![]() |
Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez tiveram suas fichas pessoais levantadas e suas atuações eram vistas como ameaça para o regime. (FOTO | Dora Lia/Alma Preta Jornalismo). |
Tortura, desaparecimentos e censura davam o tom do cenário no Brasil durante o período da Ditadura Militar (1964-1985). Uma parte pouco conhecida dessa história é que a atuação de movimentos e ativistas negros levou a uma desconfiança do sistema militar, que passou a acompanhar de perto as ações e pessoas que estavam envolvidas nos debates sobre raça no país.
Além
da repressão, ativistas como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Beatriz
Nascimento e Joel Rufino também lidaram com o racismo e a vigilância das suas
atividades ao terem as suas fichas pessoais levantadas pelos órgãos de
inteligência do regime.
Intitulado
“O
olhar do Serviço Nacional de Informações-SNI sobre o movimento negro no Rio de
Janeiro (1968-1988)”, a tese de doutorado da pesquisadora e
historiadora Marize Conceição revela que a reoganização dos movimentos sociais
e o surgimento do movimento negro no Brasil, a partir dos anos 70, preocupou os
militares por causa da ampliação da luta da população negra pelos seus direitos
e pelo fim da discriminação racial no país.
“Em 78, quando da criação do MNU [Movimento
Negro Unificado], criado justamente para unificar essas organizações, os
documentos do SNI mostram que há uma preocupação muito grande dos militares com
essa capilaridade do movimento negro por todo o Brasi e isso faz com que as
agências passem a vigiar ainda mais de perto o movimento negro. A partir de 78,
o número de documentos vai mais do que dobrar, o MNU vai ser extremamente
vigiado e as organizações negras também”, explica a pesquisadora.
A
pesquisa analisou 150 documentos produzidos pelo SNI encontrados no acervo do
Arquivo Nacional e surgiu após a pesquisadora, e também professora, identificar
uma lacuna sobre a atuação das pessoas negras durante a Ditadura Militar e a
forma como essa abordagem é feita nas instituições de ensino.
“A partir desses documentos eu vou fazendo
uma relação da luta do movimento negro dentro desse período e como é que esses
orgãos estão vigiando o movimento negro”.
A
tese da pesquisadora foi defendida em agosto do ano passado e a previsão é que
seja publicada ainda este ano.
Atividades monitoradas
Documentos
registrados pelo SNI revelam também que até mesmo as atividades voltadas à
promoção da cultura negra foram monitoradas por agentes — em alguns casos,
infiltrados — mesmo após a Ditadura.
Um
registro de 1988 mostra que o SNI mapeou as programações do Centenário da
Abolição da Escravatura na Bahia, listou os movimentos e ativistas presentes
nas atividades, além de anexar folhetos sobre o tema que eram circulados na
época.
‘Negros acima da média’
Segundo
Marize Conceição, o ativista Abdias do Nascimento foi uma das lideranças mais
perseguidas pela Ditadura. Considerado uma das principais referências do
movimento negro e expontes da cultura afro-brasileira, Abdias integrou a Frente
Negra Brasileira (FNB), foi um dos idealizadores do MNU, fundador do Teatro
Experimental do Negro e foi preso após protestar contra a ditadura de Getúlio
Vargas.
![]() |
Abdias do Nascimento integrou a Frente Negra Brasileira, foi idealizador do MNU e preso após protestar contra a Ditadura | Foto: Divulgação/Ipeafro |
Por
causa da repressão durante a Ditadura, se exilou nos Estados Unidos e Nigéria
durante 13 anos. Nesse período, produziu trabalhos sobre a realidade da
população negra brasileira e fez críticas ao mito da democracia racial no país.
Um
dos registros analisados pela tese da pesquisadora Marize Conceição expõe a
perseguição que Abdias enfrentava. Em 1977, o Ministério das Relações
Exteriores sinalizou que o ativista desejava apresentar uma tese no II FESTAC
(Festival Mundial de Arte e Cultura Negras) de Lagos, na Nigéria. O trabalho,
contudo, foi rejeitado pela comissão julgadora e o passaporte do ativista,
negado.
Em
um dos trechos, a ditadura cita uma entrevista que Abdias deu ao jornal “Sunday
Times” para criticar a decisão do Ministério das Relações Exteriores.
“Nessa entrevista, o professor NASCIMENTO
acusou os organizadores de parcialidade na seleção das teses, ao negar-lhe
oportunidade para ‘revelar o que considera uma sujeição sórdida do povo negro
no Brasil’. Acrescentou que “existe um império de brancura no Brasil,
desconhecido de muitos povos no mundo, especialmente na África…, uma ideologia
corruptora”, cita o documento.
![]() |
Abdias teve um dos seus trabalhos rejeitados ao ser submetido ao Ministério das Relações Exteriores | Foto: Reprodução/Arquivo Nacional. |
Segundo
a pesquisadora Marize Conceição, o ativista era visto pelo regime como um “negro acima da média” e perigoso por
causa da atuação.
“O Abdias é, sem sombra de dúvidas, o
militante mais vigiado durante esse período. Ele era uma figura tratada com
muito cuidado pelos militares porque ele é uma pessoa que fala, que expõe o
país, e com muito cuidado para evitar a ressonância das suas falas. O Abdias
era considerado um negro acima da média e, por isso, perigoso”, destaca.
O
historiador e ativista Joel Rufino também surge na pesquisa de Marize como uma
das lideranças negras monitoradas no período da ditadura. Integrante da Ação
Libertadora Nacional (ALN), organização clandestina que pregava a luta armada
contra o regime, Rufino teve seus trabalhos censurados e, em 1972, foi detido e
mandado para o presídio do Hipódromo, em São Paulo, por integrar o grupo.
![]() |
Historiador e integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Joel Rufino teve seus trabalhos censurados | Foto: Divulgação |
Rufino permaneceu como preso político por um ano e meio e só conseguiu retomar as suas atividades acadêmicas em 1979, com a decretação da Anistia. Ele também foi presidente da Fundação Palmares, na década de 1990, e foi autor de diversos trabalhos como a biografia de Zumbi dos Palmares, destinada ao público jovem, lançada em 2015, ano de sua morte.
“Essas pessoas, por aparecerem sempre nesse contexto de organização do movimento negro e por estarem despontando como lideranças, elas eram vigiadas”, pontua a pesquisadora Marize Conceição.
Protagonismo
das mulheres negras
Um
dos destaques que a pesquisa traz é sobre o papel das mulheres negras no regime
militar. Segundo a autora da tese, Marize Conceição, a atuação delas foi
essencial para fortalecer movimentos a partir dos recortes de raça e gênero
dentro das organizações.
“Eu trago algumas mulheres negras que estavam
na luta de resistência à Ditadura, mas estavam nas organizações de esquerda diante
do AI-5. Elas se afastam — ou são afastadas — dessas organizações e acabam
vindo para o movimento negro para somar na construção do movimento de mulheres
negras com as experiências delas nas organizações de esquerda e construindo uma
consciência racial que nessas organizações elas não tinham”, comenta.
Em
1989, o primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras também foi registrado
pelo SNI de forma confidencial e cita que o evento “teve por objetivo denunciar as desigualdades sociais, raciais e
sexuais, bem como analisar as perspectivas que as mulheres negras brasileiras
possuem com relação ao futuro”.
A
militante e intelectual Lélia Gonzalez era uma das participantes e também foi
alvo de monitoramento da repressão. Referência do feminismo negro brasileiro e
autora do conceito da “Amefricanidade”, Lélia foi uma das pensadoras
responsáveis por teorizar as pautas das mulheres negras nas Américas e desvelou
a presença do racismo nas diferentes esferas da sociedade, segundo relata a
neta da ativista, a historiadora Melina de Lima.
“Minha avó tinha total noção de que era
vigiada. Na casa dela tinham várias reuniões do movimento negro, do movimento
feminista, e essas reuniões continuavam acontecendo mesmo durante a Ditadura.
Era um local de concentração de quem era fora do que a Ditadura ditava como
mantenedores da ordem”, relembra Melina.
![]() |
Autora do conceito da “Amefricanidade”, Lélia Gonzalez foi uma das pensadoras responsáveis por teorizar as pautas das mulheres negras nas Américas | Foto: Acervo Lélia Gonzalez |
Anos
antes do primeiro encontro nacional, em 1979, o SNI produziu um documento em
que sinalizou uma viagem de Lélia Gonzalez para os Estados Unidos, onde ela
realizaria palestras nas Universidades de Nova York, Pensilvânia e Califórnia,
além de extrair uma ficha pessoal da ativista.
Em
uma das informações de destaque, o órgão informou que Lélia era membro “de grande influência” da Comissão
Executiva Nacional do MNU que, segundo o SNI, é uma “entidade contestatária que se caracteriza pelas atividades que vem
desenvolvendo para incentivar conflitos de racismo negro no Brasil”.
![]() |
Uma viagem de Lélia Gonzalez aos EUA foi registrada pelo SNI | Foto: Reprodução/Arquivo Nacional. |
Neta
de Lélia, Melina de Lima destaca que a ida de Lélia para fora do país foi
essencial para revelar as manifestações do racismo no país. “Fora do Brasil ela falava com total
liberdade e aqui no Brasil, eu imagino, que ela escrevia, produzia muita coisa
e se reunia com os seus, mas entendia que ela deveria ter limites em relação a
como falar isso em palestras que ela dava no nosso país”, exemplifica
Melina.
Outra
figura importante do movimento de mulheres negras foi a historiadora e
pesquisadora Beatriz Nascimento. Com duas décadas de estudos sobre a formação
dos quilombos no Brasil, Beatriz via os territórios como locais de resistência
política dos afro-brasileiros e a sua presença constante como umas das integrantes
do MNU despertou o interesse dos militares pelas suas atividades.
A
partir dos documentos analisados, Marize Conceição revela que, por ter relação
com o movimento negro, Beatriz Nascimento chegou a ter o seu visto indeferido
pelo Ministério das Relações Exteriores ao tentar viajar para participar de um
evento fora do país.
“Ela foi uma mulher que estava despontando no
espaço acadêmico e é bastante vigiada sendo que em todo documento dentro das
agências, eles não encontraram nenhuma informação que criminalize a Beatriz”,
cita Marize.
![]() |
A presença constante de Beatriz Nascimento como umas das integrantes do MNU despertou o interesse dos militares | Foto: Reprodução. |
Para
Betânia Nascimento, bailarina e filha de Beatriz Nascimento, uma das
consequências dessa vigilância se refletiu na sua infância, quando ela teve que
passar longos períodos reclusa ou distante da mãe e, em algumas situações, sem
ser apresentada como filha da ativista.
“Havia
momentos de separação física que começaram a cair os pingos nos i’s do porquê
eu não estou com minha mãe, por que a minha mãe teve que viajar para algum
lugar? Até hoje as pessoas não sabem que a Beatriz tem uma filha. A nossa
história e as nossas infâncias na Ditadura não são faladas”, comenta Betânia.
Apesar
da desconfiança sobre a vigilância, Betânia só teve contato com documentos que
comprovaram a vigilância à Beatriz anos depois, através de Alex Ratts,
antropólogo, escritor e autor do livro “Eu sou atlântica: sobre a trajetória de
vida de Beatriz Nascimento”.
“O
que eu me lembro é de momentos de ‘fuga’ e, relendo as escritas dela, eu acho
que havia uma pequena noção de perseguição, mas aí é que tá, quando a gente
nasce preto no Brasil, a gente nasce sendo perseguido”, finaliza.
___
Texto de Dindara Paz, originalmente no Alma Preta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!