![]() |
Jornalista Flávia Oliveira. (FOTO | Reprodução). |
Às vésperas de a imprensa negra no Brasil completar 190 anos, a Biblioteca Nacional recuperou e digitalizou um exemplar histórico do jornal “O Progresso – Órgão dos Homens de Cor”. A edição de estreia, em 24 de agosto de 1899, homenageava em duas páginas, incluindo capa, o jurista Luiz Gama, no aniversário de 17 anos de sua morte. Reconhecido como advogado pela OAB-SP apenas em 2015, ele foi responsável pela libertação de mais de 500 escravizados, décadas antes da assinatura da Lei Áurea.
—
Para que seja memorável nos anais em que se registra a glória, é mister que
além da campa o estejam elevando em clamores eloquentes os próprios
merecimentos e as virtudes pessoais. Pretos! É preciso que se pague este
tributo ao morto ilustre: é preciso que seu nome brilhe dentro de nossas almas,
tanto quanto a estrela mais adorada do Firmamento — estampava a primeira
página, ilustrada com uma xilogravura do busto de Luiz Gama acima do brasão com
uma mão branca e outra negra se cumprimentando, alusão ao 13 de Maio.
Foi
a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, diretora-geral do Arquivo Nacional,
que, num encontro com Marco Lucchesi, presidente da Fundação Biblioteca
Nacional, no início da semana, mencionou a publicação valiosa, nunca
incorporada à Hemeroteca Nacional. Ela a localizara num rolo de microfilme 20
anos atrás. Lucchesi acionou a equipe. E deu-se a primeira parceria das atuais
gestões da Biblioteca e do Arquivo. Ana Flávia pesquisa a imprensa e literatos
negros há mais de duas décadas. É autora de “Imprensa negra no Brasil do Século XIX” (Selo Negro, 2010) e de “Escritos de liberdade – Literatos negros,
racismo e cidadania no Brasil Oitocentista” (Editora Unicamp, 2018).
“O Progresso” foi um dos jornais mais
contundentes na defesa dos direitos dos afrodescendentes no país. Na edição
inaugural, o redator-chefe era Theophilo Dias de Castro, um discípulo de Luiz
Gama, que ocupou posição de destaque na Irmandade do Rosário dos Pretos, em São
Paulo. Na edição recém-digitalizada pela Biblioteca Nacional, além da homenagem
ao Patrono da Abolição, há um artigo assertivo de defesa da educação, intitulado
“Eduquemo-nos”, que dizia:
—
Lançando um olhar para o futuro, sem esquecermos o passado, vemos que o futuro
nos sorri; vemos que o homem preto, por sua índole, inteligência e amor ao
trabalho, pode ter papel saliente na sociedade, embora espíritos retrógrados
afirmem o contrário, querendo colocá-lo abaixo do nível das outras raças.
Quiséramos que nos mostrassem em que preto é inferior ao branco. Em inteligência?
Não, porque todo o preto que tem estudado tem dado boa prova de si, chegando a
ocupar páginas de nossa História.
Liberdade
e cidadania, não a escravidão, pautaram a imprensa negra no Brasil, segundo Ana
Flávia. Cabe diferenciar veículos negros da presença negra na imprensa.
Jornalistas pretos e pardos antecederam a existência da imprensa negra e, nas
palavras da historiadora, foram decisivos para o surgimento dos meios dedicados
aos “anseios de coletividades muitas
vezes negligenciadas em círculos hegemônicos”.
Foi
em 14 de setembro de 1833 o lançamento do pasquim “O Homem de Cor”, no Rio de Janeiro, capital do Império, 11 anos
depois da Independência, cinco décadas e meia antes da Abolição. Pioneiro a
que, prestes a completar 190 anos, “importava
questionar as efetivas condições de realização daquelas promessas de liberdade,
que havia tempo circulavam e ganhavam forma nas mentes de livres e libertos —
sem falar nos escravizados”, escreveu a historiadora em “Imprensa negra”.
Em
meio à intensa disputa política, o jornal foi lançado com o objetivo declarado
de denunciar o racismo, à época chamado preconceito de cor. Nas cinco primeiras
edições, trazia no cabeçalho o parágrafo XIV do Artigo 179 da Constituição de
1824: “Todo cidadão pode ser admitido aos
cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a
de seus talentos e virtudes”.
“O Homem de Cor” era impresso na
Tipografia Fluminense de Brito, cujo dono, Francisco de Paula Brito, foi um dos
maiores editores do país na primeira metade do século XIX. Também em 1833,
estrearam “O Brasileiro Pardo”, “O Cabrito”, “O Lafuente”, “O Crioulinho”.
Ainda no século XIX, a imprensa negra se espalhou por outras localidades: “O Homem: Realidade Constitucional ou
Dissolução Social”, no Recife (1876); “A
Pátria”, em São Paulo (1889); “O
Exemplo”, em Porto Alegre (1892); e “O
Progresso”, já citado. A partir de 1870, segundo Ana Flávia, não houve um
solitário ano sem veículos negros no Brasil. Ela identificou ao menos uma
centena de publicações, até o fim do século XX, incluindo a “Revista Raça”,
lançada em 1996 e até hoje em circulação. Trata-se de longa e incessante
caminhada.
____
Texto de Flávia Oliveira, no O Globo e replicado no Geledés.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!