundiária ou
proveniente das classes aburguesadas do nosso país impuseram seus discursos
violentos e atentatórios contra os direitos humanos, contra os direitos das
mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos indígenas.
Homens
que se orgulham de subir na tribuna do Congresso Nacional e usar o parlamento
para vociferar suas falas misóginas, homofóbicas, racistas e antidemocráticas.
Homens que se envaidecem de publicar nas redes sociais ou escrever poetagens em
que espalham suas ideias violentas, homens violentos que atraem para si enormes
séquitos de adoradores e repetidores de suas injúrias contra mulheres, negros,
indígenas e homossexuais.
Essa
casta de indivíduos do sexo masculino que ascendeu ao poder com um discurso
declaradamente violento em 2018 se crer inatingível pela lei, se crer igualmente
destinado a impedir que os valores do patriarcado e que a suposta moral da
masculinidade seja elidida. Foi esse tipo de homem que assassinou Samires em
2020 no município de Milagres, foi este tipo de homem que assassinou 1.467 mulheres
no Brasil ao longo do ano de 2024, todos eles casos relacionados com a
violência de gênero, é ainda este tipo de homem violento e misógino que a cada
dez minutos mata uma mulher no nosso país.
A
certeza da impunidade ou das condenações parciais por seus crimes faz com que
esses homens violentos cometam seus crimes publicamente sem temerem qualquer
tipo de punição legal ou social. A opinião geral é que o corpo da mulher
pertence mesmo a homem.
Inicialmente
ele é um corpo que pertence ao pai ou esposo, filhas e esposas têm seus corpos
tutelados pelo chefe da casa. O casamento ou relacionamento amoroso não liberta
os corpos das jovens, apenas transfere a tutela dos seus corpos para os
maridos, companheiros ou namorados abusivos.
Quando
essas meninas, isto é essas mulheres não aceitam tais tutelas são logo julgadas
e postas no ostracismo pela sociedade patriarcal que somos nós. Seus corpos
então passam a ser regulados pelo código civil, pela constituição federal, pelo
código penal, pelo código de ética médica, pelas igrejas, pela mídia, pela
indústria cultural ou pelo mercado de bens de consumo.
Enfim,
nossa sociedade patriarcal não dar condições de possibilidade para a libertação
feminina. A mulher está condicionada a seguir uma série de códigos de conduta e
de subjetivações masculinas e o Brasil é particularmente prolífico em criar e
impor tais códigos sobre todos os aspectos da existência feminina.
Mas
o município de Milagres, lugar aonde a vida de Cícera Samires dos Santos Souza
foi ceifada publicamente carrega sobre si a mácula de outra morte igualmente
bárbara e até o presente impune. Em 2020, a mulher negra Samires foi morta, e
essa foi uma morte que causou enorme comoção na cidade, mulheres milagrense se
levantaram clamando por justiça, por acolhimento à sua dor e principalmente
políticas de combate a toda e qualquer violência de gênero. E em 1943 uma outra
mulher, a adolescente Francisca Maria do Socorro também foi brutalmente
assassinada.
Essas
duas mortes distam oitenta anos entre si, mas ambas se entrelaçam, pois foram
perpetradas pelo mesmo tipo de assassino, isto é, homens violentos cuja mão
assassina encontra-se vinculada ao patriarcado brasileiro. O patriarcado que se
assume publicamente nos tempos atuais como o único capaz de tutelar os corpos e
mentes das mulheres tem raízes profundas no nosso passado histórico.
Quando
a menina Francisca Maria do Socorro foi estuprada e assassinada na periferia da
cidade de Milagres em 07 de dezembro de 1943 o Brasil vivia sob o regime
ditatorial de Getúlio Dorneles Vargas, éramos uma república fascista na América
do Sul, defendíamos o extermínio de seres humanos nos campos de concentração
nazista da Europa, não podemos esquecer que foi o ditador Getúlio Vargas quem
enviou a cidadã brasileira Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista e
portanto, o estado brasileiro é responsável diretamente pela sua execução na
câmara de gás de Hitler.
Francisca
Maria do Socorro nasceu e viveu até seus 14 anos numa sociedade machista e
patriarcal. O código civil de 1916 escrito a várias mãos masculinas determinava
que a mulher antes do casamento fossem submissas exclusivamente ao chefe da
família, pai ou irmãos que assumiria total reponsabilidade por ela até que esta
viesse a contrair matrimônio quando passaria às mãos do marido.
Com
o casamento a mulher seria então considerada incapaz, pois todos os aspectos da
sua vida, materiais, mentais e socais seriam tutelados pelo esposo:
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
(Código Civil de 1916, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm).
Percebe-se que o poder masculino
sobre existência da mulher brasileira estabelecido pela legislação de 1916
tinha como principal objetivo manter a hegemonia do patriarcado impedindo assim
qualquer mudança na estrutura social e política hegemonicamente masculina.
Francisca Maria do Socorro
nasceu no princípio da década de 1930 no município de Milagres, nesse período a
política do Ceará e do Brasil passava por uma intensa efervescência devido à
quebra das alianças oligárquicas ocasionadas pela Revolução de 1930. No Cariri
cearense os coronéis que haviam passado as três primeiras décadas do século XX
se digladiando entre si pelo controle do poder local agora estavam em conflito
com os novos atores da política estadual e federal.
Mas essas lutas pelo poder não
mascaravam nenhuma de seus intentos, elas eram batalhas travadas entre velhos
latifundiários contra os novos aspirantes ao poder. Homens cujo objetivo maior
era a autopreservação e o acúmulo de forças, mando e privilégios nas suas mãos.
No município de Milagres não foi diferente. Cidade comandada por homens donos
de vastos latifúndios desde o século XIX, esteve durante duas primeiras décadas
do século XX sob o poder autocrático do coronel Domingos Leite Furtado e de seu
braço direito o major e jagunço José Inácio da Sousa (o Zé Inácio do Barro).
Na década de 1930 período da
infância de Francisca Maria do Socorro o poder passara das mãos do coronel
Raimundo Alves Pereira, para o dissidente da República dos Coronéis João
Fechine que foi escolhido pelos vencedores da Revolução de 1930 no Ceará como
prefeito de Milagres. Este seria deposto em 1934 quando os velhos oligarcas do
Ceará voltaram ao poder com o apoio da Liga Eleitoral Católica (LEC). Assim já
no ano de 1935 a facção dos Alves Pereira já recuperara seu mando sobre o
município.
Cidade de configurações
eminentemente patriarcais, a história de Milagres pode ser contada como um
longo capítulo sobre a invisibilização das mulheres e das múltiplas estratégias
do patriarcado para silenciá-las ou impor-lhes a tutela masculina.
Assim foi quando se inventou no
começo do século XX a famigerada lenda de Sousa Presa e da Bela Índia. Estória execrável
que se propagou pela cidade através de professores, esquetes teatrais, monumentos
públicos, textos em almanaques, recontos e foi parar até nos símbolos do
município como a bandeira e o hino. Uma estória que impõe a violência de um
bandeirante branco fictício sobre uma mulher indígena que teria se deixado
seduzir pelo bom português superior e a ele se aliado para pôr fim ao seu povo
Kariri habitante ancestral do Vale do Riacho dos Porcos. A velha lengalenga do
branco belo e bom, da índia seduzida e dos dois associando-se contra a barbárie
dos silvícolas canibais.
Mulheres milagrense como Praxedes
Furtado de Lacerda verdadeira chefe política do município na década de 1920 foi
esquecida, outras como Dona Filomena, senhora de mando político e dona de sua
vida, também foi esquecida. Há também a figura imprescindível de Dona Maria
Ribeiro do Nascimento, mulher negra que foi uma importante liderança religiosa
e uma voz da resistência cultural das ancestralidades negras em Milagres, outra
voz não menos importante foi a de dona Dionísia Severo, mulher indígena que
viveu curando a cidade através de suas pajelanças.
Todas elas mulheres esquecidas,
apagadas pela violência do mando patriarcal.
Foi esse espaço ocupado pelo
poder discricionário do patriarcado que Francisca Maria do Socorro habitou
entre 1930 e 1943. Filha de Maria Júlia Correia, mulher pobre, habitante do
Serrote, área de escassa povoação nos arredores da sede do município, era o
lugar onde se instalavam as famílias abaixo da linha da miséria de Milagres,
aquelas que não viviam na zona rural, nesse período cerca de 80% da população
do município habitava as áreas rurais do Vale do Riacho dos Porcos.
Maria Júlia Correia vivia num
casebre de barro e palha no dito lugar chamado Serrote com a filha Francisca
Maria do Socorro e um filho. Segundo os relatos da época também moravam por ali
Clotilde tia da menina e uma avó de Francisca do Socorro.
O Serrote era lugar sem
saneamento e praticamente invisível para o poder público, pois os relatos do
tempo informam que os moradores desse espaço precisavam se abastecerem da água
de uma nascente e um córrego que começava na área de brejos no sopé do dito
Serrote. Além disso, esses mesmos moradores precisavam usar o matagal que
crescia em volta de suas casas para fazerem suas necessidades fisiológicas.
O cotidiano de Francisca do Socorro era perpassado pelos afazeres domésticos, os mandados da mãe, da tia e da avó. Como criança pobre de um município cujas terras que produziam a riqueza local estavam nas mãos dos velhos mandatários do vale ela não tinha direitos.
![]() |
Desenho da menina Francisca do Socorro gerado por IA. |
Francisca Maria do Socorro não
tinha direito de ir à escola, na década de 1940 já funcionava em Milagres o
Colégio Santa Terezinha instalado nos meados da década de 1930 no prédio da
antiga Casa de Caridade, mas era uma escola restrita aos que podiam pagar, era
principalmente restrita às meninas das famílias abastadas da cidade, Francisca
do Socorro era pobre:
...vi assim, a meninazinha (sic). 10 anos, 9 a 10 né, uma galeguinha,
era galeguinha assim, desgrenhada, pobrezinha que não tinha nada, só tinha água
no pote. Vivia numa choupanazinha e a mãezinha dela tinha chegado não sei de
onde. Eu sei que eles vinham, eles não eram daqui não viu. Eu sei que eles
moravam aqui, mas não eram natural (sic) daqui. (Depoimento de Dona Maria
coletado pela professora Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães, em 2012).
Francisca
Maria do Socorro também não tinha direito a proteção da sua pessoa, pois
vigorava no Brasil a ditadura do Estado Novo, o Código Civil de 1916, todos
eles instrumentos de poder da masculinidade, ela era uma menina pobre criada
por uma mãe pobre, e logo se viu vítima da violência masculina.
O
relato do inquérito aberto contra o criminoso informa que Francisca do Socorro
já vinha sendo há algum tempo assediada pelo meliante. Segundo a mãe da menina
no seu depoimento ela afirma que Elísio Pereira Maia vinha assediando
sexualmente Francisca do Socorro bem antes do crime. O documento de autuação
informa que:
Os
antecedentes do denunciado formam um conjunto de indícios contra sua pessoa.
Oito dias antes do fato, tentara contra o pudor de uma menor, naquelas
imediações, não conseguindo, felizmente, realizar o seu intento, porque a isso
se opusera a dita menor. A própria mãe
de Francisca do Socorro declara que a filha, algumas vezes lhe dizia: “Mamãe o
seu Elísio parece que não tem cerimônia, pois faz suas necessidades
fisiológicas na minha frente, chegando mesmo a baixar-se quando por ali passo.”
(fls. 6) (Processo de Francisca do Socorro in: Memória E
Psicologia Social Revitalizando A Memória De Francisca Do Socorro, Maria de
Lourdes Gonçalves Guimarães.)
As
testemunhas ouvidas no processo relatam a presença constante de Elísio Pereira
Maia no local do assassinato antes e durante a efetivação deste. O crime contra Francisca Maria do Socorro
aconteceu no dia 07 de dezembro de 1943 quando a adolescente foi ao poço buscar
água a mandado de sua mãe.
Os relatos do
ocorrido nos informam que Francisca Maria do Socorro saiu de casa para fazer
umas compras de carne no açougue, a menina desceu até as proximidades do centro
da cidade onde comprou o que a mãe lhe incumbira e retornou a casa em seguida,
mas ao passar pela residência da sua tia Clotilde Correia da Silva recebeu
desta o recado da mãe que lhe pedia fosse com o pote de barro da avó buscar
água no poço. A jovem tomou o vasilhame e se dirigiu à nascente. Como Francisca
do Socorro se demorava a avó Francisca Maria da Luz achou que a jovem havia
quebrado o pote e sugeriu à filha, mãe de Francisca do Socorro que fosse ao
encontro da menina.
Maria Júlia
Correia não encontrou a filha no caminho do poço, mas achou os cacos do pote
quebrado, entrou no mato para tentar achar rastros da filha, mas o que viu foi
o cadáver da menina. Estava estrangulada e com a garganta cortada a facão.
...com
surpresa, a umas dez braças do local onde fora quebrado o pote, estava
ensanguentado o cadáver de sua filha FRANCISCA MARIA DO SOCORRO, em estado de
seminudez, apresentando grande golpe na região supralaríngea, produzido por
instrumento perfurocortante. ((Processo de Francisca do Socorro in: Memória E Psicologia Social Revitalizando A Memória De Francisca Do
Socorro, Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães)
O
assassinato de Francisca do Socorro logo causou grande comoção na cidade,
dezenas de pessoas acorreram ao local do crime e rapidamente as opiniões gerais
apontavam como sendo o assassino Elísio Pereira Maia, tanto devido aos seus
precedentes, pois já vinha assediando Francisca do Socorro como também tentara abusar
sexualmente de outra mulher nas proximidades do Serrote.
As
autoridades locais foram instadas a punir o criminoso que foi imediatamente
preso, este negou ter sido o autor do delito, mas as testemunhas insistiam que
ele fora visto no local do assassinato da menina quando o crime acontecera.
Preso na cadeia local logo o criminoso ganhou a simpatia de muitos,
principalmente das pessoas que viviam na parte central da cidade, relatos da
época informam que ele declamava canções pungentes na cadeia.
A
prisão do acusado durou pouco, foi solto por falta de provas e logo se mudou de
Milagres e do Ceará. Mas a memória do bárbaro assassinato de Francisca do
Socorro ficou na população do Serrote, nas pessoas pobres do município. Eles
ergueram uma cruz no local onde seu corpo fora encontrado e lá iam fazer suas
promessas, levavam velas, santos e pedidos para a Cruz da Menina.
Houve
resistências por parte da elite local em aceitar essa devoção popular à memória
de uma adolescente que fora abusada sexualmente e depois degolada, mas o povo,
as pessoas simples e pobres como Francisca do Socorro e sua família não
desistiram da sua fé, mantiveram-se crentes na santidade da menina Francisca
Maria do Socorro, e em torno de sua cruz foi se instalado toda uma comunidade,
pessoas que eram marginalizadas, cujas vidas tinham sido arrastadas para a
pobreza devido a concentração de rendas e terras nas mãos dos poucos
privilegiados de Milagres.
Ainda
hoje o assassinato de Francisca do Socorro é um estigma, uma ferida aberta na
história de Milagres, sua morte e a impunidade desta mostra que a luta das
mulheres do nosso município contra toda tipo de violência do patriarcado deve
ser incessante. O lugar da sua morte atualmente é um espaço de resistência
contra a violência de gênero em nosso país.
![]() |
Cruz da menina em 2024. (FOTO | Deimon Bredley). |
Ainda vivemos um reflexo da violência com que esta sociedade estruturou-se. Não suportamos mais que nossos corpos sejam ceifados pela brutalidade daqueles que compreendem a mulher na condição de inferioridade! Que as leis sejam efetivadas com mais rigor!
ResponderExcluir